16 Dezembro 2021
"Neste período de Advento e de preparação para o Natal, recomendo a todos - crentes e não crentes - a leitura dessa esplêndida biografia, para que todos possam conhecer melhor essa figura que, independentemente de como se queira considerar, revolucionou a história e o pensamento, e os crentes, pelo menos, podem redescobrir o verdadeiro significado de sua Natividade", escreve Angelo S. Angeloni, em artigo publicado por Settimana News, 15-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Quem dizem os homens que eu sou?" (Mc 8,27). Essa pergunta de Jesus aos discípulos - cada vez tão necessária também à nossa consciência, para não esquecer alguns valores fundamentais ligados à mensagem cristã - essa pergunta pode ser tomada como base para a leitura do novo livro do card. Ravasi: Biografia di Gesù secondo i Vangeli (Biografia de Jesus segundo os Evangelhos, em tradução livre, Raffaello Cortina editora, Milão 2021, pp. 256, € 19,00).
Não conhecemos o Evangelho. Acreditamos que o conhecemos, porque ouvimos passagens durante a liturgia; mas não o conhecemos, não compreendemos a sua beleza, a arte das referências ou a doçura da palavra de Jesus, simples e elevada, que os próprios discípulos, por vezes, não entendiam.
O Evangelho deve ser lido na íntegra, como qualquer outro livro: palavra após palavra, linha após linha, página após página, capítulo após capítulo; lenta e cuidadosamente, fechando a porta do coração e da mente ao que é externo, no silêncio interior e exterior. Uma leitura assim já é oração, para a qual é necessária a mesma disposição interior recomendada por Jesus: “Mas quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai, que está no secreto. Então seu Pai, que vê no secreto, o recompensará” (Mt 6, 6).
Mas o Evangelho também contém alguns pontos obscuros, a cuja interpretação o Cardeal Ravasi já dedicou um livro: As pedras de tropeço do Evangelho [em tradução livre, Mondadori, Milão, 2015]. A palavra da cruz, de fato, “é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus” (1Cor, 1,18); palavra que “escandaliza”, “pedra de tropeço que faz tropeçar e cair” (pág. 4).
Agora, com esse novo livro teologicamente denso, mas claro e acessível, Ravasi vem ao nosso encontro na leitura e na meditação dessa palavra. O livro é também uma breve história dos Evangelhos, da sua formação, das comunidades cristãs às quais se dirigem, das suas fontes e dos seus autores. Ravasi traça o contexto em que estão inseridos, traça o enredo por temáticas, por quadros, por movimentos (embora com os recortes necessários), fornecendo também dados arqueológicos e referências às artes que os interpretaram de várias formas. A figura de Jesus deve ser inserida neste contexto: seu nascimento, seus discursos, suas orações, sua relação com o poder político e religioso, etc.
Divulgação do livro de Gianfranco Ravasi: Biografia di Gesù secondo i Vangeli (Raffaello Cortina editore, Milão 2021, pp. 256, € 19,00)
O Jesus dos Evangelhos é sem dúvida o Jesus da história, que percorre as estradas pregando o Reino de Deus, rodeado por imensas multidões de gente pobre e de enfermos com todo o tipo de doenças; que fala com eles com a linguagem do seu mundo, "feito de terrenos áridos, de sementes e semeadores, de ervas daninhas e colheitas, de vinhas e figos, de ovelhas e pastores, de cães, de pássaros, de lírios, de cardos, de mostarda, de peixes, de escorpiões, cobras, abutres, vermes, de ventos, siroco e do norte, de relâmpagos e chuvas ou secas” (p. 163).
E a sua palavra - desdenhosa para com os ricos, para com o poder político e religioso, para com aqueles que negociam na casa do Pai, para com as aparências e a hipocrisia - leva para aquelas multidões alegria e conforto. Que coração não consolam estas doces palavras: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11, 28-30)!
Que palavras mais revolucionárias do que aquelas do "sermão na montanha"! Que história mais bela do que aquela das parábolas! E quem, pelo menos uma vez, não recitou aquela oração tão humana que ele mesmo nos ensinou! Os Evangelhos são escritos maravilhosos, que infundem alegria e conforto a todos, de todos os credos e ideologias, porque "a pessoa de Jesus não é um mito, nem um símbolo, nem uma ideia que agitou um grupo de seguidores, mas sim uma figura histórica" (p. 97), verdadeiro homem entre os homens.
O Jesus da história, porém, não pode ser separado do Jesus da fé; o Jesus do Cristo, que só a fé nos pode fazer conhecer verdadeiramente. Em Jesus Cristo, "divindade" e "humanidade" são uma única realidade. Se, de fato, na angústia do Getsêmani e na morte ele se revela plenamente homem, ao ressuscitar ele é o Deus vitorioso sobre a morte.
“O realismo da crucificação, para os Evangelhos, é uma forte prova da encarnação: Cristo passa pelo território próprio do homem, aquele do limite, da morte, da finitude, tornando-se irmão de todos os homens e de todas as mulheres” (p. . 227). Encarnação e Ressurreição (os mistérios da fé) são basicamente uma só; nelas somente se revela a verdadeira identidade de Jesus. Os Evangelhos não negligenciam a história, mas a reelaboram teologicamente, transformando os dados reais em sinais de uma realidade que os transcende. Eles estão ligados à história e à fé: duas realidades indivisíveis.
Quando, de tato, os lemos, não digo que o Jesus histórico nos escapa, mas está tão fundido com Cristo que já não distinguimos um do outro. E não compreenderemos aqueles dois grandes mistérios se não nos deixarmos transportar por sua palavra humilde e elevada, humana e divina. Se, de fato, as suas palavras são profundamente humanas, como é profunda a sua oração antes da paixão, ou as suas palavras de despedida (Jo, cap. 14 e 17)!
Sem fé, não podemos re-conhecer Cristo, para quem precisamos de um olhar diferente e mais profundo.
A profissão de fé do crente - o Credo - na sua parte central (a mais longa) sintetiza esse Jesus entre história e fé. E com que versos de surpreendente profundidade teológica e fervor de crente, Dante, no último canto do Paraíso, nos deixou uma imagem viva da humanidade e divindade de Cristo: “Lume eterno, que a sede em ti só tendo, Só te entendes, de ti sendo entendido, E te amas e sorris só te entendendo! O girar, que, dessa arte concebido Via em ti como flama refletida, Quanto foi dos meus olhos abrangido, No seio seu da própria cor tingida A própria efígie humana oferecia: Foi nela a vista minha submergida!”.
Carlo Ossola comenta: “A epifania da Trindade tem no seu centro o nosso rosto: no coração do próprio mistério reside um núcleo que conhecemos; paradoxalmente, o longo caminho em direção à essência da Trindade nos restitui a nós mesmos” [Dante, La Divina Commedia; editado por Carlo Ossola; Marsilio editori, Veneza, 2021; p XV].
Num belíssimo comentário do verso 108 do canto XXXI do Paraíso, relativo ao peregrino que pode finalmente ver o rosto de Cristo impresso em linho, J.L. Borges (O Fazedor, 1960) diz: “se realmente soubéssemos como foi, seria nossa a chave das parábolas e saberíamos se o filho do carpinteiro foi também o Filho de Deus. [...]. Perdemos esses traços [...]. Podemos vê-los e ignorá-los. O perfil de um judeu no subterrâneo talvez seja o de Cristo; as mãos que nos dão umas moedas em um postigo talvez repitam as que alguns soldados, certo dia, cravaram na cruz. Talvez um traço do rosto crucificado espreite em cada espelho; talvez o rosto tenha morrido, se apagado, para que Deus seja todos”.
Às mulheres que, dois dias após a morte de Jesus, vão ao sepulcro e o encontram vazio, dois homens dizem: "Por que buscais entre os mortos aquele que vive?" (Lc, 24, 5). Pois bem, não busquemos Jesus Cristo entre os mortos, porque ele está vivo; e se não podemos conhecer seu rosto, pelo menos podemos vê-lo refletido nos pobres que sempre temos conosco e presentes na Eucaristia.
A sua mensagem de paz e de amor não ofende ninguém, porque é uma mensagem humana que todos entendem, como entendem a dor, porque é o “homem das dores”; e a dor une, talvez, mais do que o amor, porque é idêntica a todos.
Salvatore Natoli escreve em L’uomo dei dolori [O homem das dores, em tradução livre, EDB, Bologna, 2020, p. 24]: “Na imagem do homem das dores há algo que pode atrair até quem não acredita, pois na mansidão daquele rosto pode-se perceber a sabedoria superior de quem não responde ao mal com o mal – no sentido daquele infligido - porque replicá-lo significaria mantê-lo em circulação, ao passo que não lhe responder significa neutralizá-lo revelando a sua improcedência. ‘O homem das dores’ [...] é uma imagem de piedade feita para quebrar a ‘dureza do coração’”.
Neste período de Advento e de preparação para o Natal, recomendo a todos - crentes e não crentes - a leitura dessa esplêndida biografia, para que todos possam conhecer melhor essa figura que, independentemente de como se queira considerar, revolucionou a história e o pensamento, e os crentes, pelo menos, podem redescobrir o verdadeiro significado de sua Natividade.
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Ravasi: Jesus segundo os Evangelhos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU