Por: Ricardo Machado | Tradução: Vanise Dresch | 12 Outubro 2017
Para o professor e pesquisador italiano Maurizio Lazzarato, a verdadeira biopolítica é a política da dívida. Sem meias palavras, ele vai ao ponto quando se trata de definir as categorias políticas que orientam a vida contemporânea. “Prefiro falar de política da dívida, por ser um termo mais exato no que se refere à nossa sociedade. A dívida, isto é, a moeda como capital financeiro, é uma abstração de ordem superior àquela do trabalho, da representação democrática e do poder político que se constituíram dentro do Estado-Nação”, destaca Lazzarato em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
De acordo com Lazzarato, esse modo de organização da vida a partir das dinâmicas da dívida produz um tipo muito particular de “liberdade”, em que a população fica à deriva dos humores do financeirismo. “Enquanto na fase expansiva da ‘valorização’ a governamentalidade insufla liberdades aos governados, no momento em que a crise impõe a necessidade de encontrar novas fontes de lucro, o capital entra numa fase de ‘desvalorização’, isto é, de destruição do capital constante e do capital variável (a população)”, explica.
Além disso, lembra o autor, o capitalismo não precisa de democracia. “A única democracia que os liberais conceberam foi a censitária, a democracia dos proprietários. A democracia ‘para todos’ nunca foi um objetivo do capitalismo nem dos liberais. Ela foi imposta, começando pelo sufrágio universal, pelas lutas do movimento operário, no século XIX. O declínio deste, sob os assaltos da finança, provoca uma queda vertiginosa da ‘democratização’”, pontua. “A dívida é uma máquina de guerra composta por automatismos financeiros, normas sociais e uma estratégia política. Precisaríamos pensar as relações entre máquinas técnicas, máquinas de guerra e estratégia”, complementa.
Lazzarato | Foto: Frame Yt
Maurizio Lazzarato é sociólogo independente e filósofo italiano que vive em Paris, onde realiza pesquisas sobre trabalho imaterial, ontologia do trabalho, capitalismo cognitivo e movimentos pós-socialistas. É cofundador da revista Multitudes com o filósofo Antonio Negri. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem. Lazzarato participa de ações e reflexões sobre os “intermitentes do espetáculo” no âmbito da CIP-idf (Coordination dês Intermittents et Précaires d’Île-de-France), onde coordena uma importante “pesquisa-ação” sobre o estatuto dos trabalhadores e profissionais do espetáculo e do mundo das artes, além de outros trabalhadores precários. É autor de diversos livros, dos quais destacamos Experimental Politics: Work, Welfare, and Creativity in the Neoliberal Age (Massachusetts: MIT Press, 2017), Signos, Máquinas, Subjetividades (São Paulo: n-1 edições/Edições Sesc São Paulo, 2014) e La fábrica del hombre endeudado: Ensayo sobre la condición neoliberal (Buenos Aires-Madrid: Amorrortu Editores/2013). Além do livro já citado em português, Lazzarato lançou no Brasil Trabalho Imaterial - Formas de Vida e Produção de Subjetividade (Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2004 - Escrito com Antonio Negri), Governo das Desigualdades Crítica da Insegurança Neoliberal (São Carlos: Editora Edufscar, 2012) e As Revoluções do Capitalismo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, (2006).
Maurizio Lazzarato estará na Unisinos, na próxima terça-feira, dia 17-10-2017, proferindo a conferência "A era do homem endividado", que integra a programação do IX Colóquio Internacional IHU A Biopolítica como teorema da bioética, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Confira a Entrevista.
IHU On-Line – De que forma podemos compreender a estratégia biopolítica dos ciclos das crises financeiras na sua relação com a emergência do homem endividado?
Maurizio Lazzarato – A política da dívida afeta diferentemente todas as camadas sociais e todas as dimensões da vida. Ela atinge o emprego, a aposentadoria, os cuidados médicos, a formação, o auxílio à moradia, todas as políticas sociais etc. A política da dívida é a “verdadeira” biopolítica, ou seja, a modalidade de governamentalidade [1] da sociedade contemporânea em seu conjunto.
IHU On-Line – De que ordem é a figura subjetiva do homem endividado?
Maurizio Lazzarato – O homem endividado é o objeto da biopolítica. Todo mundo está endividado por meio da dívida pública, mesmo que, pessoalmente, você não tenha contraído nenhuma dívida. Esse deslocamento da governamentalidade foi feito estrategicamente pelo capital financeiro a partir do início da década de 1970. Em Nascimento da biopolítica (São Paulo: Martins Fontes, 2008), Foucault [2] não percebe a ação estratégica da finança, pois, em seu livro, a questão da moeda não é abordada. Ele trata da moeda apenas em 1971, referindo-se à origem desta na Grécia Antiga, e sua argumentação associa estreitamente a guerra civil, a moeda e a dívida. Penso que é necessário referir-se ao Foucault de 1971, pois a relação entre dívida, guerra e moeda constitui o fundamento da biopolítica contemporânea. A governamentalidade neoliberal é uma governamentalidade da “guerra civil”.
IHU On-Line – Como as relações biopolíticas no neoliberalismo produzem a tripla desapropriação do poder político, enfraquecido pela democracia representativa, dos direitos conquistados em lutas históricas dos trabalhadores e a desapropriação do futuro?
Maurizio Lazzarato – A definição de biopolítica é demasiadamente geral, no meu entender. Prefiro falar de política da dívida, por ser um termo mais exato no que se refere à nossa sociedade. A dívida, isto é, a moeda como capital financeiro, é uma abstração de ordem superior àquela do trabalho, da representação democrática e do poder político que se constituíram dentro do Estado-Nação. A moeda/dívida promove a desterritorialização. A captura exercida pelo Capital não ocorre por isolamento, mas pela desterritorialização promovida pela moeda. Ela age além das fronteiras do Estado-Nação, utilizando-o, ao mesmo tempo, para reterritorializar suas políticas, uma vez que o controle do mercado de trabalho, do bem-estar social etc. continua sendo um objetivo do Estado.
IHU On-Line – O que significa ser livre na era do homem endividado? Estamos diante da “liberdade do súdito”, como diria Foucault?
Maurizio Lazzarato – As relações de poder requerem “liberdade” para os dois termos da relação. A governamentalidade somente pode funcionar se aos governados for reconhecida uma “liberdade”, uma possibilidade de “resistir”, de “fugir”, que, na realidade, é o modo de funcionamento da biopolítica.
Mas o conceito foucaultiano de liberdade é muito problemático. Os governados são “livres” porque gozam de uma liberdade fabricada, favorecida e incentivada pelos governantes (aquela do “trabalhador livre”, do “consumidor livre”, do “eleitor livre”), ou então porque se afirmam “livres” na luta e mediante a luta contra as “liberdades” liberais (luta dos operários, das mulheres, dos colonizados, dos estudantes, lutas dos anos 1950 e 1960 etc.). A primeira forma de liberdade é concedida, já a segunda é conquistada pela luta.
O capitalismo do New Deal [3] e, depois dele, a Guerra Fria [4] geraram novas formas de liberdade. As “liberdades” liberais, além de serem uma fabricação do capital, têm outra característica fundamental que nem os liberais nem Foucault evidenciaram: elas são estritamente indexadas pelo ciclo do capital. Sua existência e duração dependem das transformações de processos de valorização.
No capitalismo contemporâneo, o conceito de governamentalidade só é operacional se for compreendido como governo desse ciclo. Articula-se em governamentalidade micropolítica (gestão, empresa, educação, serviços para o bem-estar social etc.) e governamentalidade macroeconômica e macropolítica (gestão da moeda, da dívida etc.), produzindo ou destruindo liberdades conforme a dinâmica da desvalorização do capital.
Enquanto na fase expansiva da “valorização” a governamentalidade insufla liberdades aos governados, no momento em que a crise impõe a necessidade de encontrar novas fontes de lucro, o capital entra numa fase de “desvalorização”, isto é, de destruição do capital constante e do capital variável (a população). A destruição pode ir desde o desemprego até a queda do salário, da redução dos gastos sociais ao deslocamento da produção, à guerra civil e à guerra. É no exato momento de reversão do ciclo que a governamentalidade produz justamente o contrário da liberdade e da democracia. Ela gera o empobrecimento e neofascismos.
A sequência neoliberal ilustra perfeitamente essa mudança na governamentalidade. As novas “liberdades” das décadas de 1980 e 1990 reverteram-se em uma guerra contra populações, travada obstinadamente pelas elites liberais desde a “crise” financeira.
Quando a valorização do Capital encontra obstáculos, quando é bloqueada (até mesmo pela própria lógica interna da valorização) ou posta em perigo por uma “revolução”, a destruição da população e do “capital humano” se dá com um cinismo irrefreável. Sem falar do destino reservado aos “excedentes”. A intensidade da destruição é apenas proporcional à resistência política da população, sem nenhuma relação com sua “qualidade” e sua “ontologia”.
Um Foucault um pouco mais aguerrido do que à época de sua aula sobre o liberalismo em 1979 enuncia, com muita clareza, alguns anos depois: “Se a população é sempre a instância pela qual o Estado vela em seu próprio interesse, fica claro que o Estado pode massacrá-la em caso de necessidade. A tanatopolítica é assim o reverso da biopolítica”.
A tanatopolítica pode visar tanto uma população analfabeta quanto uma população altamente qualificada, na medida em que não remete à ontologia do “capital humano”, mas, primeiramente, a relações estratégicas. A estratégia do capital pode revelar-se absolutamente indiferente à “qualidade” da população, principalmente quando o seu poder ou a sua rentabilidade estão em perigo.
IHU On-Line – Em um mundo cujas relações sociais são mediadas pela dívida, ainda faz sentido falar em democracia?
Maurizio Lazzarato – O capitalismo não precisa da “democracia”. A única democracia que os liberais conceberam foi a censitária, a democracia dos proprietários. A democracia “para todos” nunca foi um objetivo do capitalismo nem dos liberais. Ela foi imposta, começando pelo sufrágio universal, pelas lutas do movimento operário, no século XIX. O declínio deste, sob os assaltos da finança, provoca uma queda vertiginosa da “democratização”.
É preciso reconhecer que o funcionamento do poder a partir da liberdade democrática dos governados não é generalizável no capitalismo. Na China, como em grande parte da Ásia Oriental, o capitalismo pode funcionar precisamente a partir de uma nova elaboração do “modo de produção asiática”. Mesmo no Japão democrático, não é nem a liberdade, nem o individualismo que caracterizam o modelo governamental, mas uma máquina de guerra que consegue governar a população por “automatismos”, organizando os comportamentos de maneira mais estável e mais previsível do que na Europa ou nos Estados Unidos.
IHU On-Line – De que forma podemos compreender o trabalho imaterial na era da Revolução 4.0?
Maurizio Lazzarato – Abandonei o conceito de trabalho imaterial logo após tê-lo forjado. Penso que não é uma categoria útil, mas exigiria muito tempo explicar por quê.
IHU On-Line - Sobrará espaço para a subjetividade humana na era da massiva robotização do trabalho?
Maurizio Lazzarato – A robotização não exclui a subjetividade humana; pelo contrário, ela requer o seu deslocamento. Gilbert Simondon [5] já havia explicado isso a respeito das máquinas automáticas cibernéticas (autorreguladoras). Se, a rigor, o “trabalho” chegasse ao absurdo de ser totalmente robotizado, toda a sociedade trabalharia para o seu funcionamento. Não existe nenhuma possibilidade de eliminar a subjetividade, uma vez que a máquina é sempre um agenciamento, um acoplamento do homem com a máquina.
IHU On-Line – Como subverter a máquina da dívida infinita?
Maurizio Lazzarato – Seria necessário começar pela distinção entre máquina técnica e máquina social (ou máquina de guerra). A dívida é uma máquina de guerra composta por automatismos financeiros, normas sociais e uma estratégia política. Precisaríamos pensar as relações entre máquinas técnicas, máquinas de guerra e estratégia, como tentou fazer Foucault entre 1971 e 1976. Em vez de abandonar a guerra enquanto modelo da relação de poder, como fez Foucault depois de 1976 com o conceito de governamentalidade, deveríamos pensar esta última como articulação de uma estratégia de guerra. Mas estamos longe disso.
Notas:
[1] Segundo Foucault, o neologismo governamentalidade designa o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer uma forma bem específica de poder. (Nota da tradutora)
[2] Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte), situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004; edição 203, de 6-11-2006; edição 364, de 6-6-2011, intitulada 'História da loucura' e o discurso racional em debate; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-9-2010, e edição 344, Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um debate. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação, Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line)
[3] New Deal: nome dado às reformas executadas por Roosevelt nos EUA, a partir de 1933, que consagrava certa intervenção do Estado nos domínios econômico e social. (Nota da IHU On-Line)
[4] Guerra Fria: nome dado a um período histórico de disputas estratégicas e conflitos entre Estados Unidos e União Soviética, que gerou um clima de tensão que envolveu países de todo o mundo. Estendeu-se entre o final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a queda da União Soviética (1991). (Nota da IHU On-Line)
[5] Gilbert Simondon (1924-1989): foi um filósofo e tecnólogo francês com conhecimentos em mecânica, eletrônica, hidráulica e termodinâmica. Nascido em Saint-Étienne, estudou na Ecole Normale Supérieure e na Sorbonne, obtendo nessa última o doutoramento, em 1958. Foi aluno de Georges Canguilhem, Martial Guéroult e Maurice Merleau-Ponty; sua obra perpassa investigações em tecnologia, técnica, estética e individuação. Sua tese complementar de doutorado Du mode d'existence des objets techniques, publicada em 1958, teve repercussão imediata pelo caráter ousado da proposta antifenomenológica e não tecnofóbica, apresentada por Simondon para se pensar a gênese dos objetos técnicos, exigindo como análise destes o tratamento específico de suas realidades, de seus funcionamentos e utilizações. Conquanto a relevância de sua obra, Simondon é ainda pouco lido, embora esporadicamente citado. Sua tese principal foi dividida em duas partes para publicação: L'individu et sa gènese physico-biologique (1964) e L'individuation psychique et collective à la lumière des notions de forme, information, potentiel et metaestabilité (1989). (Nota da IHU On-Line)
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A política da dívida é a “verdadeira” biopolítica. Entrevista especial com Maurizio Lazzarato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU