03 Agosto 2021
Lento pede, com tempos mais longos do que o previsto, vai-se realizando em toda a Igreja Católica de rito latino uma mudança leve, mas não irrelevante na fórmula de consagração do cálice que os católicos de muitos países do mundo ouvem toda a vez que participam da missa, desde que – depois do Concílio Ecumênico Vaticano II – passou-se a celebrar o rito nas línguas dos diversos países.
A reportagem é de Gianni Valente, publicada em 30 Giorni, n. 4, 2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Desde aquele tempo, durante a missa, no momento da consagração do cálice, os fiéis de grande parte do mundo ouviram o sacerdote celebrante repetir as palavras de Jesus segundo as quais o seu sangue é derramado “por vós e por todos” para a remissão dos pecados.
Agora, nas diversas línguas, vai-se corrigindo essa fórmula segundo as indicações dispostas pela Santa Sé em outubro de 2006: de nação em nação, durante a Oração Eucarística, a expressão “derramado por vós e por todos” é substituída por “derramado por vós e por muitos”.
A mudança diz respeito a uma única palavra: o “todos” se torna “muitos”. Mas a substituição, desde que foi disposta pela Santa Sé, alimentou debates e equívocos, destinados talvez a ressurgir à medida que as indicações vaticanas são recebidas e implementadas pelos episcopados nacionais: se Cristo morreu “por muitos”, isso significa que ele não morreu por todos?
E a fórmula usada após o Concílio em boa parte das paróquias de todo o mundo, aquela segundo a qual o sangue de Jesus foi derramado “por todos”, era, portanto, uma versão errônea e enganosa?
O cardeal jesuíta Albert Vanhoye, reitor emérito do Pontifício Instituto Bíblico, que o próprio Bento XVI reconheceu publicamente como “um grande exegeta”, oferece o seu ponto de vista de autoridade sobre toda a questão.
Eminência, por indicação da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, vai-se introduzindo uma modificação na fórmula da consagração do vinho em diversas versões linguísticas. “Derramado por vós e por todos” se tornará “derramado por vós e por muitos”. Que referências o Novo Testamento oferece a esse respeito?
Quanto às fórmulas usadas para a consagração eucarística, encontram-se coisas diferentes no Novo Testamento. Na fórmula da consagração do pão, relatada na Primeira Carta aos Coríntios, Jesus diz: “Este é o meu corpo, que é para vós”. Não para muitos, não para todos, mas para vós. Em Lucas, encontra-se a mesma fórmula, com um acréscimo: “Este é o meu corpo, que é dado por vós”. Quanto à fórmula da consagração do vinho, na Primeira Carta aos Coríntios, Paulo não faz nenhuma referência aos destinatários: “Este cálice”, diz Jesus, “é a nova aliança no meu sangue”. Só isso. Enquanto no Evangelho de Lucas, Jesus repete a fórmula usada para a consagração do pão: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue, que é derramado por vós”. Em vez disso, ainda em relação à fórmula para a consagração do vinho, Marcos e Mateus, nos seus respectivos Evangelhos, usam uma expressão que, na versão grega, contém a palavra polloi, muitos. Em Marcos, encontramos a frase: “Este é o meu sangue, o sangue da aliança derramado por muitos”. No Evangelho de Mateus, em vez disso, Jesus diz: “Este é meu sangue da aliança, derramado por muitos, para a remissão dos pecados”.
Então, o problema é sobre como se deve interpretar a palavra “muitos”.
Em italiano, “muitos” se contrapõe implicitamente a “todos”. Se você diz que muitos alunos passaram no exame, isso significa que nem todos passaram. Por outro lado, em hebraico, não existe essa conotação dialética. A palavra rabim significa apenas que existe um grande número. Sem especificar se esse grande número corresponde ou não a todos.
Que orientações a exegese oferece para esclarecer esse ponto?
Muitos textos do Novo Testamento repetem que Cristo morreu por todos. Paulo, na Segunda Carta aos Coríntios, escreve que “o amor de Cristo nos impulsiona quando consideramos que um só morreu por todos” (2Cor 5,14). E, na Carta aos Romanos, ele repete que, “se pela queda de um só morreram todos, muito mais a graça de Deus e o dom concedido em graça de um só homem, Jesus Cristo, foram derramados abundantemente sobre todos” (Rm 5,15). Precisamente em relação à Eucaristia, no capítulo sexto do Evangelho de João, encontramos o discurso de Jesus sobre o pão da vida: “Se alguém comer deste pão, viverá para sempre, e o pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo”. Trata-se, portanto, de uma oferta universal, não reservada em princípio a um certo número de destinatários. Tudo isso evidencia uma questão teológica.
O que se refere?
É claro que a intenção de Jesus na Última Ceia não foi dirigida a um certo grupo determinado, embora numeroso, de indivíduos. A sua intenção foi universal. Jesus quer a salvação de todos. Ele é o salvador do mundo. O Novo Testamento repete isso várias vezes, a partir do capítulo quarto do Evangelho de João, quando os samaritanos declaram que reconheceram que Jesus é “verdadeiramente o salvador do mundo”. Não somente o salvador dos judeus, mas também dos samaritanos e de todas as nações. Uma expressão – salvador do mundo – que se encontra também na Primeira Carta de João.
Em sua opinião, o que tudo isso sugere?
Jesus não excluiu ninguém e, no fim do Evangelho de Mateus, ele diz para levar o anúncio a todas as nações. Portanto, a intenção de Jesus é dirigida a todos. “A toda a criatura”, chega a escrever Marcos no fim do seu Evangelho, usando uma expressão um pouco imprópria, porque o Evangelho certamente não deve ser pregado aos cachorros ou aos cavalos, que também são criaturas. Mas isso também é para manifestar a intenção de Jesus, que é universal e oferece a salvação a todos.
No entanto, no Novo Testamento também existem expressões que soam mais “exclusivas”.
São Paulo diz que a fé não é de todos. E Jesus também usa fórmulas muito limitativas, como quando diz que muitos são convidados e poucos os salvos. Essas passagens têm uma intenção exortativa. Jesus nos adverte do perigo de sermos excluídos. Não se configura aqui uma definição de predestinação. Nunca se encontra no Novo Testamento a ideia de que alguém está destinado a priori a um destino negativo. Por outro lado, pode-se ver nos Evangelhos que Jesus levava em consideração que nem todos aceitariam a sua oferta de salvação. Mas isso não questiona uma limitação excludente já inerente à intenção. Do ponto de vista exegético, na fórmula latina da consagração do cálice (“... qui pro multis effundetur...”), a expressão “pro multis” deve ser entendida no sentido que ela tinha na língua aramaica em que foi proferida. Isto é, sem colocar “muitos” em contraposição a “todos”. A tradução litúrgica francesa contornou essa dificuldade traduzindo o “pro multis” latino com a expressão “pour la multitude”. A multidão também podem ser todos. Parece-me uma escolha a ser apreciada, porque respeita o original da versão latina e, ao mesmo tempo, evita cair em contraposições – neste caso enganosas – entre muitos e todos, mantendo o sentido da abertura universal da oferta do cálice.
A mudança solicitada pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos pode ser interpretada como um repúdio das traduções para algumas línguas vulgares, em que o “pro multis” foi traduzido como “para todos”?
Do ponto de vista teológico, traduzir “pro multis” como “para todos” pode ser adequadamente motivado, se levarmos em consideração os dois fatos que eu já expus, a saber, que em hebraico “muitos” não se contrapõe a “todos”, e que todo o Novo Testamento repete que Jesus não pretendeu excluir ninguém a priori da Redenção.
Entre as motivações apresentadas na carta do cardeal Arinze para uma “tradução mais precisa da fórmula tradicional pro multis”, a primeira se refere à necessidade de se ater ao texto dos Evangelhos sinóticos, que, em grego, trazem a fórmula “hyper pollon”. O senhor compartilha esse argumento?
Eu não saberia dizer. No século passado, o grande exegeta alemão Joachim Jeremias, no verbete “polloi” escrito para o “Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament”, o dicionário teológico do Novo Testamento, partindo do fato de que, em hebraico, rabim podia designar a todos, chegou a mostrar que, também no texto grego do Novo Testamento, o vocábulo polloi (muitos) às vezes ocorre com um significado equivalente ao de pantes (todos). Pode-se ver isso, por exemplo, na Carta aos Romanos, em que Paulo usa de forma indiferenciada a expressão “pantes anthropoi”, todos os homens, e a outra expressão “hoi polloi”, que, por si só, significaria a maioria. Tanto que as versões em latim e nas línguas vulgares de todas essas passagens traduziram “hoi polloi” como “omnes”, todos.
Na carta da Congregação, também se observa que “o Rito Romano em latim sempre disse ‘pro multis’ e nunca ‘pro omnibus’ na consagração do cálice”. Manfred Hauke, no seu estudo sobre a tradução do “pro multis”, escreve: “Estamos diante de palavras de Jesus Cristo, citado com a expressão ‘e disse’. Uma consciente modificação das palavras do Senhor seria, portanto, uma monstruosidade”.
Saliento que, nas palavras escolhidas para as fórmulas de consagração, a Igreja usou uma certa liberdade. Na oração de consagração do vinho, quando se repetem as palavras de Jesus dizendo: “Este é o cálice do meu sangue para a nova e eterna aliança”, deve-se notar que essa formulação não se encontra em nenhum dos Evangelhos; nenhum deles diz “o cálice do meu sangue”, em nenhum a palavra “eterna” aparece entre as usadas por Jesus na instituição da Eucaristia. Ela se encontra, em vez disso, na Carta aos Hebreus, na qual se diz que Cristo foi o mediador de uma “aliança eterna”. Pois bem, a Igreja, em seu tempo, tomou a liberdade de inserir essa palavra na fórmula da consagração do vinho. E me parece que essa escolha também vai no sentido de reconhecer a intenção universal da salvação oferecida por Cristo mediante o seu sacrifício: “eterna” significa para todos os tempos.
E o que isso indica para o senhor?
Significa que não se pode reduzir tudo à preocupação com uma rigidez literal. É o próprio Novo Testamento que nos leva a uma certa flexibilidade, para evitar absolutizações e rigidezes que acabam nos enganando. Precisamente para a fórmula da consagração do cálice, viu-se como as fórmulas de Paulo na Primeira Carta aos Coríntios e de Lucas no Evangelho são verdadeiramente muito diferentes das de Mateus e de Marcos. Também para o Pai-Nosso nos Evangelhos, encontramos duas versões diferentes.
O verdadeiro nó teológico está exposto em outra das razões para a mudança proposta na carta da Congregação de 2006: “A expressão ‘pro multis’”, escreve o cardeal Arinze, “enquanto permanece aberta para incluir cada pessoa humana, também reflete o fato de que essa salvação não se realiza de forma mecânica, sem a própria vontade ou participação”.
Mas a fórmula da consagração que se decidiu corrigir também não envolve, por si só, a ideia de uma salvação mecânica. Se dizemos que Jesus morreu por todos, isso não significa que todos aceitarão a salvação oferecida mediante o seu sacrifício. No fundo, todo o problema se resolve mantendo presente esta distinção: o principal é dizer a todos que a salvação é oferecida a todos, que Jesus não fez nenhuma restrição prévia, não excluiu ninguém dessa oferta. Mas ela deve ser acolhida, e aqui entra em jogo a liberdade humana. Portanto, pode-se pensar que nem todos serão salvos. Os textos de caráter limitante que eu citei vão nesse sentido. Como eu disse, eles indicam simplesmente a possibilidade, o perigo real da condenação.
No entanto, não se pode negar que se tornou uma opinião generalizada um certo mecanismo salvífico que considera a salvação como garantida a priori para todos.
Não me parece que tal opinião possa ser imputada a uma suposta ambiguidade das versões em língua vulgar que traduziram “pro multis” como “por todos”. Basta se ater às palavras de Jesus e à clara intenção com que ele as pronunciou para excluir qualquer automatismo da salvação por ele oferecida a todos. Se, por outro lado, fizermos especulações ou raciocínios artificiais, também há outros textos isolados que podem ser manipulados para se chegar a conclusões enganosas. Por exemplo, Paulo escreve na Primeira Carta a Timóteo que Deus quer que todos sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade: pode-se partir dessa afirmação para deduzir arbitrariamente que todos são salvos ab origine pela onipotente vontade divina. Na minha opinião, é preciso ter o senso daquilo que eu chamava antes de flexibilidade. É preciso evitar tirar do Novo Testamento um texto isolado para tirar conclusões que não correspondem ao conjunto da Revelação.
Mas, ao se traduzir “pro multis” como “por todos”, não se arriscou, de alguma forma, a favorecer a difusão de doutrinas ambíguas entre os fiéis?
Não me parece que o povo cristão tenha essa propensão a analisar as palavras individuais com pretensões de literalismo. O povo aceita que Jesus usou a expressão “por muitos”, e, nesse sentido, a escolha de traduzir “pro multis” como “por todos” certamente não era uma escolha obrigatória. Portanto, a correção dessa tradução também será aceita pelos fiéis sem problemas.
Porém, de um lado e do outro, há quem parece não compartilhar essa sua abordagem desdramatizante. Para alguns, a mudança de tradução acabará favorecendo a ideia de que Cristo não morreu por todos. Outros, pelo contrário, consideram a mudança absolutamente necessária para combater um “equivocado e temerário otimismo da salvação”...
Repito: a mudança de tradução é legítima e tem as suas razões, mas não deve ser interpretada como uma restrição da promessa de salvação oferecida a todos e, portanto, como um repúdio das traduções utilizadas nas línguas vulgares de 1969 até hoje. Em suma, é preciso evitar colocar em contraposição dialética o “pro multis” e o “por todos”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Não há contraposição dialética entre ‘pro multis’ e ‘por todos’.” Entrevista com o cardeal Albert Vanhoye - Instituto Humanitas Unisinos - IHU