Nossa existência sobre a Terra é cada vez mais complexa e perigosa, no entanto, temos um ativo que os governos costumam ignorar: ao longo da história da humanidade, fomos acumulando uma grande riqueza moral em termos de conhecimento.
Por isso (e não só por isso), os enormes desafios humanos e planetários não podem ficar exclusivamente nas mãos da técnica e a ciência, mas devem passar pelo escrutínio da filosofia moral, em um contexto de novo Iluminismo, universal e radical.
Este é um dos principais argumentos do último trabalho de Markus Gabriel, Ética para tiempos oscuros: Valores universales para el siglo XXI (Pasado & Presente), uma espécie de livro-manual no qual este professor de epistemologia e filosofia moderna e contemporânea, na Universidade de Bonn, pratica a reflexão moral como um físico: descreve o fenômeno para depois resolver os problemas mais complexos, por meio de abstrações e fórmulas.
Converso com ele por ocasião de sua visita a Barcelona, onde participa de um debate no CCB, dedicado à ética global.
A entrevista é de Berta Ares, publicada por Letras Libres, 28-07-2021. A tradução é do Cepat.
Em ‘Por qué el mundo no existe’ (Pasado & Presente), desenvolveu a teoria do novo realismo que o tornou mundialmente famoso. Então, passou a ser considerado a estrela da filosofia, o filósofo mais jovem, o mais midiático. Pergunto-me se em razão deste novo livro, em que sustenta um novo Iluminismo, busca imitar Kant, por mais que sua teoria do conhecimento e as condições sejam muito diferentes.
Sim, as condições são agora muito diferentes porque vivemos, do ponto de vista filosófico e histórico, em uma época de forte sentido ontológico. O sentido de realidade é muito forte por mais que a atual propagação de mentiras pareça contradizer esta descrição.
O grande paradoxo de nosso tempo é que o fenômeno da manipulação ocorre dentro do próprio saber, onde se colocou em andamento toda uma maquinaria própria dos tempos de obscuridade, ainda que a ideologia oficial o negue. Portanto, e especialmente neste sentido, as condições são muito diferentes das da época de Kant.
Pode aterrissar a ideia?
Podemos ver isso com a gestão da pandemia. Na Europa, todo mundo fala da ciência como a única solução à pandemia e, no entanto, apesar de centrar toda a gestão na ciência, a Europa foi o grande epicentro da pandemia.
A ideologia e a propaganda oficiais, da atualidade, não permitem ver com clareza o que está acontecendo. Por isso, falo em tempos obscuros. Meu projeto, que chamo de novo Iluminismo, quer romper com essa obscuridade e se apoia em uma filosofia da realidade.
E no conhecimento moral.
Efetivamente, Kant dizia que não podemos conhecer a coisa em si, ou seja, a realidade tal como é, independente do ser humano. Dizia que é inacessível ao pensamento humano, que está além de seu próprio conhecimento.
No novo realismo e no novo Iluminismo que proponho, tanto a realidade como a ação ética são óbvias para o ser humano. Em certo sentido, é o oposto de várias posições de Kant.
O Iluminismo está muito ligado à Revolução Francesa. Que acontecimento histórico acompanha este novo Iluminismo?
O acontecimento em que estamos imersos, ou seja, a pandemia, que explodiu quando já tinha começado a escrever o livro. Minha editora não compreendia que eu, então, já estivesse falando em tempos obscuros. Ela dizia que tudo estava bem! E quando estourou a pandemia, com toda a manipulação e obscuridade palpáveis, chamou-me de Nostradamus da filosofia.
Esta pandemia é uma revolução profunda que irá mudar tudo. Para começar, chegaram à Europa problemas da globalização que os europeus praticamente conheciam apenas como espectadores.
Agora, esses problemas da globalização já estão aqui. E qual foi a nossa primeira reação? Excluir o outro! Agora que os problemas da globalização ultrapassaram nossas fronteiras, nossa primeira reação é a de continuar excluindo o outro.
Você afirma que a política de identidade e a ética não podem coexistir.
A política de identidade é contrária à ética. A ética é radicalmente universal. O princípio da ética parte do fato de que o outro pode ter razão. Justamente o contrário do que está acontecendo agora no campo da ideologia contemporânea.
Eu acredito que a política de identidade é sobretudo uma tentativa de evitar fazer bem. Às vezes, essas políticas são defendidas como aquelas que protegem as minorias, mas na realidade não é assim.
De fato, atuam como os tecnomonopólios, que utilizam as minorias como meio para ter acesso a mais mercados. Estas condições de exploração estão ocorrendo, aqui, na Europa.
Ouvi você comparar a pandemia com o grande terremoto de Lisboa (1755). Considera que estamos vendo apenas a ponta do iceberg?
Exato. Porque a pandemia é a revolução. Ainda que já tenhamos as vacinas, estamos falando de uma pandemia. Vacinar os europeus não é o final. O fim da pandemia está em um futuro muito distante.
Agora, só estamos no início e, em algum momento, perceberemos que a única maneira de sair de toda a crise que gera (de saúde, econômica, de fronteiras...) é aceitar que o que vemos é apenas uma pequena demonstração da crise real que é a climática. O único modo de sair dela pressupõe criar um novo modelo de sociedade e uma nova visão do bem.
Atualmente, vivemos imersos no capitalismo, na fantasia dos mercados que neste momento não estão ajudando em nada. Temos também outras fantasias, um pouco vazias, como é a admiração pela alternativa chinesa.
Mas a China não é outro sistema, entrou, e com muita velocidade, na era moderna, é de fato a região que experimentou o mais rápido processo de modernização de toda a modernidade. Nem a China é uma alternativa, nem há competição entre ela, a Europa e os Estados Unidos. Isso também é uma fantasia. Neste momento, existe um único sistema e este não é sustentável, tem que deixar de existir. Vivemos em um sistema letal.
O que propõe?
Precisamos de algo radicalmente novo para este futuro, e a ideia que exponho em meu livro é colocar em prática a existência de valores realmente universais e, portanto, transculturais.
O primeiro Iluminismo na Europa foi acompanhado por condições coloniais, mas isso não implica que tenhamos que considerar o Iluminismo superado, implica a instauração de um Iluminismo necessariamente universal.
A Europa poderia ter aprendido da África ou da Ásia em sua gestão da pandemia. Convém mais pensar a partir de um universalismo falível. Os universalismos clássicos tinham uma certa tendência a reivindicar uma infalibilidade.
Assim é o imperativo categórico de Kant.
O imperativo categórico de Kant é uma fórmula com tendência generalista que não possibilita princípios de ação. Por exemplo, o confinamento e o toque de recolher são morais? O imperativo categórico não nos diz nada.
Precisamos de algo novo, este é o objetivo do livro. Nele proponho teses que nos ajudem a abordar estes problemas concretos ligados aos tempos que vivemos. Toque de recolher, sim ou não? Algo mais concreto não há! O novo Iluminismo responde a estas questões porque não evita a realidade.
Os confinamentos são morais?
Eu acredito que os confinamentos são imorais porque produzem danos colaterais, são soluções ruins para o problema. A política pandêmica da União Europeia é o maior fracasso de toda a história recente desta região do mundo.
A política pandêmica europeia é mais imoral que a política pandêmica da ditadura chinesa, porque é uma combinação dos piores fatores. Confinar-nos, fechar os restaurantes, não é uma solução!
Demonstra que a Europa não tem uma política de gestão da pandemia para além da vacinação, que é uma boa estratégia, mas não resolve a crise. É necessária uma solução realmente sustentável. Porque após esse vírus, vem o próximo e a crise climática. A vacinação não coloca um ponto final.
A pandemia fez rolar a cabeça de Donald Trump. Há um pouco mais de luz?
Sim, efetivamente há um pouco mais de luz, mas também há mais riscos. Cada progresso moral é acompanhado por novos riscos e mais graves. O próximo Donald Trump será mais perigoso que o atual.
A influência da extrema direita aumenta na Europa. Mas agora também há mais consciência de que o que fazemos tem consequências éticas: o cuidado e proteção, ou não, dos idosos, o uso, ou não, de máscaras, cada decisão que tomamos tem um valor ético.
É uma pandemia metafísica porque tudo o que fazemos, compramos, comemos, a maneira como falamos e nos comunicamos incorpora uma ética. A pandemia implica uma revolução moral, uma revelação do fato da realidade ética. Kant a chamou de o reino dos fins, e é a capacidade do ser humano de discernir o bem e o mal.
Em uma análise retrospectiva de Kant até o presente, como é que cada vez somos menos soberanos, mas mais narcisistas?
O mundo que somos explica o próprio fracasso do Iluminismo e o fato de que tenhamos desprendido o saber científico-tecnológico do saber ético. Esse é o grande fracasso: a ciência permitiu que se mate mais em massa e rapidamente, a ciência acumula mais mortes que a religião.
Resulta agressiva a própria ideia segundo a qual a política tem que fazer o que a ciência diz e pronto. Não! O que resolve a crise é a ética, a autonomia das pessoas. Precisamos do saber científico-tecnológico, mas fazer as coisas justas é uma precondição. Ciência e tecnologia não são o fim de uma visão do bem sustentável. Isto é justamente o que nos leva ao chamado Antropoceno, a destruição do planeta.
A ciência e a tecnologia mandam mais que a ética.
A ideia mais estúpida de todas, para dizer claramente, é a de que o progresso científico e tecnológico pode substituir o progresso ético. É a ideia mais estúpida de todos os tempos e de toda a história da humanidade, porque substituir o progresso ético pelo científico-tecnológico só nos leva à autodestruição.
A ideologia tecnoliberal é extremamente perigosa e suas fantasias estão criando as ideologias mais agressivas de nosso tempo. A crise climática é justamente o resultado do puro progresso científico e tecnológico, por mais que sejam disciplinas do saber.
A pandemia é uma chamada de atenção.
O vírus refutou plenamente a metafísica do Antropoceno. O que a pandemia nos diz é que não somos em nada importantes. E depois vem outra coisa, o fato de nosso “Ser animal”.
Antes da pandemia, o “Antropoceno” e o Pós-humanismo” concentravam boa parte do debate ontológico.
Os dois são debates falsos e perigosos. Somos e continuaremos sendo animais. O vírus nos demonstrou que estamos na mesma situação que os neandertais, mas ainda não aceitamos esta lição com a modéstia que requer, e continuamos no modelo tecnológico científico. Esta metafísica do cientificismo tem um ponto imoral.
Propõe uma ética da alteridade. Inspirou-se nos pensadores judeus da modernidade?
Certamente, muito. Para mim Spinoza é um pensador imprescindível. Sem Spinoza não há Iluminismo. Mas, além disso, sem Moses Mendelssohn, não há Kant, sem Salomon Maimon, não há Idealismo alemão, sem Hans Jonas - que foi o primeiro pensador que percebeu que temos deveres em relação às pessoas que ainda não existem, ou seja, gerações futuras -, não há partido verde como conhecemos, sem Lévinas, não há política do outro, sem Hannah Arendt, não há uma boa descrição do totalitarismo. Toda a tradição semítica é fundamental.
A tradição cosmopolita.
Por isso, é importante também a muçulmana, especialmente no momento de desconstrução de nossas próprias origens. Sendo cosmopolita, não posso ser só alemão-cristão, é incompatível com essa ideia de conhecer a si mesmo através do outro.
Para você, a “ética” está intimamente ligada ao conceito de “acolhida”.
Exato. E acolher a diferença radical pressupõe evitar os estereótipos. No entanto, vivemos em uma época de estereótipos que agora já produz a inteligência artificial, máquinas de desinformação que polarizam e dividem as pessoas em estereótipos. Eticamente falando, é muito pior o Twitter do que Donald Trump. As redes sociais vão ao coração de nosso pensamento e o afetam. São muito perigosas.
São máquinas de criar ódio.
Daí a minha insistência em que precisamos introduzir ética e filosofia já na escola, para que, entre outras coisas, saibam acolher a diferença. Mas não por autoridade, como é o “dever” kantiano, mas inspirado em um modelo democrático e compartilhado. E não antropogênico, pois a ética também deve se dirigir a outros animais, não só o humano.
Cabe destacar que você compreende a democracia não como um governo da maioria, mas como um governo eminentemente moral.
A maioria não significa democracia, isto no longo prazo é um modelo oligárquico porque a maioria não representa a todos. A moral sim. Não é fácil e é um processo falível, mas caso não seja dada certa orientação moral, para que queremos a democracia?
Na Alemanha, foi desencadeada uma grande polêmica entre os que querem mais confinamento ou menos. Uma maioria quer mais confinamento e nem sequer permite que os vacinados possam ir ao restaurante. Isso é imoral e ruim.
Na Europa, devemos ter clareza se queremos ser uma democracia ou uma ditadura da maioria. Claro que há uma ditadura na China, mas é melhor que a ditadura das maiorias porque ao menos é eficaz, ao passo que a ditadura da maioria é ineficaz e estúpida, e por certo pode ser imoral.
Em seu livro, destaca que a pós-modernidade traiu o relativismo moral.
A pós-modernidade e uma falsa concepção da democracia vêm juntas. A democracia real é a que aceita que existe algo acima da política, e esse algo é a dignidade humana.