26 Junho 2023
Talvez seja precisamente por isto que o templo (o da democracia, mas também o da Igreja) está cada vez mais vazio: porque é realmente difícil encontrar uma autoridade que, com a competência e a credibilidade de Ambrósio, saiba dizer não em nome de valores que não podem ser comprados nem vendidos.
O comentário é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado no caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 23-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por volta de 1615, Peter Paul Rubens pintou este quadro soberbo, talvez encomendado por um cliente genovês e que logo acabou nas coleções imperiais. Toda a cor de Ticiano voltava à vida, inchando sob o siroco de um estilo novo, que logo seria chamado de Barroco: gestos eloquentes, vestes suntuosas, céus cheios de eletricidade construíam uma narrativa cheia de pathos. Assim, a história passada tornava-se contemporânea: viva.
Peter Paul Rubens, Santo Ambrósio impede que o imperador Teodósio entre na igreja, óleo sobre tela, 1615-1617, Kunsthistorisches Museum Vienna (Foto: Wikimedia)
Neste caso, a história diz respeito a Ambrósio, o santo bispo de Milão: que, segundo uma tradição muito amada, mas também muito discutida, teria impedido o imperador Teodósio de entrar na igreja (e Rubens imagina que aquela igreja fosse a Catedral de Milão, representada como um templo da segunda metade do século XVI), porque este havia se manchado horrivelmente de sangue ao reprimir uma revolta popular em Tessalônica.
Nas mãos de Rubens, esse episódio torna-se inesquecível: a força bruta do poder, representada pelo séquito militar do imperador, é travada pelo inerme prestígio espiritual do bispo e de seu clero. O sentido é claro: nem tudo está à disposição do poder deste mundo. Há um juízo moral: e há quem, em nome desse juízo moral, diz não.
Se você é o imperador, certamente pode fazer o que quiser: pode massacrar uma multidão inteira. Mas não pode esperar ser acolhido na igreja como se nada tivesse acontecido.
Após a morte do ex-primeiro minsitro italiano Silvio Berlusconi (foto), Tomanasi, como reitor universitário, recusou-se a obedecer o luto oficial de três dias no país (Foto: Reprodução | Wikimedia Commons)
Pois bem, causa uma certa impressão olhar para essa cena hoje. Justamente hoje que a Catedral de Milão foi curvada para santificar, em uma liturgia religiosa e civil, alguém que usou seu poder para derrubar praticamente todos os valores religiosos e civis. Hoje que não há na Itália, nem na Igreja nem no Estado, um Ambrósio capaz de estender a mão e dizer 'não'.
Hoje esse quadro retrataria apenas um lado: o do poder (de terno transpassado e risca de giz, não de armadura; talvez com algum fuzil ao fundo...), e a porta da catedral estaria escancarada. E talvez seja precisamente por isto que o templo (o da democracia, mas também o da Igreja) está cada vez mais vazio: porque é realmente difícil encontrar uma autoridade que, com a competência e a credibilidade de Ambrósio, saiba dizer não em nome de valores que não podem ser comprados nem vendidos.
Mas são justamente esses “nãos” que precisaríamos ver: com a mesma nitidez e a mesma incisividade de que a pintura de Rubens era capaz.
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A Igreja que sabia dizer não. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU