18 Março 2022
"Segundo os critérios de noticiabilidade que a mídia ocidental vem aplicando, a guerra na Ucrânia merece as horas de informações e reportagens preparadas por comentaristas, analistas e jornalistas. Afinal de contas, trata-se de um conflito em território europeu, envolvendo gente branca, com algum poder aquisitivo, e repercutindo enormes consequências para o comércio mundial. E os demais conflitos? Bem, estão em zonas periféricas...".
O artigo é de Edelberto Behs, jornalista.
A pauta noticiosa das emissoras de rádio e de TV brasileiras mudou, maciçamente, da cobertura da pandemia do covid-19 – mortes, hospitalizações, vacinação – para a cobertura da guerra na Ucrânia, iniciada pela Rússia no dia 24 de fevereiro. Em 20 dias de guerra ouvintes, telespectadores, internautas receberam mais informações do Leste europeu do que dos demais conflitos em andamento no mundo.
A guerra Rússia x Ucrânia pôs a nu critérios de noticiabilidade da imprensa comercial, hegemônica, o que interessa mostrar, divulgar, propagar, e o que importa que seja omitido. Na última década, em pleno século XXI, o número de conflitos armados duplicou no mundo. Quem, afora especialistas, estudiosos, generais, populações afetadas, se deu conta dessa realidade?
“Estimamos que 23 países, com uma população combinada de 850 milhões de habitantes, estejam atualmente enfrentando conflitos de média e alta intensidade”, informou o presidente do Banco Mundial, David Malpass, no Fórum sobre Fragilidade, evento que acontece a cada dois anos e que em 2022 concentrou-se no “desenvolvimento e à paz em tempos incertos”.
Não resta dúvida: a guerra na Ucrânia deve preocupar o mundo pela desumanidade que ela provoca em número de óbitos, refugiados, famílias sem lares, também pelas consequências geopolíticas e comerciais, já sentidas hoje com o aumento do preço do petróleo, que determina uma escalada nos custos de alimentos, fármacos e demais produtos.
A Ucrânia é considerada o celeiro da Europa. Ela é a maior produtora de sementes de girassol, um dos cinco maiores produtores do mundo de milho, batata e cevada, além de contar com plantações de trigo e soja. O país exporta alumínio, aço, níquel cobre e platina.
Do outro lado, a Rússia, 11ª economia mundial, é um dos maiores produtores de petróleo e tem a maior reserva de gás do mundo, fornecendo mais de 40% do produto para a Europa. O agronegócio brasileiro depende do fornecimento de fertilizantes russos.
Dois temas básicos estão em jogo nesse tabuleiro europeu. O primeiro, o poder de “quem manda no pátio”. Do ponto de vista geopolítico, a disputa envolve russos e países da Organização do Tratado do Atlântico Norte, com forte influência dos Estados Unidos. A outra questão envolve interesses comerciais.
Rostos de mortos, refugiados, fugitivos, pessoas abandonadas à própria sorte importam mais ou menos na pauta da mídia ocidental. Depende do que está em disputa e onde. Há guerra no Afeganistão, na Síria, no Iêmen, na Palestina, na Etiópia, em Mianmar, no Haiti... Algumas já são de década, que passam batidas na mídia, com exceções.
Vejamos o caso do Iêmen. Localizado no Golfo de Aden, banhado pelo Mar Arábico e pelo Mar Morto, tendo como vizinha a Arábia Saudita, no Oriente Médio, o país ganha grande importância geopolítica, pois fica na rota comercial do petróleo pelo Canal de Suez. Em guerra civil há 8 anos, onde também estão presente interesses de países desenvolvidos do Ocidente, o Iêmen sofreu, apenas no mês passado, mais de 700 ataques aéreos do país vizinho, integrante de coalizão apoiada pelos Estados Unidos e que dá sustentação a uma das partes beligerantes. A ONU classifica o Iêmen como a pior situação humanitária do mundo.
Com uma população de 29,8 milhões de habitantes, mais de 23 milhões enfrentam fome, doença, falta de serviços de saúde e de infraestrutura. Nos oito anos de conflito morreram 233 mil pessoas, incluindo 131 mil por causas indiretas, como a falta de alimentos. Mais de 10 mil crianças perderam a vida ou foram mutiladas em consequência direta dos combates.
“Ser criança no Iêmen é um pesadelo”, declarou a diretora do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Henrietta Fore. A cada dez minutos, morre uma criança no país por causas evitáveis, como desnutrição, doenças e falta de vacinas, já denunciava Fore em outubro do ano passado.
Sem uma injeção de 4,27 bilhões de dólares (cerca de 20,1 bilhões de reais) para custeio de ações humanitárias este ano, perto de 4 milhões de pessoas não terão água potável para beber. Dados da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) reportam que 4,3 milhões de pessoas são migrantes internos, representando a quarta maior crise de deslocamento do mundo em 2021.
A ONU denomina o conflito no Iêmen como “a guerra esquecida” devido à escassa atenção que tem recebido do resto do mundo. Segundo os critérios de noticiabilidade que a mídia ocidental vem aplicando, a guerra na Ucrânia merece as horas de informações e reportagens preparadas por comentaristas, analistas e jornalistas. Afinal de contas, trata-se de um conflito em território europeu, envolvendo gente branca, com algum poder aquisitivo, e repercutindo enormes consequências para o comércio mundial. E os demais conflitos? Bem, estão em zonas periféricas...
Também as igrejas, organizações de ajuda humanitária, campanhas de arrecadação de alimentos, remédios, vestuário estão adotando o mesmo critério da mídia ocidental. Guerras que já duram anos, como a do Iêmen, na Síria, Somália, Etiópia, jamais receberam tal atenção como a população ucraniana está ganhando.
Segundo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados, em pouco mais de duas semanas empresas, fundações, pessoas físicas contribuíram com mais de 200 milhões de dólares para o Acnur destinados à Ucrânia. Sem contar os recursos governamentais!
Para entender essa solidariedade seletiva, a organização internacional arrecadou apenas 32% do previsto em 2021 para ajuda humanitária no Iêmen! O apelo voltado à República Democrática do Congo no ano passado foi ainda pior: a ajuda restringiu-se a 4% do necessário.
O secretário-geral do Conselho de Igrejas do Sudão do Sul, padre católico James Oyet Latansio, afirmou que, reportando-se à guerra na Ucrânia, é fácil para o mundo se concentrar nos novos conflitos e esquecer os antigos. Questões religiosas colocam cristãos e muçulmanos no palco da guerra interna, reportou o jornalista freelance Frederick Nzwill, baseado em Nairobi, Quênia.
Oyet apelou aos irmãos ecumênicos e à igreja global: “Não se esqueçam do Sudão do Sul. Coloquem o Sudão do Sul em suas orações e também na prioridade de ajuda”. Ele admite que há “cansaço” dos doadores, “mas somos vítimas dessa situação; as pessoas comuns – pobres, jovens, velhos – são inocentes que pagam o preço”.
A ONU tem o Sudão do Sul entre os países onde choques climáticos, como cheias, pandemia do coronavírus e os crescentes custos dos alimentos estão levando milhões de pessoas à fome. E a guerra na Ucrânia, que também se reflete no Oriente Médio, aumenta esse sofrimento.
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Mídia ocidental só enxerga uma guerra. Igrejas também? Artigo de Edelberto Behs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU