27 Junho 2023
Para Roberto Saviano, o encontro com o Papa Francisco na Capela Sistina é um “reconhecimento encorajador numa fase histórica em que vários governos, deste país, mas não só, levam a processo os intelectuais, deslegitimam os artistas que "se posicionam", considerando-os de forma negativa "parciais" ou "ideológicos"“. Como se hoje "só fosse legítimo quem é neutro". Ter sido convidado pelo Pontífice é “um sinal poderoso neste momento difícil para a liberdade de expressão, para quem toma partido”. O que emergiu do discurso do Bispo de Roma sobre o papel da arte e da fé no mundo contemporâneo é um "programa político" e, ao mesmo tempo, "um manifesto e uma lição de liberdade".
Palavras que o escritor profere com força ao final da audiência concedida por Jorge Mario Bergoglio a artistas de todo o mundo, por ocasião do 50º aniversário da inauguração da Coleção de Arte Moderna e Contemporânea dos Museus do Vaticano. Saviano destaca duas passagens em particular: Bergoglio refletiu “sobre a necessidade que os artistas têm de olhar para o horror para tirar dele beleza. Ou seja, verdade”. E depois, “apreciei particularmente a diferença que ele identificou entre equilíbrio e harmonia: esta não é necessariamente a soma de equilíbrios, pelo contrário, é a convivência entre muito caos”.
A entrevista é de Domenico Agasso, publicada por La Stampa, 24-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Roberto Saviano é um jornalista e escritor italiano, de origem judaica. Saviano escreveu Gomorra, livro que documenta a atuação das máfias italianas e sua relação com as instituições do país. A obra se tornou um bestseller em todo o mundo.
Pintores, escultores, arquitetos, escritores, poetas, músicos, diretores e atores vindos de todo o planeta convidados pelo Papa ao Vaticano: qual é o aspecto mais relevante?
Francisco deu visibilidade a figuras que neste momento, sobretudo quando tomam partido, recebem dos líderes políticos – aqueles que guiam este país, mas não só, penso, por exemplo, também na Hungria, na Alemanha, na França - ostracismo, processos e desconfiança. Esta escolha de Bergoglio deve ser destacada e não dada como certa. É um reconhecimento público internacional precioso, quase inacreditável, enquanto vários governos deslegitimam os intelectuais que “tomam partido”, rotulando-os de “parciais”, “ideológicos”. Esses artistas são muitas vezes definidos pelos populismos como a “escória”. Constantemente atacados com a acusação de ser exclusivamente a voz do establishment. Hoje, em alguns países, apenas o intelectual neutro parece legítimo. É reconhecido a ele o título de intelectual só se permanecer “de fora” e não se posicionar. Em vez disso, Francisco decide acolher aqui toda uma série de artistas que decidem de que lado ficar, e lhes dá uma posição central. O Papa narra uma outra história: o artista é aquele que escolhe contar a beleza, ou seja, a verdade. Tudo isso me impressionou e me fez entender que esse é um programa político.
Em que consiste?
Na possibilidade de indicar nos artistas um caminho para lutar contra as injustiças. E é muito bom.
Estar aqui - ao lado de tantos outros personagens extraordinários, como Michela Murgia, Sandro Veronesi, Ken Loach - é um encorajamento muito importante em uma fase tão complexa para a liberdade de expressão.
Você concorda com a descrição de vocês, artistas, oferecida pelo Pontífice?
Sim. Ele sublinhou a necessidade de olhar para o horror humano para tirar disso a beleza. Ou seja, a verdade. A verdade é beleza. E a beleza não é só cosmética ou equilíbrio das figuras, como destacou o Papa: aquela é “uma beleza falsa, cosmética, uma maquiagem que esconde em vez de revelar”. E, além disso, é esclarecedora a diferença que Francisco indicou entre equilíbrio e harmonia: “Para criar a harmonia, é preciso primeiro o desequilíbrio”.
Você pode nos explicar?
A harmonia não é o equilíbrio. Não é necessariamente a soma de equilíbrios, pelo contrário, é a convivência de muito caos. Isso significa que nunca é objetiva ou universal, mas é um caminho. Um caminho de verdade. É uma mensagem realmente avassaladora, sobretudo porque é transmitida por um Papa, por este Papa, que é o último verdadeiro trabalhista do mundo…
Por que essa distinção chamou a sua atenção?
Ela me surpreendeu, realmente não esperava isso de um pontífice. Podemos não ter equilíbrio, mas temos harmonia. É um pensamento poderoso e fascinante. Isso nos permite entender que os nossos não são limites, mas fronteiras. É uma maravilhosa lição de liberdade. É um hino à diversidade e à possibilidade de acolher a liberdade como verdadeira essência da criatividade. Eu que não sou crente me senti acolhido. E ouvir esse ensinamento na Capela Sistina, imersos em todo o “movimento” que Michelangelo quis colocar nela, foi envolvente. É um manifesto. Nasceu uma nova forma de oposição à feiura e ao terror produzidos por aqueles que usam o instrumento de propaganda. Foi um ato de contratendência. Aqui a palavra torna-se uma receita, não uma arma nem uma ameaça.
E o apelo a não esquecer "os pobres"?
É fundamental, porque narrar a pobreza significa trazer à tona as contradições e, portanto, não ter medo de revelar as dinâmicas viciosas do poder. O Papa nos disse que “geralmente os pobres não têm voz para se fazer ouvir. Vocês podem se fazer intérpretes de seu grito silencioso”.
Como ateu, foi uma solicitação que recebi com muita força. É um projeto artístico: “Cuide da ferida”.
Pode-se dizer que Francisco propôs uma aliança entre fé e arte para o bem da humanidade?
Sim. O Pontífice vê a arte como um instrumento de justiça. Isso é muito emocionante, mesmo para os não-crentes. É como se tivesse pedido um programa comum: vamos contar e mudar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Os governos difamam quem toma partido, mas Francisco está do nosso lado”. Entrevista com Roberto Saviano, escritor italiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU