24 Março 2014
Antes do início da Comissão sobre o Status da Mulher – reunião anual com duração de duas semanas que conta com representantes dos Estados membros da ONU para discutir os progressos no sentido da igualdade de gênero e empoderamento da mulher –, houve uma inquietação no aparente silêncio do Vaticano sobre o teor do documento final da conferência.
A reportagem é de Liz Ford, publicada pelo jornal The Guardian, 20-03-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Teria a Santa Sé, que possui acento na ONU como Estado observador permanente não membro, decidido ficar fora das discussões este ano? Estaria ela discretamente influenciando as ações de países com grande população católica sem se expor? Teria ela entrado nas negociações tardiamente? Parece que a opção foi por este último.
Nesta semana a Santa Sé se apresentou nos debates exigindo a retirada, no documento final da Comissão sobre o Status da Mulher, das referências às profissionais do sexo, aos direitos das lésbicas, gays, transexuais e bissexuais, além do palavreado envolvendo os direitos sexuais e direitos reprodutivos – em particular o relacionado ao aborto e à educação sexual. Também compreende-se querer que o documento relacionado inclua referências explícitas à importância da família. Quando o Vaticano fala sobre este assunto, ele quer dizer em sentido tradicional, nuclear: um homem, uma mulher e seus filhos.
Embora não haja motivo algum para crer que estas exigências atrapalhem as negociações – o Vaticano publicou comunicados relacionados aos direitos sexuais e direitos reprodutivos no ano passado, mas, após uma batalha, um contundente documento resultou da Comissão –, a referência particular à “família” desencadeou alguns pontos a seres observados.
Os defensores dos direitos da mulher afirmam que a formulação usada ao se falar sobre a família pode reforçar os papéis e estereótipos de gênero: as mulheres como esposas, mães, donas de casa. E pode também ignorar a diversidade das famílias: famílias monoparentais, casas chefiadas por filho ou por mulher, ou famílias homoafetivas.
Os defensores aqui sustentam o acréscimo de um parágrafo apenas, que estaria relacionado ao papel da família: o reconhecimento de sua diversidade.
Os defensores dos direitos da mulher estão acostumados com as lutas, em particular contra o Vaticano, contra outros grupos religiosos e governos mais conservadores. Mas há um sentimento de que, este ano, o Vaticano esteja começando a perder um pouco de sua influência.
Shannon Kowalski, diretora de defesa e política na Coalizão Internacional pela Saúde da Mulher, diz que um resultado positivo vindo da conferência dos Estados latino-americanos e caribenhos – que concordaram em fortalecer as políticas em favor das mulheres em suas sociedades – é o isolamento da Santa Sé quanto à sua base tradicional de apoio.
Kowalski afirma que não se incomoda com as exortações vaticanas sobre os direitos sexuais e direitos reprodutivos, mas teme que problemas possam vir de um outro lado. A União Europeia e os Estados Unidos não estão felizes com o que se diz em torno do comércio, da justiça econômica da mulher e da mudança climática.
“Estamos começando a assistir um monte de debates tradicionais de norte a sul sobre o comércio, sobre a mudança climática e outros assuntos”, diz ela. “Estes têm mais potencial para barrar as negociações”.
Outras forças contrárias vêm do bloco de países africanos, que mais uma vez ficaram do lado da cláusula de soberania, que, com efeito, é uma carta na manga dos governos que lhes permite assinar o documento final, ignorando os aspectos dos quais não gostam: em geral, os aspectos que poderiam potencialmente restringir práticas culturais e religiosas. Um parágrafo semelhante de soberania foi incluído no documento do ano passado, porém foi retirado ao final sob a condição de que as referências às profissionais do sexo, e aos direitos das lésbicas, dos gays, bissexuais e transgêneros fossem também retiradas. Um acordo similar é esperado este ano.
Também há uma batalha sobre as referências a financiamentos para organizações de direitos da mulher. Entende-se que o Reino Unido esteja defendendo um tom mais forte aqui, em comparação a países – entre estes os EUA, a Rússia e os Estados caribenhos – que querem uma linguagem mais diluída.
Claro, há muitos aspectos positivos no projeto de texto sobre os quais há amplo acordo: uma meta independente sobre a igualde de gênero a ser incluída nas próximas metas de desenvolvimento após 2015; claras referências à proteção da mulher e meninas contra a violência, incluindo o fim a práticas nocivas tais como mutilação genital feminina, casamento infantil e crimes “de honra”; a proteção aos ativistas dos direitos da mulher no trabalho; e o cumprimento do papel crucial que as mulheres desempenham nas negociações de paz e segurança. O documento final deve sair em 21 de março.
Embora ninguém irá ser complacente, os pequenos sinais de que estão perdendo força os que lutam para combater os direitos das mulheres duramente conquistados serão animadores para os ativistas. No futuro isso poderá significar que menos tempo perdido em discutir o palavreado será o mesmo que ter mais tempo para discutir a implementação de políticas e garantir que os governos se responsabilizem, o que serão ótimas notícias para as mulheres de todo o mundo.
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O Vaticano quebra o silêncio na conferência sobre igualdade de gênero na ONU - Instituto Humanitas Unisinos - IHU