20 Agosto 2021
“A metáfora líquida nos leva a pensar em fluxos que percorrem seus canais, se deslocam de um lugar a outro acompanhando a orografia e às vezes transbordam de suas margens. Esse rio era a modernidade. Estou convencido de que a cultura contemporânea é mais bem representada por meio de uma metáfora gasosa em que milhões de moléculas enlouquecidas colidem e ricocheteiam umas nas outras”, escreve Carlos A. Scolari, em artigo publicado por Hipermediaciones, 13-08-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Nas últimas páginas de Cultura Snack (La Marca, 2020) deixei cair uma hipótese: a metáfora líquida, que tanto êxito teve a partir da publicação da “Modernidade Líquida” (Bauman, 1999), já não é a melhor hoje para descrever a vida social e a cultura contemporânea. Recapitulemos: para Bauman interessava a passagem da sociedade sólida para a líquida, um mundo onde “a maior preocupação de nossa vida social e individual é como prevenir que as coisas fiquem fixas, que sejam tão sólidas que não podem mudar o futuro. Não acreditamos que existam soluções definitivas e não apenas isso: não nos interessa”. Esta perda de solidez da Modernidade já estava presente na reflexão pós-moderna, por exemplo, em obras como “Tudo que é sólido se desmancha no ar”, um livro escrito por Marshall Berman entre 1971 e 1981, e publicado em 1982.
Zygmunt Bauman aplicou a metáfora líquida a todo tipo de relação ou processo social, desde as relações amorosas até a crise dos anos 40, à política, à arte e à educação. A “liquidez” aparecia em todos os aspectos da vida, nos objetos materiais, nas relações com o povo e na “própria relação que temos com nós mesmos, como nos avaliamos, que imagem temos de nossa pessoa, que ambição permitimos que nos guie. Tudo muda de um momento ao outro, somos conscientes de que somos mutáveis e, portanto, temos medo de não nos fixar em nada para sempre”. Quando o Estado ou as empresas pedem-nos que sejamos flexíveis, isso significa que querem “que não estejas comprometido com nada para sempre, mas sim pronto para mudar a sintonia, a mente, em qualquer momento em que seja requerido. Isso cria uma situação líquida. Como um líquido em um vaso, no qual o mais rápido empurrão muda a forma da água. E isso está por todas as partes” (Entrevista a Justo Barranco, em La Vanguardia, 2017).
As metáforas são úteis para pensar. Nesse caso, pensar a sociedade e a cultura em termos líquidos sem dúvida serviu para representar uma espécie de Modernidade que, sem renunciar ao desenvolvimento linear do progresso, adotou formas maleáveis e menos rígidas. A metáfora do líquido é móvel (A -> B), dinâmica (“não podemos tomar banho duas vezes no mesmo rio”) e, para brincar com os conceitos, pode incluir movimentos de transbordamento (uma sociedade que vai além de suas instituições é como um rio saindo de seu canal) ou turbulência. Não obstante, a própria ideia de escoamento líquido está impregnada de uma concepção de linearidade, de “ir a um lugar”, que pouco tem a ver com a realidade que vivemos no século XXI.
Como escrevi em Cultura Snack, antes as pessoas gastavam muito tempo em poucas mídias. Os ritmos de vida e, portanto, de consumo, eram diferentes e, comparados com os dias de hoje, fluíam em câmera lenta. Antes, havia tempo para ler o jornal com calma, ouvir rádio várias horas do dia e, principalmente à noite, reunir a família em frente à televisão. A televisão era precisamente o grande meio hegemônico: como a massa na Itália ou o arroz na China, a televisão dominava a dieta da mídia na maioria das sociedades. Quando Marshall McLuhan falava da aldeia global, ele se referia exatamente a isso, à centralidade da transmissão na vida diária dos habitantes do planeta Terra.
A irrupção das redes digitais teve profundos efeitos na ecologia da mídia e na dieta midiática dos sujeitos. A rede, mais do que um meio, é um metameio que gerou, e não para de gerar, novas experiências e formas de comunicação. Facebook e Twitter, Wikipedia e YouTube, o banner e blogs, webisódios e recapitulações nasceram na web. É neste universo digital onde grande parte das novas formas de comunicação são criadas, testadas e legitimadas. Esse ambiente midiático é a sopa primordial dos novos formatos textuais curtos e, ao mesmo tempo, das mega-histórias transmídia que muitas vezes ressignificam esses fragmentos.
A explosão da cultura snack (com todas as barbáries que isso implica e que analiso no livro: brevidade, miniaturização, transitoriedade, fractalidade, fragmentação, remixabilidade, infoxicação, mobilidade, velocidade) poderia ser considerada o terreno fértil de uma forma cultural “original” que emerge da ecologia das novas mídias. A fragmentação e a velocidade do videoclipe, que tanto surpreendeu analistas e intelectuais nas últimas décadas do século XX, foi apenas o prelúdio de uma textualidade que leva o culto da brevidade às últimas consequências.
A cultura snack, desse ponto de vista, se apresenta como um espaço ainda mais enlouquecido, recombinado e acelerado, que deixa para trás a era de ouro da neotelevisão e anuncia uma nova configuração cultural. A cultura snack como algo que vem depois (after) do pós-modernismo (afterpost). A metáfora líquida, com todo o respeito que a abordagem de Bauman merece, não é mais suficiente: os nano-conteúdos (e nós com eles) disparam como moléculas em estado gasoso e colidem entre si formando uma interminável carambola textual.
Uma das características da ecologia das novas mídias é a multiplicação de atores, textos, tecnologias, práticas e as relações que mantêm entre si. Em suma, estamos diante de um ecossistema mais complexo onde pequenas mudanças (a introdução de uma tecnologia, o surgimento de um novo formato ou mesmo um meme) podem gerar transformações que vão de uma ponta a outra desse ecossistema. Mas não apenas comunicação: toda a vida cultural do homo sapiens tornou-se cada vez mais complexa. E de alcance global. O coronavírus, esse meme biológico, é um bom exemplo de como algo muito pequeno pode ter efeitos catastróficos em grande escala.
A metáfora líquida nos leva a pensar em fluxos que percorrem seus canais, se deslocam de um lugar a outro acompanhando a orografia e às vezes transbordam de suas margens. Esse rio era a modernidade. Estou convencido de que a cultura contemporânea é mais bem representada por meio de uma metáfora gasosa em que milhões de moléculas enlouquecidas colidem e ricocheteiam umas nas outras.
As metáforas são úteis para pensar. Se adotarmos a metáfora gasosa, podemos ir além e pensar que a vida social passa por fases sólidas, ou seja, momentos em que as mudanças abrandam e privilegia-se a consolidação e reprodução do que já existe; fases líquidas, onde ocorrem deslocamentos e transformações coletivas orientadas para um grande objetivo comum; e fases gasosas onde o que reina é a hibridização, o caos, a indeterminação e a incerteza. Tampouco é para descartar que enquanto algumas sociedades estão imersas em uma fase, outras se explicam melhor através de outra metáfora.
Finalmente, creio que não devemos deixar de lado as pesquisas que apontam a existência de outras formas de matéria (a ciência já aceitou a existência do estado “plasmático”, um quarto estado, mais além do sólido, líquido e gasoso) ou os estudos sobre os estados da água. O livro “A quarta fase da água: além de sólido, líquido e vapor”, de Gerald Pollak, vai nesta linha de reflexão.
As metáforas, com todas as suas limitações, são um dos instrumentos fundamentais com que contam as ciências sociais no momento de dar um sentido ao mundo que nos rodeia. Porém, atenção: as metáforas também podem se solidificar e se converter em um obstáculo ao pensamento, porque as vezes convêm deixá-las correr ou, muito melhor, confrontá-las com outras como se fossem partículas gasosas para criar novas metáforas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Adeus sociedade líquida. Bem-vinda sociedade gasosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU