Durante sua recente visita a Roma, o bispo de San Diego, Robert W. McElroy, deu uma grande e exclusiva entrevista ao vaticanista da revista America, dos jesuítas dos EUA, Gerard O’Connell.
Na primeira parte da entrevista, ele fala sobre a polarização política nos EUA e as divisões dentro da Conferência dos Bispos dos EUA sobre a tentativa de negar a comunhão aos políticos chamados de “pró-escolha” sobre o aborto. Dom McElroy comenta sobre as afirmações de Francisco no voo de volta da Bratislava, Eslováquia, sobre a questão da comunhão e a necessidade de os bispos serem pastores, não políticos. Ele expressa sua esperança que no encontro dos bispos estadunidenses, em novembro, eles priorizem “uma animação eucarística”.
Na segunda parte, McElroy fala sobre imigração, a retiradas dos EUA dos Afeganistão, as questões de mudança climática e racismo, a importância da sinodalidade e ataques contra o Papa Francisco por algumas plataformas da EWTN.
A entrevista é de Gerard O’Connell, publicada por America, 07-10-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Seis anos atrás, em 24 de setembro de 2015, o Papa Francisco discursava no Congresso dos EUA e alertava contra “os reducionismos simplistas que olham apenas para o bem e o mal; ou, se vocês preferem, para os corretos e pecadores”. Ele dizia: “O mundo contemporâneo, com suas feridas abertas, as quais afetam muitos de nossos irmãos e irmãs, demandam que nós confrontemos cada forma de polarização que nos dividiria entre esses dois campos”. Pergunto: a mensagem do Papa foi ouvida?
A fala do Papa Francisco para o Congresso foi eletrizante, particularmente pelos líderes congressistas e autoridades públicas, porque apontou para os melhores anjos de nossa natureza como país: as grandes figuras de Abraham Lincoln, Martin Luther King Jr., Dorothy Day e Thomas Merton e para as diferentes dimensões que podem elevar discurso, diálogo, debate público, tomada de decisão e a verdadeira construção da cultura com a espiritualidade no seu núcleo. Esse foi realmente um ponto alto para a visão que nós, como país, devemos perseguir.
No entanto, essa visão não se transformou nem mesmo foi capaz de manter a linha no curso da cultura política estadunidense durante este tempo, eu temo. As coisas pioraram, não melhoraram, porque o tribalismo, a divisão, a politização de cada questão em divisões partidárias e o alto grau em que os rótulos partidários tomaram conta de vastas áreas da vida humana. Agora o combate ocorre em toda a cultura em nosso país, até mesmo dentro das famílias, dentro das Igrejas, dentro da sociedade como um todo, dentro do trabalho e das relações de amizade. É realmente uma corrosão que está ocorrendo, acelerando em vez de diminuir, eu temo.
A Igreja deve ser capaz de contribuir para esvaziar essa polarização, pelo menos até certo ponto, e promover a harmonia na sociedade; mas, infelizmente, também está preso na polarização. Vimos isso mais recentemente na reunião de junho da USCCB em torno da pressão para negar a Eucaristia aos políticos pela questão do aborto, embora o debate remonte a 2004. Você se referiu a isso como “a instrumentalização da Eucaristia”. O papa comentou sobre esse assunto em resposta à minha pergunta no voo de volta de Bratislava, em 15 de setembro. Você acha que as palavras do Papa oferecem um caminho para que a Igreja nos Estados Unidos saia dessa situação?
Acho que ele está nos pedindo para termos visões e posturas totalmente diferentes na maneira como abordamos essas questões. O que o Papa estava pedindo na entrevista, se eu o entendi corretamente, é a maneira de rompermos esse partidarismo como bispos, como líderes na Igreja, como líderes leigos na Igreja, é assumir uma perspectiva fundamentalmente pastoral e recusar a nos envolvermos nas dicotomias do cenário político que estão invadindo tão rapidamente toda a nossa cultura.
Isso significa que o pastor procura o que é comum. Claro, para nós, o comum é este: o Evangelho de Jesus Cristo. É a unidade que encontramos no Evangelho que nos permite começar a discutir essas questões.
O Papa diz que o caminho a seguir não é a condenação, nem a excomunhão, nem o julgamento. Ele pede que os bispos sejam pastores, não políticos, e sejam “pastores com o estilo de Deus, que é proximidade, compaixão e ternura”. O que você acha que isso significa?
Acho que significa começar com as situações concretas em que as pessoas se encontram em suas vidas, tanto crentes como não crentes, e compreender os dilemas que enfrentam. Esse é o esforço para tornar a testemunha de Cristo presente ali; isso é algo que une as pessoas, não as separa.
Temos que construir esse tipo de ponte em tudo o que fazemos, porque estamos em uma sociedade que está derrubando pontes e erguendo muros. Temos que rejeitar isso. E não é tão fácil de fazer porque, como vemos na vida da Igreja, temos fortes opiniões sobre a melhor forma de realizar o Evangelho em nossa própria sociedade.
Mas o que está em jogo é a própria alma de nossa nação e, dentro da vida da Igreja, a alma da Igreja está em jogo em termos da sociedade em geral e, particularmente, da cultura política de nosso país. Essa alma exige que sejamos uma força para aproximar as pessoas, para enfatizar a unidade. Essa é uma identidade e um papel mais importantes para a Igreja do que qualquer questão política em particular, e acho que todos temos que ver isso.
Algumas pessoas querem apresentar a comunhão como uma pergunta do tipo sim ou não, mas o Papa Francisco está dizendo que compartilhamos uma posição moral comum sobre a questão do aborto, então é uma questão de como você aborda os casos individuais e concretos. É assim que você vê isso?
É certo que os líderes na vida da Igreja – bispos, padres, líderes religiosos e leigos – devem reivindicar na esfera pública as verdades da nossa fé, as verdades que a justiça, a paz e a vida exigem. Esse é o nosso papel dentro da cultura. A Igreja não tem uma missão especificamente política, mas tem uma missão moral no mundo político. Temos que testemunhar certas verdades morais que vêm de nossa fé, que tocam diretamente nas principais questões políticas que enfrentamos.
No entanto, subjacente a todos eles está a questão: podemos ser coesos como sociedade e como cultura em nossa vida política? Se não tivermos essa coesão, e se não tivermos uma noção de como agimos uns com os outros em nosso discurso político, então nunca seremos capazes de abordar verdadeiramente o bem comum porque aquele senso de cultura, que apoia o diálogo, respeito e compreensão, está no centro. Se isso não estiver lá, então o bem comum será, por fim, usurpado pelas forças em conflito que não estão enraizadas nos valores espirituais mais profundos de nossa fé.
O que você espera da reunião de novembro da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos à luz do que o Papa disse?
Espero alguns resultados da reunião de novembro. Primeiro, tem havido muita discussão apontando para a realidade de que os bispos estejam buscando uma animação eucarística. Esta seria uma iniciativa importante da Igreja para energizar espiritualmente nossa compreensão, participação e amor pela Eucaristia. Esse é o objetivo principal com relação à Eucaristia para a conferência neste momento, e as discussões em novembro sobre a forma particular de declaração que surgirá neste momento da conferência são secundárias a esse avivamento. A declaração proposta para novembro será inevitavelmente envolvida em debates partidários que diminuem a beleza, a dignidade e a devoção da Eucaristia. É o projeto de um avivamento eucarístico que é importante.
Portanto, espero que seja o que for que se diga sobre a Eucaristia durante a reunião de novembro, seu foco seja no contexto desta animação mais ampla, que na verdade quer dizer que temos este belo sacramento que nos une, que nos reúne à mesa do Senhor. Como nós, nos próximos dois anos, dentro de nossas comunidades, geramos uma compreensão renovada da profundidade deste sacramento e de sua importância para o seio e a vida da comunidade? Esse é um resultado [da reunião de novembro] que seria muito importante.
A outra questão é esta: acho que o Papa está nos dizendo que nosso papel principal é sermos pastores para todo o nosso povo. Somos testemunhas da verdade na sociedade em geral, mas antes disso, somos chamados para ser pastores de nosso povo. Isso envolve testemunhar a verdade em sua plenitude. Mas também envolve ver as situações da vida real que as pessoas têm, ver as escolhas políticas que elas têm em suas vidas e como elas são frequentemente constrangidas, e como o esforço para ler o Evangelho na vida política de nosso país é complicado. Na votação de candidatos, não temos escolhas puras, onde é claro que todo o bem comum ou a maior parte do bem comum cai de um lado ou de outro.
Precisamos entender, exatamente como disse o Papa, que não estamos substituindo a consciência de nosso povo. Estamos tentando ajudá-los, como homens e mulheres, a exercer essas consciências na esfera política. Temos que mostrar respeito por isso e amá-los como pastores e pastores e [estar] em comunhão com eles, dialogar com eles.
Você ficou surpreso com o fato de o Papa dizer que nunca recusou a comunhão a ninguém?
Foi impressionante, mas eu [não] acho que essa resposta seja incomum. Acho que se você perguntar à maioria dos padres: “Você já recusou a comunhão?” – com exceção de alguém que vem à comunhão que obviamente não está emocionalmente bem – a maioria dos padres que conheço nunca esteve na situação de recusar a comunhão a alguém. Eu nunca estive.
Então, foi impressionante pelo que diz sobre o contexto, o contexto pastoral para essa questão que estamos debatendo na Conferência dos Bispos. Estamos debatendo isso como uma abstração, mas a pergunta do Papa é concreta: o que você faz como pastor?
Nossa mensagem esmagadora neste ponto precisa ser convidar as pessoas para a Eucaristia, com o entendimento de que todos nós temos falhas significativas ao nos aproximarmos do altar, mas essas não são desqualificantes. Se multiplicarmos as desqualificações para a comunhão, então acho que estamos sendo menos fiéis à nossa identidade como pastores, e estamos nos tornando apenas mais abstratos com raciocínios que nos afastam de perguntar o que Cristo faria nesta situação.
Você acredita que se os bispos conseguirem superar essa luta interna em torno da Eucaristia, que parece ter um efeito paralisante na conferência, vocês poderão contribuir mais para enfrentar a polarização no país?
Fiquei impressionado com o contraste entre nossa declaração da USCCB sobre a cidadania fiel e a declaração dos bispos canadenses na véspera das últimas eleições. A declaração dos bispos canadenses foi simplesmente uma apresentação de cerca de 10 prioridades muito importantes do ensino católico que os cidadãos católicos devem levar em consideração quando se preparam para votar. Nosso documento tenta ter esse ponto de vista, mas inevitavelmente termina no papel muito tempestuoso de esclarecer as prioridades.
Digo isso com certa frequência: os bispos de nossa conferência estão fundamentalmente de acordo sobre a substância das principais questões políticas que enfrentamos em nosso país. É na priorização que vem o atrito, e é aí que acho que estão nossos dilemas. Muito poucos de nós discordamos quanto ao ponto fundamental de onde devemos ir em relação à imigração, ao aborto, à eutanásia, à liberdade religiosa ou à pobreza. Simplesmente não há discordância substancial sobre isso.
Mas sobre a questão de como os cidadãos ou os fiéis devem priorizar essas questões, isso é onde os rachas são gerados entre nós, porque isso deixa a divisão partidária entrar. A priorização em que nos engajamos usando termos como “preeminente” na verdade convida o partidarismo para o coração da Igreja, mesmo que invada o reino legítimo da consciência para os crentes que procuram escolher candidatos que irão promover o bem comum.
Os bispos dos EUA são uma das mentes sobre a questão da imigração?
Sim. Eu diria que isso que os bispos estão dizendo é que nós como nação temos que reivindicar nossa herança como um porto para imigrantes e refugiados sobre uma larga escala e que nós precisamos nos mover metodicamente para fazer isso, organizacionalmente e com recursos, com a Igreja também envolvida.
Nós somos uma nação de imigrantes, nós precisamos ter um número significativo de pessoas de outros países que não é simplesmente baseada nos seus recursos, habilidades, talentos, mas que permite as pessoas de diferentes classes, diferentes contextos sociais, diferentes nacionais para vir para nosso país e nos tornar cidadãos de nossa sociedade. E a mesma coisa com os refugiados. Nós temos que nos mover em direção aos inúmeros imigrantes e refugiados que estão entrando, e nós não temos feito isso nos últimos anos.
Acho que os bispos diriam que precisamos restaurar um conjunto muito mais robusto de programas para imigrantes e refugiados nos próximos anos. É apenas como você lida com isso quando se torna opressor, como está acontecendo na Itália e em outros países europeus. Como você mantém um senso de equilíbrio nisso? Simultaneamente, devemos iniciar um esforço genuíno para colaborar sistematicamente com os países da América Central para reduzir as forças devastadoras nessas nações que geram emigração por medo da violência, da devastação econômica e da devastação ambiental.
Os Estados Unidos retiraram-se do Afeganistão. O que você diz sobre isso?
Escrevi um artigo para a revista America (disponível em inglês, neste link), há 10 anos, sobre a “guerra sem fim”. Naquela época, havia um historiador, David Kennedy, que dizia que os EUA agora atingiram a capacidade de travar guerras desse tipo porque nossas baixas são relativamente menores hoje devido ao tipo de guerra que travamos e porque nossos recursos são grandes para que possamos sustentá-las. Portanto, podemos ter guerras que duram 10 anos.
Acho que foi muito importante acabar com essa guerra, porque ela não tinha mais um objetivo realista para ninguém, que prometia outra coisa senão uma guerra contínua. Isso não significa que estabelece a paz. Não deve haver ilusão de que o fim de uma guerra estabelece a paz; muitas vezes não. Mas continuar uma guerra por tanto tempo absolutamente não traz paz.
Estamos nos encaminhando para a conferência da ONU sobre mudança climática, chamada COP26, em Glasgow, de 31 de outubro a 12 de novembro. Na Califórnia, ocorreram incêndios; em outras partes dos Estados Unidos ocorreram furacões, inundações e assim por diante. Tudo isso destaca a necessidade urgente de abordar as mudanças climáticas. Você acha que a Igreja Católica nos Estados Unidos está adequadamente envolvida nesta questão?
Acho que temos que ter uma nova iniciativa massiva dentro da Igreja nos Estados Unidos sobre a questão da mudança climática. Isso significa envolver a Igreja em nível nacional, mas também em nível local. Esses desastres nacionais – os incêndios, os furacões, as inundações, os terremotos, as mudanças na amplitude e frequência desses eventos – são sinais para nós do acerto de contas que está chegando, e acho que a Igreja precisa estar na vanguarda dessas questões. E não estamos lá. Nos Estados Unidos, não estamos presentes em termos de efetivamente testemunhá-lo como um elemento central do Evangelho neste momento em termos de política pública.
O fracasso contínuo da Igreja nos Estados Unidos em dedicar atenção concentrada à mudança climática é um reflexo trágico do poder de nossa cultura nacional de negação do clima de silenciar o mandato do Evangelho de cuidar de nossa casa comum com um senso de urgência e profundidade.
Acredito que o aborto, as mudanças climáticas e o racismo constituem as três maiores reivindicações na consciência dos católicos neste momento. Mudança climática porque envolve o futuro da própria humanidade; aborto devido ao grande número de vidas humanas envolvidas; e racismo porque é a ferida sem fim na cultura e na história americana que continuamente nos dilacera.
O Papa Francisco fez da sinodalidade o foco central nos próximos dois anos para a renovação da Igreja em todo o mundo, mas não parece ter ganhado muita força em muitas dioceses dos Estados Unidos. Qual a importância da sinodalidade para a renovação da Igreja Católica?
Acho que a sinodalidade é um momento e um movimento de profunda oportunidade, que nos convida em todos os níveis a entender que quando empreendemos ações juntos, quando estabelecemos metas, quando discernimos para onde Deus está nos chamando, precisamos fazê-lo de uma forma que homenageia a participação de todos.
Lembro que a Gallup Organization fez uma pesquisa, talvez 20 anos atrás, que perguntava: por que as pessoas vão à Igreja? O critério que fez a diferença em relação ao motivo pelo qual eles continuam vindo é se eles sentem que sentiriam sua falta se não o fizessem. Em outras palavras, as pessoas ao redor deles nos bancos sentiriam falta deles. O que isso significa é que as pessoas sentem que contam na vida da Igreja. Para mim, a sinodalidade é tentar realizar uma vida eclesial onde as pessoas sintam que contam em todos os níveis da vida da Igreja.
Duas vezes neste ano – na viagem ao Iraque e novamente em sua conversa com os jesuítas em Bratislava – o Papa Francisco expressou sua preocupação com os ataques que estão sendo feitos contra ele pela EWTN. Eu sei que altos funcionários do Vaticano também estão muito preocupados com isso. Acho difícil entender por que os bispos dos EUA não o defendem contra esses ataques. O que você tem a dizer sobre isso?
Nos últimos anos, as principais figuras e programas dentro da EWTN refletiram com cada vez maior proeminência um tom sistemático de oposição a muitas das principais prioridades deste pontificado, frequentemente acompanhado de caricatura e desprezo. A atenção contínua à visão de mundo do arcebispo Carlo Maria Viganò, o tratamento de desprezo ao Sínodo da Amazônia, os esforços não tão sutis para pintar o Papa Francisco como teologicamente deficiente e doutrinalmente suspeito, quando amplificado por um grande império da mídia religiosa, tem se tornado uma fonte de desunião e distorção dentro da vida da Igreja, que não pode ser ignorada.
É essencial para as lideranças da rede decidirem se desejam verdadeiramente, ou não, seguir a missão cum Petro et sub Petro (com Pedro e sob Pedro).