09 Agosto 2023
A especificação atual do “sacramento da ordem” não ocorre em uma leitura pontual e imediata, mas segundo um processo de recepção da nova abordagem que o Vaticano II deu a toda essa matéria.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado em Come Se Non, 04-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No debate que surgiu entre G. Lorizio e F. Ferrario, que parte da interpretação de um texto de Zollner, e sobre o qual já falei, aparecem algumas evidências que merecem uma reflexão.
É interessante que as distinções católicas e evangélicas, que servem para oferecer uma interpretação plausível do texto de Zollner, giram com precisão em torno do termo “sacramento”, que, porém, está ausente em Zollner.
Para Lorizio, sacramento é o conceito-chave para garantir a diversidade da ordem do poder sagrado, enquanto, para Ferrario, sacramento é propriamente o termo que identifica tal poder sagrado em sentido católico. Não há dúvida de que uma sobrecarga de significado do termo sacramento, como fruto da contraposição católica à teologia protestante, é a causa dessa divergência.
Uma certa exasperação positiva (do lado católico) e negativa (do lado protestante) da noção é a herança moderna (tridentina e antitridentina) com a qual ainda estamos lidando. Creio que esse modo de abordar a leitura do texto de Zollner leva a inevitáveis curtos-circuitos, porque, por um lado, supõe que uma “concepção sacramental do ministério” exclui por princípio sua redução a “potestas” (o que não é); por outro, uma concepção “não sacramental”, mas “funcional” do ministério seria inatingível para o catolicismo por princípio (o que também não é).
A meu ver, para sair do “impasse”, é preciso problematizar o termo “sacramento” de forma diferente, saindo de uma versão rígida e unívoca que nem mesmo o Concílio de Trento sustentou.
De fato, é preciso recordar que, na linguagem tridentina, construída por “cânones de condenação”, o fato de que os sacramentos não são nem mais nem menos do que sete não implica de modo algum que sejam todos da mesma dignidade. Tendo sido condenada também a proposição que os equipara, resta um espaço para compreender, também no ministério ordenado, em que medida esse “sacramento” é função do batismo e da eucaristia (que são os únicos sacramentos maiores).
Precisamente o modo de entender essa “correlação estrutural com o batismo” exige uma teoria do sacramento não monolítica e não unívoca, assim como ela foi, de fato, ao longo do primeiro milênio, até o início da teorização escolástica, depois exagerada nas controvérsias modernas.
Acerca das palavras de Zollner, nas quais a denúncia da relação entre abusos e estrutura hierárquica é afirmada fortemente, não é inútil recordar que o “sacramento” só tem a ver com tudo isso até certo ponto. Acima de tudo pelo fato de que aquilo que Ferrario recorda – ou seja, que o sacramento da ordem tem sua estrutura piramidal no episcopado, presbiterado e diaconato – é um efeito do Vaticano II, que por muitos séculos não foi assim.
Se refletirmos sobre o fato de que o “ápice da pirâmide” (papado e episcopado) por quase um milênio não foram “sacramentos”, mas apenas “ofícios”, entendemos que uma ênfase excessiva na “diferença sacramental” é o fruto de uma projeção mais do que de uma realidade.
Por isso, a determinação concreta do que é o “ministério ordenado” não pode ser definida apenas pela afirmação de que é sacramento ou não: sua natureza de “ofício” foi preponderante durante séculos. Para a teologia católica, uma herança embaraçosa de uma leitura “hierárquico-burocrática” do episcopado deriva de uma dupla causa que hoje é questionada novamente (em teoria, mas não na prática): da natureza “não sacramental” do episcopado e da redução de sua autoridade a “potestas iurisdictionis”. Só assim foi possível, por exemplo, que o “poder da palavra” se tornasse “poder sobre a palavra” e se reduzisse à indicação detalhada dos livros a serem postos no Index.
A determinação concreta do episcopado, do presbiterado e do diaconato não mais em termos de potestas, mas em termos de “munus” (regendi, docendi e sanctificandi) em continuidade com os três “munera” que dizem respeito a todos os batizados, não pode ser compreendida apenas com a “diferença de essência”, expressão que utiliza uma linguagem ontológica, mas que não impõe necessariamente uma visão medieval e moderna dessa diferença essencial.
A especificação atual do “sacramento da ordem” não ocorre em uma leitura pontual e imediata, mas segundo um processo de recepção da nova abordagem que o Vaticano II deu a toda essa matéria. Aqui, parece-me, resta o bom direito de uma “denúncia católica”, como a de Zollner, que revela a contradição entre uma abordagem geral nova e práticas oficiais individuais propostas segundo a mentalidade velha. Como tentei mostrar em minha contribuição anterior ao debate, uma série de “imunizações” do ministério ordenado (da teologia, da mulher e da reforma litúrgica) foram a tentativa pós-conciliar, apenas parcialmente contida até agora, de assegurar ao ministério ordenado aquela “imunidade” que o qualifica inequivocamente como um “poder sagrado”.
Se esse é o conteúdo do sacramento, têm razão aqueles que duvidam que a palavra seja apenas o anteparo formal para manter todo o poder para si. Catolicamente, eu nego isso, mas não nego que, evangelicamente, isso possa ser sustentado ainda mais quanto mais numerosos são os casos que concretamente o validam.
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Ministério ordenado como sacramento: um equívoco ou uma sobrecarga? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU