02 Agosto 2021
As memórias podem ser um gênero literário traiçoeiro, particularmente para homens da Igreja e estudiosos. Ele facilmente pode se tornar um acerto de contas, uma justificação de políticas eclesiásticas e acadêmicas desagradáveis ou a sinalização de uma mudança de lealdade.
O comentário é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, publicado por National Catholic Reporter, 31-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
John W. O'Malley, SJ.
“The Education of a Historian:
A Strange and Wonderful Story”.
St. Joseph’s University Press, 176 páginas.
O recém-publicado livro de memórias do padre jesuíta John W. O’Malley, “Education of a Historian: A Strange and Wonderful Story” [A formação de um historiador: uma história estranha e maravilhosa, em tradução livre], é exatamente o contrário. Ele finalmente fornece uma narrativa para um dos jesuítas mais influentes – nos Estados Unidos e no exterior – nos últimos 100 anos e ajuda os leitores a entenderem algumas das enormes diferenças entre o catolicismo de meados do século XX e o de hoje.
Na introdução, O’Malley já mostra as conexões entre a sua vida como estudioso e como padre jesuíta. Falando sobre a crise pós-Vaticano II da Companhia de Jesus e da 32ª Congregação Geral (1974-1975), ele aborda “como uma crise na ordem se intrometeu na minha vida e como isso mudou a direção dos meus estudos”.
Mas as memórias de O’Malley não são apenas questões internas. Estão repletas de sabedoria, sagacidade e poesia: “Elas contam como a primeira vez que eu provei um gelato me ajudou a me tornar um resoluto italófilo e me incitou a abandonar a história alemã em favor da italiana. O livro, portanto, revela o papel crucial da intuição na vida e nos estudos. Ilustra que nem a vida nem os estudos são uma história de que dois mais dois é igual a quatro”.
O primeiro capítulo, “Crescendo em Tiltonsville”, pinta o quadro da pequena cidade em Ohio onde ele nasceu: a dinâmica social e religiosa, o impacto da Grande Depressão, a distância entre as grandes cidades e o resto dos Estados Unidos. Acima de tudo, retrata a simplicidade da sua vocação ao sacerdócio e o acaso da sua escolha pelos jesuítas.
Curiosamente, mas não surpreendentemente, O’Malley parece ter chegado a Inácio de Loyola a partir de Agostinho de Hipona. Mas o verdadeiro amor intelectual e espiritual da vida de O’Malley continua sendo Erasmo de Rotterdam: “Meu trabalho sobre Erasmo me forneceu perspectivas importantes sobre dois assuntos que mais tarde se tornaram grandes projetos para mim – o Concílio Vaticano II e a história dos jesuítas”.
“Muitas das decisões do Concílio ecoam temas de Erasmo, como a necessidade da liturgia vernácula, os males da guerra e a abertura à inspiração divina em outras religiões”, escreve O’Malley.
O capítulo dois, “Formado como jesuíta: os Estados Unidos e a Áustria”, está repleto de detalhes sobre a sua compreensão de si mesmo graças a um entendimento mais profundo dos Estados Unidos nos anos 1940 e 1950: o chamado para ser uma testemunha de um casamento inter-racial em Chicago, a leitura do romance político “The Ugly American” de 1958 como uma passagem para uma sensibilidade cultural mais cosmopolita.
O capítulo três, “Formado como historiador: Harvard e Roma”, contém páginas maravilhosas e comoventes sobre a sua escolha de abandonar a história religiosa alemã para abraçar a Itália (as suas páginas sobre a descoberta da Itália, de Veneza a Florença e Roma, durante uma viagem a partir da Áustria em julho de 1961, trouxeram lágrimas aos meus olhos: eu li o livro de O’Malley na Itália, onde eu voltei durante o verão, depois da maior ausência do meu país devido à pandemia).
Essa virada fundamental ocorreu em um momento crucial na história da Igreja Católica, enquanto ela se preparava para o Concílio Vaticano II. O’Malley estava fazendo pesquisas em Roma e, portanto, estava na “cidade eterna” em duas das quatro sessões do Concílio de 1962 a 1965, e, durante um desses momentos, os seus estudos a sua e vida como padre jesuíta se enriqueceram mutuamente. A eleição de Pedro Arrupe como geral dos jesuítas em 1965 foi um divisor de águas na história dos jesuítas e também do catolicismo global.
O capítulo quatro, “Cada vez mais fundo no Renascimento”, descreve a ascensão dos estudos de O’Malley em termos de reconhecimento nacional e internacional. É o início da história de um historiador e de como seus livros tiveram uma influência na mudança de um campo – especialmente quatro livros, todos eles traduzidos em várias línguas: “Praise and Blame in Renaissance Rome” (1979), “Os primeiros jesuítas” (Ed. Unisinos/Edusc, 2004[1998]), “Trent and All That” (2002) e “O que aconteceu no Vaticano II?” (Ed. Loyola, 2014[2008]).
Mas este livro nos apresenta um estudioso bem ciente do que acontecia ao seu redor: a grande enchente de Florença no dia 4 de novembro de 1966 (que ocorreu quando ele estava lá), os distúrbios de 1967 em Detroit (onde logo depois ele assumiu papéis de liderança na universidade e na sociedade). Um capítulo importante se concentra em sua participação como delegado eleito da 32ª Congregação Geral da Companhia de Jesus, inaugurada no início de dezembro de 1974.
Nas próprias palavras de O’Malley:
“Para a grande surpresa dos jesuítas em todo o mundo, o padre geral Arrupe convocou uma Companhia a se reunir em Roma no início de dezembro de 1974. Ele queria da Companhia uma avaliação de como ela estava se saindo no difícil cenário do fim dos anos 1960 e início dos 1970, anos de turbulência na Igreja e na sociedade em geral – motins estudantis e raciais, a ‘revolução sexual’, as guerras e outros problemas entre colônias e países-mãe, a Guerra do Vietnã envolvendo primeiro a França e depois os Estados Unidos.”
O’Malley descreve a sua participação nessa assembleia não apenas como uma das três ou quatro Congregações Gerais mais importantes da história dos jesuítas, mas também como uma das experiências mais importantes (e não apenas porque outro delegado era Jorge Mario Bergoglio, o futuro Papa Francisco).
Ela foi muito mais longa do que o esperado e foi um período de desafios físicos e emocionais: “Então, finalmente, no dia 15 de março [de 1975], a Congregação declarou encerrados os seus trabalhos. Às vezes, eu descrevo a Congregação como os piores – e os melhores – três meses e meio da minha vida de jesuíta. Foram os piores pelas razões que eu acabei de descrever. Foram os melhores por muitas razões”.
Os capítulos cinco, “Da Renascença aos jesuítas”, e seis, “Culturas, concílios e catolicismo moderno inicial”, contam como um estudioso que conquistou o reconhecimento internacional pelos seus estudos sobre o Renascimento italiano tornou-se um ator-chave na pesquisa sobre a Companhia de Jesus (especialmente sobre a sua história inicial), sobre uma nova maneira de interpretar o catolicismo na época da Reforma Protestante e sobre o Vaticano II – em todos esses casos, iniciando uma nova fase nos estudos internacionais nesses campos. A curiosidade intelectual anda de mãos dadas com as preocupações eclesiais.
Olhando para a história de O’Malley, podemos entender o elemento humano do fazer história:
“O livro, portanto, é sobre como eu trabalhei como historiador e desenvolvi métodos que resultaram em tais entendimentos. Ele mostra como os eventos impactaram a minha vida e sobre o que eu escolhi escrever. Ele mostra como e por que eu comecei a me confundir com certas questões e, então, mostra aonde essa confusão me levou. Mais amplamente, ele mostra como um ingênuo jovem de Tiltonsville fez o seu caminho no mundo. Assim, ele mostra que os historiadores são criaturas de carne e osso, de medos e esperanças, vivendo no tempo e no espaço.”
Em seis décadas de trabalho acadêmico, O’Malley nos educou para uma compreensão mais profunda do estilo e dos gêneros literários. Ele não se importaria que eu dissesse que, neste livro, há páginas que parecem tiradas de um filme de Frank Capra (capítulo um, sobre a sua infância em Tiltonsville) ou de “A doce vida”, de Federico Fellini (capítulo três, sobre Roma nos anos 1960).
Assim como as obras-primas do cinema, este livro de memórias tem diferentes tipos de públicos.
Para os estadunidenses, é a vida de um compatriota que mudou a forma como olhamos para a Igreja, graças também ao esforço de olhar para os Estados Unidos de longe, tanto geográfica quanto cronologicamente.
Para os católicos, é o exemplo de um membro da Igreja nascido, criado e formado em um catolicismo pré-guerra cultural, em que as fronteiras confessionais com os protestantes eram claras, mas provavelmente mais transitáveis do que as trincheiras intracatólicas de hoje.
Para os historiadores da Igreja e os teólogos, para acadêmicos jovens e velhos, é a história de quando a história da Igreja ainda estava lutando para ser aceita como parte do cânone teológico – e o que os estudiosos católicos tinham que fazer e ainda podem fazer a esse respeito.
Para os jesuítas, é como uma pintura que descreve a vida de um estudioso da Companhia de Jesus em um momento específico, de um tipo de ordem religiosa para outro após o Vaticano II e a “crise jesuíta” de 1981 a 1983, após a mudança dramática de liderança de Arrupe para Peter Hans Kolvenbach (o relato de O’Malley sobre o seu testemunho para o processo de canonização de Arrupe em 2019 é muito interessante).
Este livro de memórias também tem a coragem de ser como uma carta de amor para a Companhia de Jesus e para a Igreja Católica: ecoando o título do livro favorito de O’Malley, uma carta com muito mais elogios do que acusações.
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John O’Malley conta a sua “estranha e maravilhosa história” em suas memórias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU