16 Mai 2012
Zygmunt Bauman é hoje uma grife da sociologia, lido, citado e compartilhado em toda parte. Esse status se deve em grande medida ao seu conceito de "modernidade líquida", aplicado às sociedades pós-industriais que perderam o sentido de "pertencimento".
Desde os anos 1960, explica, houve uma aceleração radical das mudanças sociais e tecnológicas, o que acentuou os sentimentos de mobilidade e individualidade em todos os setores da vida cotidiana: família, posição social, emprego, orientação sexual, relacionamentos amorosos etc.
A entrevista é de Marcos Flamínio Peres e publicada no jornal Valor, 11-05-2012.
Bauman desenvolveu essa tese em "Modernidade Líquida" (2000), desdobrada em vários outros títulos que o levariam a conquistar um público fora dos muros da academia: "Amor Líquido", "Vida Líquida", "Medo Líquido" e "Tempos Líquidos" (todos publicados pela editora Zahar).
Essas sociedades "leves" e "líquidas" perderam o sentido de solidez e estabilidade, defende o sociólogo. Em consequência, o ser humano tornou-se mais autônomo, o que é um ganho, mas passou a conviver com um fardo pesado: o sentimento de incerteza. E esse estado, diz Bauman na entrevista abaixo, é "provavelmente irreversível".
Outras mudanças acentuaram mais drasticamente esse quadro: a globalização, a internet e o consumismo.
Professor emérito da Universidade de Leeds (Reino Unido), Bauman deixou a Polônia em 1971, fugindo da perseguição antissemita promovida pelos comunistas. Talvez tenha sido esse olhar "de fora", de alguém vindo da periferia do continente europeu, que lhe permitiu apreender as transformações agudas por que vinha passando as sociedades ocidentais do capitalismo avançado.
Também deriva desse ponto de vista periférico seu entusiasmo, às vezes ingênuo, com o papel que países emergentes como o Brasil podem exercer na nova geopolítica que se configura. "Eles são laboratórios nos quais novos modos de coabitação humana são concebidos e testados."
Na entrevista a seguir, Bauman fala igualmente do recém-lançado "Ensaios sobre o Conceito de Cultura" (Zahar, trad. Carlos Alberto Medeiros, 328 págs.), obra de sociologia "dura" e leitura atenta, mas onde discute os fundamentos teóricos destes novos tempos "líquidos".
Eis a entrevista.
"Ensaios sobre o Conceito de Cultura" foi escrito 37 anos atrás, quando os estudos culturais estavam apenas começando a se consolidar nos departamentos de ciências humanas, enquanto hoje são hegemônicos. Tantos anos depois, o que mudou no debate intelectual?
Alguns anos atrás, quando este livro foi reeditado, me pediram para escrever uma nova "Introdução" justamente para responder a essa pergunta. Mas o aspecto interessante é que as mudanças verdadeiramente seminais ocorridas na sociedade e no papel da cultura se cristalizaram somente poucos anos atrás, após essa "Introdução" haver sido escrita e publicada... Tentei traçar e interpretar essas mudanças em "Culture in a Liquid Modern World" [que sai no Brasil em 2013 pela Zahar]. As mudanças que observei ali são, antes de tudo, uma transformação progressiva da cultura em commodity. A cultura passou de uma função "homeostática", estabilizadora, para servir ao mercado consumidor e promover a flexibilidade, a fome por novidades e a nova "onivoria cultural" das elites formadoras de opinião.
O senhor diz ali que vivemos hoje em uma "era da reciclagem", na qual as ideias são "enterradas vivas". Quais as consequências disso para o modo como vivemos?
Viver sob pressão de mudanças constantes e, em geral, imprevisíveis favorece uma cultura do esquecimento, em vez de uma cultura do aprendizado e da lembrança. Não temos tempo para digerir e assimilar novas informações antes que sejam afastadas de nossa atenção, espremidas por novidades mais recentes - do mesmo modo como substituímos velhos aparelhos pelos novos, recém-distribuídos nas lojas, e que possuem um ou dois recursos que seus predecessores não têm... Na sociedade consumista da modernidade líquida, as coisas começam a envelhecer já no momento em que nascem, e a distância temporal entre acolhê-las entusiasticamente e rejeitá-las como ultrapassadas vem se encurtando em uma velocidade cada vez maior.
O avanço da internet e das redes sociais tem algo a ver com sua afirmação segundo a qual "nada parece estar verdadeiramente morto ou vivo"?
A tecnologia digital, com seu espaço infinito para armazenar informação, intensificou esse processo a que me referi acima: não temos mais necessidade de expandir nossa memória pessoal, na medida em que toda informação existente está mantida em segurança em servidores da Web e pode ser recuperada quando o desejarmos. Hoje podemos esquecer sem nos sentirmos culpados... E fazemos isso. As coisas esquecidas não estão mortas - ou, ao menos, parece. Entretanto, se essa ideia é reconfortante, ao mesmo tempo é enganadora e potencialmente danosa. Nenhuma de suas consequências de longo prazo são realmente encorajadoras. Já seus resultados imediatos são a fragilidade dos limites do homem e o status provisório de quaisquer soluções para os problemas, além das sensações de desconhecimento - mais do que a capacidade de entender- e de impotência - mais do que a capacidade de agir efetivamente e com confiança no resultado.
Vivemos em um tempo mítico, sem passado nem futuro?
Hoje, o "tempo real" se constitui no padrão em relação ao qual todos os outros tempos são comparados. O valor supremo é a imediatez. Não há nada "mítico" nisso. Trata-se, antes, do fato de que essa preferência atual faz com que todos os outros tempos imagináveis pareçam serem percebidos como míticos! Somente o tempo vivido cotidianamente parece e é sentido como "real". Tudo aquilo que reside no "passado" e no "futuro" foi descartado. Nossas vidas, por assim dizer, são uma sucessão de "momentos presentes" - chamei tal percepção temporal de "pontilhista", para distingui-la da percepção até então dominante, a de imagens "cíclicas" ou "lineares". A história é hoje uma série de presentes, e esse presente transitório é a única constância... Em consequência, a incerteza é a única certeza...
Outro tema que desenvolve é a crise das ideias de nação e nacionalismo no mundo líquido. Em certa medida, "a doçura de se sentir incluído", o sentimento de pertencimento a uma dada comunidade, se transferiu para as mídias sociais?
Para as mídias sociais, para o mercado consumidor e para os Carnavais… Mídias sociais são "redes" fazendo o papel das comunidades enfraquecidas. Mercados consumidores: a partir dele, podemos comprar os ícones do pertencimento, mas sem o genuíno auto-sacrifício e a autoimolação que o pertencimento na vida real requer... E os Carnavais são similares às Copas do Mundo, aos jogos internacionais e às Olimpíadas. Esses três territórios "off-shore" resgatam a vida diária do "demasiadamente real", do pesado fardo do pertencimento corporal/espiritual…
Vê-se na Europa Ocidental, berço da ideia de nacionalismo, o fortalecimento de retórica e medidas anti-imigratórias, como na recente campanha presidencial francesa, ou ainda contra trabalhadores, mesmo que qualificados, como a proibição de pesquisadores estrangeiros de lecionarem em território francês. O nacionalismo, na verdade, não está recrudescendo?
O nacionalismo tem muitas causas - todas elas muito diferentes… Na Europa, o nacionalismo não está em crise porque o que está em crise é justamente a soberania do Estado-nação. A responsabilidade pela incerteza atual é posta na recente mudança de situação [econômica]. Essa é a razão por que o capital político tenta se construir a partir dos medos nascidos de um processo mais amplo de separação entre o poder, a capacidade de fazer as coisas, e a política, a capacidade de decidir que coisas precisam ser feitas. Na verdade, a União Europeia é um escudo que protege os Estados membros de calamidades muito piores, caso ocorresse um divórcio entre eles. Os problemas que os políticos nacionalistas prometem resolver por meio da ressurreição da "soberania plena" do Estado-nação são fadados a se aprofundar, e não serem sanados, pela desmontagem desse escudo protetor. A imigração, outro alvo dos políticos nacionalistas, também não poderia ser suprimida sem minar a economia europeia, seriamente dependente da capacidade e da mão-de-obra importadas...
Como potência emergente, o Brasil - e os Brics em geral - são bem diferente das sociedades "líquidas" e pós-industriais que o senhor abordou em seus livros, o que ele pode apresentar de novo ao mundo no que diz respeito à cultura e ao modo de vida?
Os centros onde as inovações culturais estão sendo gestadas, de onde se irradiam as inspirações e estímulos culturais, são famosos por suas mudanças de rota. O tempo presente não oferece nenhuma exceção. Outra questão é que os padrões da "periferia" importados dos centros atuais e aparentemente imitados e copiados tendem a ser -com a ajuda do conhecimento acumulado - adaptados, reformados e reajustados criativamente para diferentes realidades. De um ponto de vista histórico, há uma deficiência ligada ao fato de "ser o primeiro" e há uma vantagem em "juntar-se mais tarde". Se as sociedades que já passaram de seu apogeu, objeto de meus livros sobre a modernidade, podem estar vivendo o "ocaso da civilização" - como intuído cem anos atrás por Oswald Spengler em seu "O Declínio do Ocidente" -, os Brics exalam o ar de uma ressurreição. O Brasil, os demais do Brics e outros países são os centros potenciais de irradiação cultural.
O consumismo é o pior aspecto das sociedades líquidas?
Os candidatos ao primeiro posto são muitos, mas o consumismo é certamente um deles. Ele coloca em questão a sustentabilidade do planeta e, logo, as chances de sobrevivência da humanidade. Enquanto isso, corrói a solidariedade humana necessária para a defesa do futuro do planeta assim como pressiona e enfraquece os limites do ser humano. O consumismo também provoca muita dor e humilhação a uma massa de pessoas ameaçadas pela exclusão ao direito de uma vida decente e digna e relegadas ao status de "subclasse" - os frágeis consumidores...
Como o senhor desenvolveu o conceito de "sociedade líquida"?
Ao longo de um século de sua breve história, a sociologia lutou para se estabelecer como "ciência/tecnologia da não-liberdade": como uma oficina para formatar as questões sociais que seriam resolvidas na teoria, mas, sobretudo, para colocar em prática o que Talcott Parsons articulou de maneira memorável como "a questão Hobbesiana". Em outras palavras, tratava-se de saber como levar os seres humanos, abençoados com a ambígua dádiva do livre arbítrio, a serem guiados de maneira normativa em direção a um fluxo de ações previsível; ou, ainda, como reconciliar o livre arbítrio com a vontade de se submeter à vontade dos outros - isto é, elevar a "servidão voluntária", antecipada por La Boétie no limiar da modernidade, a princípio supremo da organização social. Em resumo: como levar as pessoas a quererem fazer aquilo que elas devem fazer... Em nossa sociedade individualizada, a sociologia encara a oportunidade excitante de se transformar em uma "ciência/tecnologia da liberdade". Acho que a sociologia não tem muita escolha a não ser seguir, agora como sempre, o mundo em transformação. A alternativa seria a perda de relevância. No entanto, esse caminho "sem escolha" não deveria ser causa de desespero, muito ao contrário. A modernidade líquida de fato coloca os indivíduos, e isso significa todos nós, num estado de indeterminação e incerteza provavelmente irreversível, pois, em nossa condição de fragilidade e transitoriedade, a contingência se tornou nosso habitat natural. Entretanto, é com esse tipo de experiência humana que a sociologia precisa se envolver, em um diálogo contínuo.
Seus livros sobre a sociedade líquida, escritos em estilo muito menos acadêmico do que "Ensaios sobre o Conceito de Cultura", tornaram-se um sucesso junto a um público mais amplo. Como lida com esses diferentes perfis de leitores?
O diálogo é certamente uma arte difícil. Significa esclarecer as questões em conjunto, mais do que conduzi-las por meio de seu próprio caminho; multiplicar as vozes, mais do que reduzi-las; ampliar as possibilidades, mais do que ter em vista um consenso total; perseguir o entendimento, em vez de visar a derrota do outro; e tudo isso deve estar animado pelo desejo de manter a conversa fluindo. Dominar essa arte consome um tempo terrível e não promete tornar nossa vida mais fácil. No entanto, promete torná-las mais excitante, mais útil aos outros, e transformar nossas escolhas profissionais em uma viagem de descobrimento contínua e interminável.
Qual a importância das teorias do sociólogo Pierre Bourdieu, que morreu há dez anos, para o desenvolvimento da disciplina?
Na minha opinião, a grande contribuição de Bourdieu está em haver ressuscitado o comprometimento das ciências sociais, assim como seus conceitos de capitais cultural e social. Além disso, atualizou os argumentos para a crítica da economia capitalista centrada nos lucros dos acionistas.
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