03 Agosto 2021
A vulnerabilidade da natureza não é uma questão global abstrata. Mais de 100 pessoas morreram e ao menos 1.000 estão desaparecidas em consequência das inundações na Alemanha e na Bélgica. As altas temperaturas no Canadá (50 graus) e nos Estados Unidos recorde mataram centenas de pessoas. Até a Sibéria, no extremo norte da Rússia, sofreu uma onda de calor com incêndios florestais. A onda de frio polar no Brasil alcançou algo inédito: níveis próximos a zero grau e nevascas.
“Não é simplesmente a humanidade que está agindo, mas a forma como o humano age sobre a natureza sempre é transmitida dentro da sociedade, através das relações de classe e gênero, assim como de raça. O Antropoceno revela o poder humano, mas oculta de onde provém e como esse poder é exercido. Para dizer com Marx e Engels: não a humanidade como conceito abstrato, mas "a sociedade burguesa moderna, uma sociedade que invocou meios de produção e troca tão poderosos, como o feiticeiro que não consegue mais controlar os poderes do submundo que evocou com os feitiços", explicam os cientistas alemães Ulrich Brand e Markus Wissen, em Modo de vida imperial. Vida cotidiana y crisis ecológica del capitalismo, publicado em espanhol por Tinta Limón, com tradução de Silke Trienke.
Modo de vida imperial é um livro fundamental e destinado a se tornar um clássico porque, em uma perspectiva crítica e internacionalista, os autores desmascaram os tíbios diagnósticos que as elites globais fazem da crise ecossocial em curso, questionam o capitalismo verde (revolução passiva, nos termos de Antonio Gramsci, liderada pelas forças dominantes) e ensaiam uma proposta radical centrada na transformação das forças de acumulação e dos modos de vida.
O conceito “modo de vida imperial” proposto por Brand e Wissen, refere-se às normas de produção, distribuição e de consumo que estão profundamente enraizadas nas estruturas e práticas políticas, econômicas e culturais do cotidiano da população do Norte global e também cada vez mais nos países emergentes do Sul global. Este conceito de modo de vida segue a tradição de Gramsci. Os cientistas políticos alemães partem da ideia de que uma estrutura social contraditória como a capitalista só pode ser reproduzida quando está enraizada nas práticas cotidianas e na racionalidade cotidiana, por isso, torna-se algo “natural”. O adjetivo “imperial” busca enfatizar a dimensão global e ecológica deste modo de vida.
A última vez que Brand (Mainau, Alemanha, 1967) esteve em Buenos Aires foi em 2018, quando apresentou o livro Salidas del laberinto capitalista: Decrecimiento y postextractivismo (Tinta Limón), em coautoria com o economista equatoriano Alberto Acosta. De Viena, onde reside, o cientista político alemão lembra que viveu na Argentina em 1992, quando veio estudar na Universidade de Buenos Aires.
“Nós começamos a trabalhar com o conceito de modo de vida imperial não por acaso na crise econômico-financeira de 2008, quando havia certa politização da crise ecológica, mas as medidas apontavam para o crescimento. Então, queríamos relacionar o cotidiano com a crise ambiental e a globalização, argumentando que se ficarmos com as políticas de desenvolvimento sustentável, as instituições internacionais, a Convenção sobre Mudança Climática, e não irmos aos obstáculos que são os interesses econômicos e políticos, permanece algo invisibilizado e normalizado no cotidiano das pessoas, mesmo que já possuam certa consciência ecológica”, diz Brand, professor de Política Internacional, na Universidade de Viena, membro do Grupo Permanente de Trabalho Alternativas para o Desenvolvimento e integrante da Fundação Rosa Luxemburgo.
A entrevista é de Silvina Friera, publicada por Página/12, 01-08-2021. A tradução é do Cepat.
Em que sentido o capitalismo “verde” é também o problema?
Na Europa, mais ainda do que nos Estados Unidos, há uma dicotomia muito equivocada de dois projetos de desenvolvimento. Um projeto é o que nega a crise climática, o trumpismo, o bolsonarismo, que é antiecologista e muito autoritário. É o business as usual. O outro projeto é muito dinâmico agora na Europa com o European Green New Deal, o programa de recuperação de 750 bilhões de euros para enfrentar a pós-pandemia. Este projeto se organiza em torno do conceito de economia verde, modernização ecológica e luta contra as mudanças climáticas.
Para nós, o capitalismo verde postula a ideia de uma renovação do capitalismo, uma mudança de sua fase fóssil sem transformar suas formas sociais, sem mudar a lógica do crescimento, a lógica da acumulação de capital. O capitalismo verde é uma armadilha. Criticamos os debates “progressistas” que politicam a crise ambiental, mas sem politizar as relações sociais com a natureza, as relações de classe e as relações Norte-Sul.
Em que consiste a armadilha do capitalismo verde? Em mudar algo para que nada mude?
Sim, é mudar a base energética para um pós-fóssil, sem mudar as lógicas de crescimento e a acumulação. A desvinculação entre crescimento, uso de recursos e emissões é uma esperança do capitalismo verde. Sabe-se que se temos crescimento, temos mais uso de recursos naturais e mais emissões.
É uma armadilha pensar que é possível haver uma desvinculação entre o crescimento e o uso de recursos naturais. É preciso questionar o poder do capital fóssil e o poder do capital digital, agora tão fortes. Dentro do capitalismo não resolveremos a crise ambiental.
Se dentro do capitalismo não será resolvida, a pergunta “leninista” seria: o que fazer?
Nosso argumento contra o capitalismo verde rejeita um dispositivo muito forte de individualização da responsabilidade: se você consome verde, se você vive bem e se comporta bem, toda essa onda do behaviorismo que adverte que as pessoas têm que se comportar bem para que a crise ambiental seja solucionada. Para começar, não se deve cair na armadilha do individualismo, onde a responsabilidade é colocada nos consumidores.
A segunda armadilha é a tecnológica, que delineia que com a digitalização os problemas serão resolvidos. Todos os estudos indicam que a digitalização implica um aumento enorme do uso da energia, requer mais recursos. A mudança se faz através de um conjunto que chamamos “modo de vida solidário” para reconhecer que o capitalismo não atravessa tudo, que existem modos de vida solidários quando pensamos nos povos indígenas e nas pessoas que vivem em comunidades, ainda que também tenham claramente uma articulação com o capitalismo.
O capitalismo é um modo de produção muito dominante, para muitos muito atraente, mas existem outros modos de produção. Em nossas sociedades, existe um modo de produção público. O Estado tem seus modos de produção na saúde, educação, transporte público, que não se organiza pelo lucro, pela acumulação de capital, mas por outras lógicas.
No Chile, quase tudo foi privatizado, mas na Argentina não. Também não se deve cair na armadilha de que o Estado faça tudo, mas, sim, reconhecer as diferenças entre uma economia orientada para a mudança de valor, para o lucro, ou uma economia pública, solidária, que deve ser organizada e que vale a pena.
Eu vivo em Viena, onde há uma longa tradição do setor público que é preciso defender e melhorar. Não podemos negar que, ao final, é uma luta feroz pela valorização de capitais, capital fóssil, capital digital, capital de saúde, capital das vacinas, capital automotivo. Há um poder tão forte desses capitais que o Estado precisa contribuir para dizer: “o capital não pode organizar o mundo”.
A outra opção é uma oposição ao extrativismo, ao crescimento, o discurso do “bem viver”, sem romantizá-lo. O discurso de ter uma vida saudável e digna, nem sempre em crescimento, é importante, mas essas práticas exigem condições sociais, porque se não existem as condições de um bom transporte, um bom sistema de saúde, não existe “bem viver”. As lutas sociais são mais importantes do que o comportamento individual.
No campo das lutas sociais, qual considera que é a mais significativa neste momento?
A resposta é sempre conjuntural. Eu diria que agora na Europa as lutas dos jovens contra o extrativismo, contra a produção do carvão e a expansão dos aeroportos, contra a construção de mais rodovias. Eu acredito que com a vitória de Pedro Castillo, no Peru, fica claro o efeito das lutas antiextrativistas.
Na Argentina, depois da experiência de (Mauricio) Macri, com um neoliberalismo muito feroz, o que significa que o governo de Alberto Fernández permaneça no extrativismo? Se agora começa um novo ciclo das commodities, como disse Maristella Svampa, o que significa se em dois ou três anos houver receitas para a Argentina? Caminhará para a mesma armadilha de 2003-2004, com os Kirchner, que não repensaram o modelo econômico, mas aproveitaram para aprofundar o extrativismo? O que significa hoje, na Argentina 2021, reconsiderar o modo de vida imperial?
O Pacto Ecossocial na América Latina e o Green New Deal de (Alexandria) Ocasio-Cortez nos Estados Unidos são propostas muito importantes para fortalecer o setor público, assegurar o emprego e mudar a matriz produtiva. Mas se essas propostas não levarem em conta o outro lado da moeda, de onde vem os recursos, caminham para uma armadilha.
O que queremos é que se possa discutir as deficiências nas propostas progressistas. O Pacto Ecossocial na América Latina me parece muito interessante, mas o que significa em relação à dependência do mercado mundial, das transnacionais, mas também no cotidiano da classe média argentina, por exemplo, que quer viver como nos Estados Unidos ou como na Europa, dando legitimidade ao extrativismo [?].
Como cientista político, integra o movimento decrescentista. Qual é o seu interesse no decrescimento como proposta econômica e política?
Eu sei que na América Latina não é possível usar a semântica do decrescimento porque não faz sentido em sociedades com tanta pobreza e com tanta experiência de que o decrescimento seja normalmente associado à austeridade neoliberal e a que os ricos se tornem mais ricos. Mas a ideia principal do decrescimento é nos desfazer do imperativo do crescimento que implica o extrativismo, que implica o consumismo, a destruição.
Eu sugiro repensar a sociedade argentina sem o imperativo de crescer, mas com outras prioridades: como se produz o valor de uso, como se produz o comum, como se produz a infraestrutura pública, como se produz o setor privado de forma que não haja superexploração e que não se destrua a natureza. Esta seria a contribuição do decrescimento, que não é dizer “que bom, a economia argentina caiu 8% no ano passado pela crise”. Isso é mudança pelo desastre.
O decrescimento é a mudança pela luta, mudança pelo modo de vida atraente e solidário que permita nos desfazer do imperativo do crescimento e das relações de poder das grandes corporações. Temos que repensar toda a economia para outro modelo de bem-estar que consiga superar o capitalismo e o imperativo do crescimento.
A pandemia nos forçou a repensar a relação que temos com a natureza, mas não com os modos de produção?
É uma pergunta interessante. No ano passado, eu publiquei um artigo no qual considerava que a pandemia nos oferece possibilidades para aprender e repensar as relações com a natureza. Mas o que vimos foi uma globalização feroz das mercadorias. Na América Latina, o mais importante é ter um modelo de bem-estar para os cidadãos dos países da região e não para contribuir para o bem-estar dos Estados Unidos, Europa e China. É preciso repensar a divisão internacional do trabalho, que para a América Latina é sempre dependência.
Outra questão para repensar tem a ver com o cotidiano. As pessoas com uma boa casa, com um bom trabalho e com um bom salário, que não precisavam sair de suas casas, puderam suportar muito mais facilmente a pandemia do que outras pessoas que tiveram que sair para trabalhar. O que significa essa divisão do trabalho no interior da sociedade entre os que têm que se expor todos os dias à pandemia e os que podem trabalhar em suas casas?
A pandemia nos mostrou um estado pós-neoliberal. A lei inquestionável, em nível da União Europeia, era “os Estados não podem se endividar” porque isso significa inflação, coloca em risco a competitividade, o crescimento. A pandemia nos mostrou que o Estado deve assumir a liderança. Agora, podemos transferir esse aprendizado para a crise climática.
Como se transfere essa aprendizagem?
Os mercados de carbono, os mercados privados, não solucionarão a crise ecológica. Precisamos de um Estado forte, não autoritário, não um Estado do capital, mas um Estado democrático, transparente, que queira solucionar a crise ambiental. O desejo generalizado de voltar à “normalidade” depois da pandemia significa aprofundar o modo de vida imperial com a Amazon, com a digitalização, com as compras de mercadorias pela Internet.
As pessoas que compram pela Internet não pensam de onde vem as mercadorias, não pensam nas condições dos trabalhadores que levam até as suas casas as mercadorias. O cotidiano no Norte global, mas também no Sul, significa que a violência cotidiana do capitalismo contra muitas pessoas, contra a natureza, é invisibilizada, normalizada. A pandemia aprofundou as desigualdades existentes entre classes, entre gêneros e entre Norte-Sul.
As classes médias altas e as oligarquias têm um acesso direto ao modo de vida imperial e querem manter esse acesso. Desejam voltar a uma normalidade que antes já estava baseada em uma enorme desigualdade, sobretudo no mundo do trabalho. Se a luta por uma nova ordem mundial começou, o controle do conhecimento, o controle das vacinas agora com as variantes do vírus, terá um papel decisivo.
Como imagina o futuro imediato em relação à pandemia?
Ainda temos mais dois ou três anos para realmente controlar o vírus. Quando as políticas de austeridade começarem, a grande pergunta será quem paga as contas. Eu acredito que a União Europeia irá mudar sua estratégia de colocar tanto dinheiro na economia para optar por políticas de austeridade. Isto já aconteceu em 2010, em 2011, quando nos lembramos da Grécia.
A digitalização, que começou antes da pandemia, aprofundou-se de uma forma que não podíamos pensar em inícios de 2020. A digitalização, que nos permite nos comunicar agora entre Buenos Aires e Viena, é o poder do Facebook, Netflix, Amazon, Zoom, mas é também uma nova inscrição em nossos corpos, em nossas mentes, em nossas subjetividades, que passa pelo celular, Internet, Netflix.
Vai ser difícil pensar o que significa esta digitalização em uma perspectiva emancipatória. Temos uma indústria cultural, conforme chamaram os filósofos da escola de Frankfurt, como Adorno, tão forte que o grande desafio agora é como democratizar a digitalização.
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“Os mercados privados não solucionarão a crise ecológica”. Entrevista com Ulrich Brand - Instituto Humanitas Unisinos - IHU