Por: André | 06 Julho 2015
Também ele daria o divórcio “por causa da dureza do coração”, como nos tempos de Moisés. O padre Innocenzo Gargano reinterpreta dessa maneira as palavras de Jesus sobre o matrimônio. Novos desdobramentos da discussão.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada por Chiesa, 03-07-2015. A tradução é de André Langer.
Mesmo que o documento preparatório da próxima sessão do Sínodo sobre a Família puxe com força o freio, os partidários de uma mudança da doutrina e/ou da prática da Igreja sobre o matrimônio não cruzaram os braços.
Seu mais célebre representante, o cardeal Walter Kasper, voltou a defender com força sua tese em um artigo publicado no número de julho da revista católica alemã Stimmen der Zeit, disponível também na íntegra em sua tradução italiana.
A este artigo de Kasper respondeu rapidamente o professor Juan José Pérez-Soba, do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre o Matrimônio e a Família, da Universidade Lateranense de Roma.
A comunhão aos divorciados recasados é de longe a questão mais discutida. Efetivamente, suas implicações são enormes. Está em jogo a admissão ou não do divórcio na Igreja católica, assim como também uma revolução na relação entre justiça, verdade e misericórdia, com toda a vantagem para esta última.
Nesta direção expressou-se recentemente a La Civiltà Cattolica – a revista dos jesuítas de Roma impressa com o “placet” da cúpula vaticana e dirigida por um íntimo amigo do Papa Francisco, o Pe. Antonio Spadaro – com um editorial do jesuíta Gian Luigi Brena, filósofo e antropólogo.
Mas as teses do Pe. Brena provocaram uma resposta muito firme do cardeal Carlo Caffarra, arcebispo de Bolonha e grande especialista em teologia da família, também muito estimado pelo Papa Francisco. Com um comentário crítico desde o título.
E cuja conclusão não é menos afiada: “Falar de prioridade da misericórdia no sentido de que ela legitima exceções para uma lei, faz sentido somente no seio de uma construção legalista: na reflexão ética é um capítulo encerrado!”
Em sua nota, o cardeal Caffarra não deixou de rechaçar também as “exceções” à proibição da comunhão para os divorciados recasados, defendidas em maio, sempre na La Civiltà Cattolica, pelo teólogo dominicano Jean-Miguel Garrigues, entrevistado pelo Pe. Spadaro.
Exceções já criticadas anteriormente por outros teólogos.
Como podemos ver, a quase totalidade da discussão desenvolvida até aqui insiste na doutrina e na ação pastoral da Igreja, isto é, sobre sua “tradição”.
Mas há também quem percorre caminhos diferentes e mais audaciosos, indo diretamente às origens, ou seja, às palavras de Jesus nos Evangelhos sobre o matrimônio e o divórcio.
É o que está fazendo há um bom tempo um biblista e patrólogo de grande reputação, Guido Innocenzo Gargano, religioso camaldulense, ex-prior do mosteiro romano de San Gregorio al Celio, professor no Pontifício Instituto Bíblico e na Pontifícia Universidade Urbaniana.
No inverno passado, em um ensaio publicado na revista quadrimestral de teologia Urbaniana University Journal, o Pe. Gargano defendeu que no reino dos céus pregado por Jesus – de acordo com suas próprias palavras – há lugar também para quem usufrui da concessão mosaica do repúdio pela “dureza do coração”.
A exegese do Pe. Gargano (citada pelo cardeal Kasper em seu artigo na Stimmen der Zeit) suscitou, naturalmente, vivas reações. E quatro dentre elas – a última das quais é a de Luis Sánchez Navarro, professor ordinário de Novo Testamento na Universidade São Dâmaso de Madri – ganharam espaço no blog Settimo Cielo, que complementa este sítio.
Mas agora o Pe. Gargano volta a campo com um novo ensaio, no qual responde aos críticos e desenvolve ainda mais sua exegese das palavras de Jesus sobre o matrimônio e o divórcio.
Um dos fundamentos da sua interpretação é a suposta proximidade de Jesus com uma corrente do judaísmo da época, a dos “essênios moderados”, que se inspiravam simultaneamente em duas leis: uma, estável, eterna, “escrita nas estrelas”, anterior a Abraão e Noé; e a outra, mais condescendente, era a de Moisés, e que, ao contrário, ia ao encontro do homem concreto e de sua “dureza de coração”. A partir deste transfundo e da afirmação de Jesus de que “não veio par abolir a lei [de Moisés], mas para completá-la”, o Pe. Gargano diz que “chegou à conclusão de que Jesus não tentou abolir o divórcio permitido por Moisés, mas que assinalou a possibilidade de servir-se dele para alcançar o objetivo pretendido pelo Pai desde o começo da criação do homem e da mulher”.
O novo ensaio do Pe. Gargano foi escrito em forma de carta dirigida ao coordenador deste sítio. Na sequência será reproduzido um trecho dessa carta.
Mas o texto completo é sete vezes maior. E é em sua totalidade de grande interesse, desde a gentil polêmica inicial com o cardeal Gerhard L. Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, até a brilhante citação final da Divina Comédia, de Dante, tirada do terceiro canto do Paraíso, no qual Piccarda é tomada como símbolo dos “mínimos” que encontram lugar no reino dos céus.
Mesmo quem dissente – e serão muitos, muitíssimos – poderá de um modo ou de outro reconhecer que aqui está em jogo a vontade de aderir às palavras de Jesus compreendidas corretamente. E não a vontade de aderir ao espírito do tempo, como acontece, ao contrário, em grande parte das atuais reivindicações para a admissão do divórcio na Igreja católica.
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Extrato de: A lei de Moisés e a proposta de Jesus sobre o matrimônio, por Innocenzo Gargano
[...] Confrontado com a questão “É lícito ou não é lícito?”, Jesus responde serenamente, segundo o Evangelho de São Mateus: “O que está escrito no livro do Gênesis?” Pois bem, esses capítulos do Gênesis referem-se certamente ao que acontecia na época anterior a Noé, e também a fortiori na época pré-mosaica, que ficou marcada, na história, com o selo de uma enorme tragédia – o dilúvio universal – que perturbou o mundo e os projetos de Deus.
Portanto, deveríamos poder concluir que Moisés constatou que esse ponto de chegada evidentemente desejado por Deus no princípio do mundo, segundo a tradição registrada pelo livro do Gênesis, não era tão fácil de atingir; e por causa do respeito, desejado pelo próprio Deus, à livre escolha do homem, decidiu propor, não sem a condescendência de Deus, uma aproximação gradual com esse ideal! E o que impediria de concluir que também Jesus se alinhou com Moisés, ao responder aos interlocutores de que fala o Evangelho segundo São Mateus? [...]
E então, quando Jesus respondeu “Moisés permitiu o divórcio, porque vocês são duros de coração” para viver em liberdade (Cf. Mt 19, 8); apesar da própria fraqueza, não poderia talvez tratar-se de uma atenção ao homem concreto, sim, precisamente ao homem pecador e que não deixa de olhar fixamente para o objetivo que deve alcançar, mas que lamentavelmente é obrigado simplesmente a tomar consciência dos seus próprios limites, concluindo que entre o desejo buscado e a realização desse desejo, há uma vida inteira e as inevitáveis fragilidades humanas, próprias e alheias? Estamos verdadeiramente legitimados pelas palavras de Jesus a não oferecer outra possibilidade ao pecador arrependido que reconhece seus equívocos, mas que está sinceramente decidido a recomeçar novamente?
Quem tiver um mínimo de experiência pastoral sabe muito bem quanto sofrimento se esconde em numerosas situações pessoais deste tipo. E sabe também quanta crueldade se pode esconder nessa “dura lex sed lex” dos nossos tribunais humanos!
A isto se acrescenta que Jesus declara explicitamente: “Não vim abolir a lei de Moisés, mas dar-lhe pleno cumprimento” (Mt 5, 17), ou seja, torná-la realidade, concretizá-la. [...] A partir desta frase cheguei à conclusão de que Jesus não pretendia abolir a autorização de Moisés, mas que, pelo contrário, indicava a possibilidade de servir-se dela para alcançar o objetivo previsto pelo Pai desde o começo da criação do homem e da mulher.
Na realidade, Jesus veio como aquele que se inclina para aqueles que são incapazes de sair. Inclina-se para o fraco, inclina-se para o pecador, inclina-se para o publicano, inclina-se para o paralítico, inclina-se para uma mulher da rua. Jesus parte da situação histórica e concreta da pessoa humana. Não veio para julgar ou para condenar, mas para salvar, e isto significa para dar ao homem uma energia nova – explicitada pelo perdão – para entrar novamente, apesar de tudo, no caminho que leva à salvação, tomando consciência de que não pode fazer isto por si mesmo. Em consequência, estende-lhe a mão! Esta benevolência de Jesus não suprime de jeito algum o ideal do que “deveria” e para o qual “devemos caminhar todos”, mas tomava consciência de que o caminho do indivíduo podia ser, e pode ser também hoje, um caminho diferenciado.
Ao descobrir estas coisas comecei a me dar conta de que Jesus faz uma distinção entre grandes e pequenos. Ao escriba que ensinava a amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças, e a amar o próximo como a si mesmo, Jesus responde: “Não estás longe do Reino de Deus” (Mc 12, 34), deixando entrever um homem coerente e decidido que poderia ser definido como “grande”. No entanto, isso não impede de que Jesus acolha com simpatia e misericórdia também os simples, os pequenos, que não chegam a observar a lei até a “iota unum”. [...]
Um outro ponto da minha exposição parte da consideração feita por Jesus no mesmo contexto, que eu sintetizo deste modo: há alguns que, por caminhos diferentes, podem estar ligados pela natureza, outros pela violência dos homens, outro ainda por uma escolha livre. Mas todos deveriam buscar compreender em que medida são postos por Deus como profecias de uma realidade nova que vai além dos limites da natureza, das imposições humanas e inclusive da própria escolha livre, admitindo simultaneamente outra coisa muito importante, a saber, que há em todos os homens um mistério que não é fácil de compreensível do ponto de vista humano. Dali a observação final de Jesus: “Quem puder entender, entenda” (Mt 19, 12b).
Na exegese tradicional, a expressão “quem puder entender, entenda” sempre estava referida ao voto da virgindade, como se Jesus se referisse aqui à dimensão profética do irmão ou da freira. Na realidade, parece que a expressão “quem puder entender, entenda” deve ser entendida sobretudo no contexto da resposta que Jesus dá sobre a problemática relativa ao repúdio no marco da fidelidade matrimonial.
Para entender melhor a declaração feita por Jesus se poderia, além disso, fazer referência ao sermão da montanha tomado em seu conjunto, no qual Jesus dá determinadas indicações. Ora, trata-se justamente de indicações e não de coisas que são para pegar ou deixar, ou de um ultimato. Como quando, por exemplo, Jesus diz “bem-aventurados os pobres”, ao que São Mateus acrescenta: “de espírito” (Mt 5, 3). Trata-se, neste caso, de uma formulação limitativa? Ou não estaríamos diante de uma indicação de um caminho, no sentido de: caminhem pela senda da realização da pobreza, crescendo na confiança depositada unicamente em Deus, apesar de que este objetivo permaneça em trânsito sem nunca chegar a se realizar de forma plena como gostaríamos que fosse? E poderíamos acrescentar também um subentendido deste tipo: cuidado com o fato de que, se vocês se deixam levar ou frear por coisas que não estão de acordo com a felicidade dos pobres, poderão correr o risco de não entrar em absoluto no reino dos céus!
Em consequência, se o que declara a letra da lei mosaica, com tudo o que se deveria buscar sistematicamente nela, como “spiritus”, é uma orientação de vida na qual, o que está em jogo é justamente a vida eterna e, eventualmente, a felicidade na terra, é absolutamente importante levá-la a sério. Mas isto significa também não abolir a lei de Moisés a favor de quem sabe qual idealidade perfeccionista, mas acima de tudo dar-lhe confiança, aceitando a sabedoria intrínseca também quando “respeita” a nossa “dureza de coração”.
Em suma, temos continuar a confiar em Moisés, como fez justamente Jesus, e não decidir abolir por completo suas indicações. Jesus não veio para abolir Moisés, mas para favorecer seu cumprimento. Com efeito, sua Lei não é fixista, não é perfeccionista, mas dinâmica. E se isto vale para as bem-aventuranças, podemos estar bastante certos de que também valerá para todos os outros ensinamentos de Jesus mencionados no Novo Testamento.
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O que diria Jesus se fosse um padre sinodal? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU