"As igrejas, os grupos religiosos, os evangélicos, no caso, vêm se atravessando de forma muito diferente em relação à política. E, cada vez mais, trazendo novos sintomas religiosos para arena política brasileira".
A entrevista com Fábio Py é de Ricardo Evandro S. Martins.
Ricardo Evandro S. Martins é professor de Teoria do direito e de História do pensamento jurídico, na Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos-PPGD, da Universidade Federal do Pará-UFPA. Doutor em Direitos Humanos pela UFPA. Membro do GT de Filosofia Hermenêutica da ANPOF. Presidente da Comissão de Biodireito da OAB-PA. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre a filosofia de Giorgio Agamben, vinculado ao Grupo CESIP-Margear. Autor de Ciência do direito como Ciência Humana: Hans Kelsen e a influência do Neokantismo (Editora Fi,2016), Ciência do Direito e Hermenêutica (Editora Phi, 2018) e de Seis ensaios sobre Agamben: calúnia, colonialidade e pandemia (Editora Fi, 2020). Colunista do Jornal Bemdito.
Fábio, pode falar um pouco sobre ti, sobre a tua formação?
Em termos formais, minha primeira formação foi em Física, nela, discuti a história da filosofia da Física. Minha segunda formação foi em Teologia, na Faculdade Batista do Rio de Janeiro, no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, em 2006. Nele, estudei o Antigo Testamento, a algumas de suas expressões exegéticas e suas aproximações com a América Latina. Minha terceira formação já foi no campo da História, e minha monografia foi sobre os batistas durante a Ditadura Militar (1964-1985), com um perfil mais historiográfico. Também tenho mestrado em Ciência da Religião na Faculdade Metodista, quando pesquisei o Antigo Testamento, sob orientação de um célebre professor, do meio teológico luterano, da teologia da libertação, Milton Schwantes. Tenho doutorado em Teologia na PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Minha tese de doutorado é sobre a relação entre Fé e Política, envolvendo a Doutrina Social da Igreja, no campo do catolicismo, mas também tratando do meio evangélico. Pesquisei sobre um movimento batista socialista das décadas de 1940 e 1950, no Brasil, quem organizou um movimento chamado Movimento de Diretriz Evangélica. Nele fiz um texto mais metódico, apesar de ter elementos da história da Igreja. Trabalho mais teórico como a construção de uma categoria que chamei de “cristianismo romântico brasileiro”. Essa é minha trajetória acadêmica formal.
Sou professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais-PPGS da UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro). Meus temas de pesquisa e ensino envolvem a relação da religião e Estado, principalmente pentecostalismo, e novas tradições religiosas nas favelas, roças e periferias brasileiras. Esses são os meus trabalhos em termos de Políticas Sociais, Políticas Públicas. Ao mesmo tempo, também, tenho uma formação – e gosto de usar este termo – protestante-evangélico. Já passei por menos três grandes tradições evangélicas: na minha infância, frequentei a igreja pentecostal numa região periférica de Niterói, chamada de Igreja Batista do Calvário – uma das primeiras igrejas pentecostais advindas de rachas batistas do Brasil, e que ajudou a organizar um movimento de pentecostal na região. Minha tia, inclusive, é pastora nesta comunidade até hoje. Passei a adolescência na igreja tradicional – quer dizer, um protestantismo tradicional – a Igreja Batista do Fonseca, onde tive toda minha formação, praticamente. Mesmo assim, descobri ao longo da minha caminhada a minha família luterana – os Py. Então frequentei, logo após entrar no Seminário, a Igreja Luterana, de Niterói, por um seis ou sete anos. Basicamente minha formação religiosa é essa, perambulei por estas tradições, o que me orgulha muito. Na verdade, é um perfil muito comum no setor protestante-evangélico brasileiro, de certa ‘perambulação’, em diferentes comunidades religiosas. Em termos, não tão formais, participei da organização de coletivos evangélicos críticos como o Cristoversivos, o Vandalizando no Rio de Janeiro e o Casa Comum, em Campos dos Goytacazes.
Sobre “cristofascismo”, conceito que você recepcionou no Brasil, da autora Dorothy Soelle, com o seu ebook sobre o tema, pode falar mais dele?
Para falar do “cristofascismo”, tenho de falar um pouco das aulas que tive com a Profa. Maria Clara L. Bingemer na PUC-RJ, no Departamento de Teologia, quando ela apresentou a autora Dorothy Soelle. Como uma luterana de luta, de não se curvar aos pastores sinodais luteranos, e à própria estrutura da Igreja Luterana alemã, Soelle lutou durante a vida toda para ter reconhecimento, e não o conseguiu totalmente. Mas, já para o final da vida, Soelle conseguiu ser professora, passando seis meses viajando para o Union Theological Seminary (Seminário Teológico da Universidade de Columbia), em Nova York, que é um grande seminário nos EUA, inclusive responsável nas mobilizações da teologia negra americana, com nomes como James Cone. E neste contexto, de viagens para os Estados Unidos, de emigrações, ela trabalhou, pontualmente, a questão da obediência, fazendo diferenciações com a “obediência cega”. E, no meio disto, vai utilizar pela primeira vez o termo cristofascismo. Mas, basicamente, Soelle estava se referindo à questão dos movimentos supremacistas brancos dos Estados Unidos, enquanto expressão conectada com o que ela tinha vivido, na Alemanha, com o nazismo. Esta conexão será feita, então, a partir do cristianismo destes grupos racistas, preocupada com suas conexões com os movimentos “exclusivistas-teológicos”. O que quer dizer isto? São grupos que acreditam que portam a “Verdade”, logo, que possuem o direito de cometer todo tipo de violência, seja contra mulheres, seja contra os movimentos negros norte-americanos, além de movimentos indígenas, latinos, etc.
Então, a Soelle estava preocupada com o contexto das igrejas no mundo, da própria igreja alemã e americana. Ela se preocupava sobre como estas igrejas estão de alguma forma relacionadas com a intolerância, e com este ódio contra estes movimentos. Assim, quando falo hoje no Brasil sobre cristofascismo (no livro: “Pandemia cristofacista”, São Paulo: Recriar, 2020), acabo por me diferenciar da expressão de Dorothy Soelle, e busco traçar mais conexões como o trabalho de Carl Schmitt (jurista alemão). Pois estou preocupado, basicamente, com a conexão da extrema-direita brasileira, que se notabilizou com o bolsonarismo, com a linha dos pentecostais, protestantes tradicionais e católicos conservadores, os quais se relacionam com o governo cerceador atual. Portanto, quando trato do “cristofascismo brasileiro” (vide o artigo: Fábio Py, Bolsonaro’s Brazilian Christofascism during the Easter period plagued by Covid-19, IJLAR, 2020) tem muito mais um elemento da reflexão sobre o Estado atual, ou, para usar uma importante terminologia de Carl Schmitt, no seu livro de 1922 [Teologia política]: uma “teologia autoritária de estado”, ou, ainda, uma “teologia governamental autoritária”.
Como se deu historicamente a influência do evangélicos na política recente brasileira?
Essa influência dos evangélicos na política não é uma coisa nova no Brasil. Na verdade, ela já se traçava a partir da década de 1930, com a organização da Confederação Evangélica Brasileira (CEB), que tinha um pouco a pretensão de representar como um braço oficial dos evangélicos também na política – como ocorreu também com a Liga Católica brasileira. A CEB representava, então, os evangélicos que estão se organizando a partir, principalmente, das décadas de 1910 e 1920. E quando falo desta Confederação evangélica, na década de 1930, há um grande nome a ser lembrado, Guaracy Siqueira. Ele foi um pastor metodista socialista cristão, quem se candidata e consegue chegar a se eleger como Deputado Federal por dois mandatos.
Então, não é uma questão nova, e nem sempre esta influência evangélica na política foi conservadora, de direita, como o senso comum afirma. Por isto, tenho de ser justo: existe, sim, uma face da relação da religião com a política, que está presente desde a formação brasílica, principalmente junto ao catolicismo ibérico. Dito isso, é importante que se demarque que os evangélicos não são o primeiro grupo a praticar a política institucional no Brasil. Cada grupo vai fazer uma forma muito própria de se articular politicamente, de se fazer representar. Os evangélicos tomaram um caminho distinto daquele caminho do catolicismo, que ajudou a formar o brasilismo, este projeto de nação ibérico, no Brasil. Eles começam a chamar a atenção a partir das décadas de 1930 e 1940, com agendas de diálogo social, com os direitos humanos, “progressistas” – e não gosto de usar este termo –, então, na verdade, agendas de “crítica social”. E este é o melhor termo para indicar a atuação de Guaracy Siqueira. E isto se aprofundou durante a Ditadura Militar, por alguns braços da IPB (Igreja Presbiteriana do Brasil), da Igreja Metodista, Igreja Batista, inclusive pela Assembleia de Deus, que apoiaram pelo menos nos bastidores, a Ditadura civil-empresarial-Militar de 1964.
A partir de 1986 e de 1988 [com a reabertura democrática no Brasil e com a Constituinte da CF/88], há uma nova caminhada política. Com isto, também, os evangélicos já se reconhecem, e as igrejas voltam a reconstruir a CEB. Eles se reorganizam para se fazer representar politicamente, exatamente a partir Das primeiras eleições de 1986. Surge, neste contexto, um esboço daquilo que vai se chamar de “Bancada Evangélica”, que é o grande esboço do que vemos hoje sob este mesmo nome, enquanto sendo, atualmente, a “substância do bolsonarismo”, diria.
Nessa linha de raciocínio, algumas coisas podem ser ditas: o crescimento, de eleição a eleição, da constituição de partidos que os evangélicos pentecostais e protestantes ajudaram a organizar, faz com que, de tal forma, a partir da década de 2010, a Bancada Evangélica ganhe um número mínimo para que ela se transformasse numa “Frente Parlamentar Evangélica” (FPE). A hoje FPE consegue agremiar mais de 360 parlamentares, sendo, então, um braço político importante da política conservadora do bolsonarismo. Ela tem tanta força, que traz para perto de si grupos espíritas conservadores, católicos conservadores, e inclusive ateus conservadores. São grupos que frequentam, ou não, as reuniões-culto da FPE, às quartas-feiras, pela manhã. Estas reuniões são basicamente lideradas por figuras como do Deputado Federal Pr. Marco Feliciano (PSC-SP).
A partir desta substância, isto é, da FPE/Bancada evangélica, vai se construindo a relação dos evangélicos com Jair Bolsonaro. Precisamente a partir de 2016 que o atual Presidente começa a se interessar pela relação com a FPE. E, assim se batiza no Rio Jordão, em Israel, em 2016; quando os representantes da Frente ajudaram a organizar o impeachment da ex-Presidenta Dilma Rousseff, do PT. Seus representantes viajaram de forma intensa para Brasília com o objetivo de negociar o impeachment – e tudo isto se sabe oficialmente.
E sobre o apoio dos evangélicos ao Bolsonaro?
Então, este noivado entre Bolsonaro e os evangélicos firmado em 2016 começa a ganhar mais substância a partir do governo de Michel Temer, fazendo-se mais intensa, selando-se este “casamento” em 2018, com grandes reuniões entre o atual Presidente, a FPE e os pastores das Grandes Corporações Evangélicas. Sobre isto, quero citar duas reuniões básicas: primeira, a reunião com os protestantes tradicionais, quer dizer, os batistas presbiterianos, em junho de 2018, na cidade de Belo Horizonte, onde se assumiu o compromisso de apoio à candidatura de Bolsonaro; e a segunda, a reunião feita na cidade de Itanhangá, onde Bolsonaro, levado por Marco Feliciano, participou pessoalmente, dando as mãos, finalmente, para Edir Macêdo. Macêdo pregou nessa celebração, contando com 200 lideranças pentecostais importantes do Brasil.
Basicamente, é neste momento quando é selada a aliança de Bolsonaro com os pentecostais, momento em que ele teve apoio diretamente dos púlpitos destas igrejas para a sua candidatura à presidência do Brasil.
Bem, e quanto à relação entre católicos e Bolsonaro?
Sobre os católicos, acho que consegui indicar já alguma relação no artigo sobre o Paulo Ricardo. O interessante é que Bolsonaro se assume católico até hoje. Mas, em certos momentos, ele chega a indicar que também é evangélico. Sobre isso, a fala mais precisamente, sobre sua esposa, Michelle Bolsonaro, como evangélica. E os católicos nunca deixaram de estar próximos de Bolsonaro. Ele tem uma relação um pouco mais antiga com figuras do catolicismo, como, por exemplo, e até já publiquei sobre isto, no artigo do Padre Paulo Ricardo. É uma relação que data desde 2010, mais ou menos. E nesta data, quando Bolsonaro desponta como figura ultraconservadora, é quando estas figuras do catolicismo começam a se aproximar dele. Esta aliança é selada nas Eleições de 2018 de forma direta. Em Campos dos Goytacazes, por exemplo, os católicos, na missa, falavam abertamente que se deveria votar em Bolsonaro, “no 17” [número da candidatura da época, quando Bolsonaro era filiado ao PSL]. É impossível de desvincular politicamente o catolicismo tradicionalista, e também “renovação carismática”, de Bolsonaro. Ele trouxe consigo o imaginário do medievalismo, de sua intransigência, pelo qual este catolicismo mais conservador se assume, ativa-se de modo mais direto. E posso de destacar da seguinte forma direta, que há um interesse simbólico, uma relação do bolsonarismo com a memória da “ocupação” brasileira a partir do catolicismo, no processo da invasão europeia, a partir do brasão do Romano.
Certo, é possível dizer que há uma relação entre evangélicos e os juristas, na atual política brasileira?
É impressionante pensar em termos jurídicos esta relação. Vou lembrar da figura de André Mendonça, enquanto um quadro impressionante da formação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que é a grande escola universitária para o bolsonarismo. Aliás, Bolsonaro chama a Mackenzie de “a grande instituição acadêmica brasileira”. Mas existe uma “guerra cultural” entre alguns setores da Mackenzie que praticam uma ciência, e os demais setores acadêmicos brasileiros mais relacionados com as pesquisas científicas mundiais.
O que posso dizer sobre a relação entre evangélicos e juristas, portanto, é retornando ao nome André Mendonça, como um grande símbolo desta relação tanto é que é a indicação de Bolsonaro para o STF. Ele é uma pessoa de fala mansa, com boa formação acadêmica, e que ajuda na composição técnica da formação do Estado bolsonarista. Disto, deve-se lembrar da tese da banalidade do mal da filósofa alemão Hannah Arendt [em Eichmann em Jerusalém, de 1963]. Sempre que penso na figura do André Mendonça, lembro do trabalho de Arendt, quando ela entende que dentro do estado nazista havia sujeitos comuns, pais de família, mas que, no fundo, indo ao trabalho e voltando para casa, cuidando de suas famílias, também operavam o botão da câmara de gás. Com isto, não estou afirmando que o Estado brasileiro é um Estado nazista. Contudo, reporta-me a figura de André Mendonça, um sujeito de capacidade intelectual, mas que age de forma técnica no cargo político do Estado ultraliberal de Bolsonaro.
Também quero destacar o medo quando se fala de juristas, como William Douglas, quem “perambulou” dentre várias denominações protestantes de Niterói, e que também, pode posteriormente assumir um cargo de Ministro do STF. William Douglas é alguém que goza de ótimas relações com os pastores das Grandes Corporações Evangélicas do país. E, ainda mais que o André Mendonça, é alguém muito técnico, muito bem formado, que pode, se não houver algum impedimento disto, até 2022, dá cores mais competentes na construção e modulação do estado cerceador do bolsonarismo.
E sobre a relação entre evangélicos, PM, Exército e as milícias?
Sobre a Polícia Militar e o Exército, a primeira instituição é um setor mais popular entre os militares. E não podemos falar de “popular” no Brasil, hoje, das “periferias brasileiras”, como a Clara Mafra escreve, se não lembrarmos que as periferias urbanas são formadas basicamente por evangélicos. Essas são as figuras-chave: religião evangélica conseguiu, de uma certa forma, trazer sua mensagem, as suas construções, procedimentos, seus métodos evangelísticos – para dizer de forma direta – para as periferias, conseguindo, de tal forma, aproximar-se da população periférica, que, hoje, temos a maioria de igrejas como essas nestas regiões. Por isto, falar de evangélicos nas periferias também é falar da PM. Existe dados que mostram que 63% da PM do Rio de Janeiro é formado por evangélicos.
Essa relação de evangélicos com as milícias, como já vinha sinalizando, tem a ver o crescimento dos evangélicos nas periferias. E isso vem cada vez mais ganhando as classes mais altas, as classes médias. Então, vale a pena lembrar e dizer, pois não sei se as pessoas prestam a atenção, que na Barra da Tijuca, além de ter a sede do Bolsonaro, onde tem aquele condomínio onde ele mora [Vivendas da Barra] e um monte de personas ligadas à milícia, há uma igreja batista, Igreja Batista Atitude, que inclusive a família Bolsonaro frequenta, também tem uma série de personas ligadas à milícia, como vereadores e deputados. Também essa sede se tornou nos últimos anos um lugar muito importante porque no meio batista, algumas personas da cúpula batista se deslocarem e se tornaram membros dessa igreja.
Então, a igreja ganhou uma importância enorme no meio religioso batista. E aí vou citar o nome de Sócrates Oliveira, quem foi secretário executivo batista durante anos, sendo uma pessoa muito importante, um sujeito que articula as igrejas batistas, e que se tornou membro dessa comunidade. Bem, tenho fontes de que teria havido um plano sobre uma possível candidatura de Flávio Bolsonaro para Prefeitura do Rio de Janeiro, em 2020, a partir desta ampla mobilização entre a Igreja Atitude e a Convenção Batista Brasileira – plano que foi implodido devido às últimas circunstâncias [referindo-se às investigações sobre corrupção no gabinete de Flávio Bolsonaro, junto à ação da pessoa íntima dos Bolsonaros, o militar da reserva Fabrício Queiroz]. Mas posso dizer de forma muito direta que a Igreja Atitude do Rio de Janeiro tem uma serie de personas importantes, inclusive do rol das milícias do Rio de Janeiro. Então, como a religião evangélica se tornou tão densa no Brasil, hoje, com grande numero de fieis, e como houve uma ascensão das milícias no Rio de Janeiro, deslocando-se para a Barra da Tijuca, estes sujeitos passaram a frequentar essas igrejas. E quero destacar que esta igreja, a Atitude, tem sido um receptáculo para estas pessoas. É o que posso dizer sobre isto.
Para retomar um tema clássico da sociologia weberiana, mas também desenvolvida pelo filósofo alemão Walter Benjamin, e, recentemente, discutido pelo teólogo norte-americano, Adam Kotsko, você poderia falar sobre se há uma “religião capitalista”, e também sobre se há uma “teologia política neoliberal”?
Esta já é uma pergunta mais teórica, se há uma “religião capitalista” ou não. Para o Max Weber, a formação religiosa que tem mais conexão com o capitalismo, que ajuda a desenvolver este sistema, é o calvinismo. Segundo o importante trabalho de Weber, chamado Ética protestante e o espírito do capitalismo (1905), existem “afinidades eletivas” entre capitalismo e as formulações mais recentes do protestantismo de sua época. Nesse detalhe do ascetismo, também da busca pelo dinheiro, para Weber, há uma relação muito direta entre capitalismo e a expressão religiosa de Calvino. Karl Marx vai dizer que a religião ajuda no processo de alienação social, auxiliando, assim, aprofundar o caráter irracional das modulações capitalistas. Então, de forma pragmática, os grandes sociólogos apoiam essa ideia. Mas é interessante que no próprio material do Weber, quando ele vai chamar o calvinismo e as “seitas batistas”, ele também deixa espaço para falar das religiões que não possuem a vinculação tão direta com o capitalismo. Weber destaca, numa pequena quantidade de páginas detalhes sobre o catolicismo, e para o luteranismo. O sociólogo perceber que na ideia da salvação coletiva, no dado comunitário que o luteranismo e o catolicismo expressam. Weber indicará que o catolicismo e o luteranismo têm “afinidades negativas” com o capitalismo.
Então, com isso, já estou respondendo que Weber trata das diferenciações, colocando o catolicismo e o luteranismo, de um lado, e, de outro, os grupos ligados à teologia calvinista. Esse último, tendo “afinidades eletivas” com o capitalismo. Ou seja, ajudando a aprofundá-lo no centro da Europa. Neste caso, o que podemos pensar, a partir de Weber, no Brasil, de hoje, é: quais são as expressões religiosas que mais se vinculam “eletivamente” ou “negativamente” com o capitalismo?
Não acho que tem como se desvencilhar esta vivência capitalista das vivências religiosas, mas eu posso falar, aqui, que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) tem uma forma muito própria de construção dos seus dízimos e das suas expressões religiosas. A Igreja Mundial do Poder de Deus também o tem, mas também não quero deixar de lado o fato de que os próprios protestantismos tradicionais também têm relações diretas com o capitalismo – como Weber sinalizava em 1905. E, hoje em dia, mesmo a forma mais pacata, mais silenciosa dos protestantes tradicionais ao celebrarem seus cultos, também combinam com a expressão atual do capitalismo brasileiro.
Também, deve-se também pensar sobre a importância, no Brasil atual, das grandes corporações cristãs, de sua vinculação direta com as instituições políticas, mas também econômicas. Não apenas como Weber percebeu, distinguindo afinidade eletiva e negativa, deve-se perceber as grandes instituições religiosas cristãs: protestantes, pentecostais e católicas. Todas as três estão ligadas com as faces tributaristas, quando cobram dízimo. Vale a pena lembrar que a noção de dízimo, aquele de 10% de sua renda, exigido a partir dos textos do Antigo Testamento, tem a mesma raiz do verbo em hebraico equivalente ao em português “dizimar”.
Existe um “messianismo brasileiro”, e como ele influencia nossa cultura e tradição política, do sebastianismo português, passando pelo messianismo popular de Canudos, até Bolsonaro?
A história do “messianismo brasileiro” no meio popular, trata-se do reconhecimento político da ideia cristã da chamada “salvação”. Para isso, vale lembrar da revolta popular de Canudos, liderado pelo beato Antônio Conselheiro, como sendo uma figura política contra latifundiários, lutando por uma “proto-reforma agrária” no Brasil. E isso é algo absolutamente importante, pulsante, para os novos movimentos rurais brasileiros, que surgem a partir da década de 1980. Também vale a pena lembrar do caso das revoltas messiânicas do Contestado, enquanto uma série de revoltas nas regiões de São Paulo e de Santa Catarina, lideradas por outras figuras messiânicas. Ambos os movimentos influenciaram as revoltas rurais no Brasil, como por exemplo, o próprio MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra), e, depois, as Ligas Camponesas. Há, portanto, um imaginário religioso envolvido juntos às Ligas, o que vale a pena lembrar, assim, é do Francisco Juliano, de tradição batista/presbiteriana.
Então, esse detalhe do messianismo faz parte da linguagem religiosa que está entre as pessoas, nas ruas brasileiras, no cotidiano brasileiro. Ora, se vamos às comunidades, logo se perceber que a população já discute intuitivamente a religião. Quando as pessoas falam de Deus, para conduzir os diálogos – “Deus está com nós”, “Vai com Deus!”, “Deus está conosco” –, isto significa dizer que, para além do trato cordial, também se tem um projeto comum, de todos terem esperança no melhor pelo próximo. Assim, falar de Deus no cotidiano popular, indica que há elementos esperançosos na direção da construção da comunidade.
Esses são termos comuns de uma teologia popular, cotidiana, brasileira. Neste sentido, a teologia é uma forma utópica de comunicação no meio popular. Você fala de Deus para se poder fazer intermediação entre as pessoas, entre você e a pessoa que está ao seu lado. É uma forma educada de tratar os outros, mas também é um modo de trazer um projeto de traço comum. Evocar a deus no cotidiano destaca-se certa esperança no melhor para o próximo. Então, é impossível de se desvencilhar da linguagem religiosa das comunidades brasileiras. Pois ela faz parte do projeto utópico de futuro da realidade tão sufocada pelo capitalismo e pelo autoritarismo brasileiro. Os setores críticos ou as esquerdas brasileiras não se atentam a esse dado...
O maior detalhe dessa teologia do cotidiano popular, é que os intelectuais bolsonaristas descobriram a força dessa linguagem no cotidiano brasileiro. Eles se utilizam dessa linguagem esperançosa, popular e comunitária, para colorir os discursos de Bolsonaro. Além disto, trata-se de uma forma distinta do discurso político, usando os textos bíblicos e as passagens bíblicos tão caras ao público cristão, como “Conheceis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32), e os textos de Provérbios e de Eclesiastes. Bolsonaro e seus intelectuais teológicos construíram “exegeses públicas” no meio da campanha política, para se dizer “homem de Deus”, uma persona santificada, de evangélico ou católico.
Assim, se no cotidiano das pessoas se fala muito de deus, o bolsonarismo descobriu isso, e de uma maneira nova, fez uma pragmática de comunicação, e de sensibilização popular. Ele faz isso de forma eficiente, pois estamos há quase 2 anos de pandemia, e ele segue no poder ainda, mesmo matando, até agora, mais de meio milhão de pessoas. É uma coisa que temos de considerar e colocar na ponta do lápis, fazer essa conta. Ele faz isso bem, pois não pode ser desprezado o fato de que o Governo se sustenta sobre a sua áurea religiosa. O messianismo de Bolsonaro foi fortemente reforçado quando no episódio da facada, que lhe atingiu, durante campanha na região de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Não se pode desprezar que se construiu uma narrativa pelos principais pastores apoiadores de Bolsonaro, quanto à essa teologia popular.
Em verdade, as elites teológicas de Jair Messias Bolsonaro se utilizam dessa forma de comunicação, de exegese, dessa teologia messiânica, para ativar a sua comunicação política. Com isto, ele se comunica mais afetivamente com as pessoas, com o público cristão. E isso é um mérito dos intelectuais teológicos que cuidam da imagem de Bolsonaro. Eles descobriram uma nova forma de fazer política, que não havia sido feita nos governos anteriores do PT, nem na Ditadura Civil-Militar de 1964, nem na varguista. Diferentemente do que certos setores intelectuais e da esquerda brasileira o bolsonarismo não pode ser desprezado, pois, sobretudo, segue na reprodução social e já se encaminha para as disputas eleitorais em 2022.
Haverá apoio ao Bolsonaro pelos evangélicos nas eleições de 2022?
Já estamos nos desenhos políticos das campanhas eleitorais de 2022. Já existe caminhadas, passeatas, motociatas, com Bolsonaro. Ele mesmo foi neste ano duas, ou três vezes à Assembleia de Deus, na semana passada. Foi buscar o diálogo com a cúpula da Igreja Universal do Reino de Deus, pois no começo deste ano tiveram algumas tensões diplomáticas da IURD em Angola. Buscou retomar as conexões Edir Macedo, construindo a proposta de levar Marcelo Crivella como Embaixador na África do Sul. Semanalmente, os intelectuais de Bolsonaro alimentam suas redes sociais com mensagens religiosas que sensibilizam o público. Nas suas carreatas municipais, Bolsonaro se encontra com religiosos de cada região, além de promoter aumentar o auxílio emergencial ou o Bolsa Família para 300 reais. Assim, começa a se desenhar o início de uma campanha política que irá findar em 2022. E Lula, após importante discurso que fez – que sugou as pessoas –, também começou a sua caminhada pró-religiosa. Já há confirmação de que Lula começou a se encontrar com setores evangélicos de esquerda. Mas não só isto. Os representantes de Lula já começaram a dialogar com suas antigas alianças com a Igreja Universal e com outras igrejas. Também, vem reafirmando que o auxílio emergencial deve ser de 600 reais.
Mas gostaria de chamar a atenção para a imagem de Ciro Gomes com uma Bíblia na mão. Ele também tem uma rede de evangélicos juntos a ele, na sua pré-candidatura. E, parece que Ciro vai começar a conectar sua assinatura política com essa conexão, no desenho direto dos cristianismos atravessando a política. Assim, pode-se dizer que as igrejas, os grupos religiosos, os evangélicos, no caso, vêm se atravessando de forma muito diferente em relação à política. E, cada vez mais, trazendo novos sintomas religiosos para arena politica brasileira.
Sabendo que houve enfraquecimento da teologia da libertação em detrimento da prosperidade, há saída de “esquerda” tanto na teologia política, quanto na influência da religião na política brasileira?
Sobre a Teologia da Libertação, lembro dá importante tese do Os demônios descem do norte (1987) [de Délcio Monteiro de Lima]. E ela vem cada vez mais sendo afirmada, dizendo que a Teologia da Prosperidade foi importada, trazida para o Brasil, a partir da década de 1970, por influência direta das grandes instituições filantrópicas norte-americanas e da CIA. Eles enviaram missionários para cá, com o objetivo de circular o Brasil e começar a desenvolver a Teologia da Prosperidade. A intensão disso era poder barrar essa coisa da utilização religiosa pela política das esquerdas. Então, neste caso, a partir do trabalho de Délcio Lima, o que se tem noção é de que existiu enfraquecimento das esquerdas brasileiras, quer dizer, da Teologia da Libertação, por conta de como foram capturadas as classes populares nas periferias brasileiras, junto às grandes tradições da Teologia da Prosperidade, as quais estão surgindo no Brasil. Então, há mesmo uma conexão direta.
Desde a presença de igrejas pentecostais, conhecidamente chamadas de neopentecostais, até a influência de youtubers cristãos conservadores (Yago Martins, Gustavo Küstner, Olavo de Carvalho, etc.), parece haver uma hegemonia da direita nos debates político-teológicos nas redes. Então, considerando isso, há espaço para discussões teológicas e religiosas de esquerda, "progressistas", que possam lidar desde temas muito sensíveis, como aborto, casamento homoafetivo, casamento dos sacerdotes católicos, até desigualdade social, pobreza, miséria, e busca de justiça social?
Então, o que mais aparece é a extrema articulação do pessoal da direita até porque eles tem mais possibilidades e acesso. Mas não posso dizer apenas isso. Pois, existem trabalhos de grupos críticos, como, por exemplo, do Henrique Viera, que é absolutamente importante, feito junto ao Mídia Ninja, e que hoje está em outras caminhadas... Se pego o trabalho do Ronilso Pacheco, quem escreve semanalmente o site do Uol, enquanto articulador da Teologia negra, no Brasil, enquanto sendo um setor de esquerda, crítico na Teologia brasileira... Também lembro da Magali Cunha, quem escreve para a Carta Capital, ela faz um trabalho interessante sobre mídias e o cristianismo. É claro, que o pessoal da direita aparece mais também pessoal dos setores heterodoxos, de oposição também vem se notabilizando nos últimos anos. Então, vou usar um termo do Michel Löwy, meu professor, para dizer que essa oposição ajuda na construção de uma nova teia da “guerra dos deuses”, de lutas sociais intensas a partir do sintoma da religião.
Ambos os grupos têm seus “intelectuais”, então, a questão que fica, lendo a teoria gramsciana, é quem lidera/financia esses intelectuais? Nas esquerdas isso é muito difuso. Agora, quem lidera os “intelectuais orgânicos” religiosos bolsonaristas (Malafaia, Macedo, Valandro Junior, Paulo Ricardo)? Essa resposta não é tão simples, mas, são as grandes agências evangelísticas americanas do Sul (e seus grandes empresários), que desde 2010 voltaram-se os olhos (novamente) sobre a América do Sul. Eles fazem política direta a partir da linguagem religiosa, promovendo novas doses do imperialismo americano a partir da linguagem da fé. Nada mais inteligente e lucrativo que isso, pois não se precisa invadir geografias e nem tão pouco admitir oficialmente o feito. As grandes agências religiosas são hoje o fino do imperialismo americano pelo mundo, e por isso, receberam verbas diretas do tesouro no governo Trump, e seguem com muita força pois o trumpismo é muito forte, mesmo perdendo as últimas eleições.