09 Julho 2021
À pergunta sobre a identidade de Deus a resposta é a de Jesus à Samaritana: Deus não deve ser buscado neste monte ou naquele outro, mas em Espírito e verdade.
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 08-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Graças ao “dossiê sobre o pós-teísmo”, editado por Enrico Peyretti, que publicamos aqui [em italiano], estamos trazendo à tona aqui um tema que até agora passou em silêncio, que há muito tempo está perturbando grupos cristãos até mesmo mais próximos de nós.
Trata-se da questão que faz de Deus uma noção do passado, não mais utilizável hoje: “Oltre Dio” [Além de Deus] é o último documento em que essa posição se expressa, é o terceiro livro de uma série publicada com declarada neutralidade pela editora Gabrielli, dedicada justamente ao tempo que vivemos como posterior à religião e, portanto, chamado de “pós-religional” [post-religionale], onde, porém, é a própria neutralidade que é um problema: de fato, está em jogo não só a identidade, mas também o próprio fundamento do ser, não de Deus, mas da nossa relação com ele.
O próprio objeto do debate é difícil de ser definido, não há um limite, um limiar no qual seja possível finalmente se estabelecer. No livro de Raniero La Valle “No, non è la fine” [Não, não é o fim] (Edizioni Dehoniane), em que o tema já foi abordado, a questão foi posta da seguinte forma: “Certamente, Deus é demitido e acompanhado até a porta da cidade com todas as honras (...) Mas o fato é que, colocando Deus entre as velhas ferramentas a serem guardadas, abriu-se o caminho para prosseguir com o descarte dos ‘mitos’, que são a criação, o pecado, o messias, a redenção: uma obstinação a partir da qual vem à tona uma mensagem globalmente antibíblica. E, embora tenha havido alguns teólogos dispostos que, na busca de novos modelos cristãos, ainda tentaram inserir essa reviravolta nos parâmetros do Concílio Vaticano II e na nova perspectiva aberta pela pregação do Papa Francisco (Victor Codina, “Cristiani in Europa”, em Adista Documenti, 11 de julho de 2020), outros reivindicaram a radicalidade da necessária superação: o Concílio e o Papa Francisco ainda seriam, na opinião deles, mudanças internas ao antigo computador; mas, em vez disso, é preciso mudar o próprio computador, o seu disco rígido “que gira no vácuo, está cheio de vírus e não permite novos aplicativos” (Santiago Villamajor, “Riscattare il cristianesimo”, in Adista Documenti, 11 de julho de 2020). Só que o disco rígido a ser jogado fora é o próprio Evangelho, no seu conteúdo inédito; a peça a ser removida é o próprio mistério pascal; e, portanto, caem a cruz e a ressurreição, o intercâmbio trinitário, o dom do Espírito, o discípulo que permanece e o ano litúrgico que tudo isso revive e repropõe no tempo. Ou seja, é o cristianismo, por mais que seja chamado de reformado. Pois bem, o preço é alto demais...”
A questão está aberta. Talvez pudéssemos dizer aqui que, na base, há um equívoco de fundo sobre o próprio conteúdo da disputa: para os neo-não-crentes, colocar no passado a questão de Deus significa rejeitar a sua objetivação que a tornou tributária do mito, da fantasia, da invenção antropomórfica, o “Objeto Imenso” tornado presa da razão; e eles têm os motivos para isso.
Mas as contas com um Deus pensado assim já foram acertadas há muito tempo. À pergunta sobre a identidade de Deus a resposta é a de Jesus à Samaritana: Deus não deve ser buscado neste monte ou naquele outro, mas em Espírito e verdade. Em vez disso, a questão é a da relação humana com ele, é a fé que o envolve na história; é a partir da fé que se pode identificar um “antes” e um “depois” (“quando o Filho do homem vier, encontrará fé aqui na terra?”); a questão é sobre o sentido e as implicações da fé de quem nele crê, é isso que acende o fogo na história.
E aqui, sobre essa relação vital com um “Tu” que nos ama, vale a anotação com que Enrico Peyretti acompanhou o seu dossiê para reivindicar a relação com Deus como “pessoa”: “Se aquilo que chamamos de Deus não fosse comunicante, apelativo, inspirador, de alguma forma falante, transmissor de uma comunicação significativa para o espírito humano (isto é, se não fosse uma pessoa), teríamos ‘deus sive natura’ (de fato, é uma hipótese): a beleza, a harmonia, a sensatez e também a cegueira e a violência da natureza. De fato, existem religiões da natureza (...) Se não fosse uma pessoa, não teria nenhum sentido a atitude humana de fé, confiança interior e resistente aos golpes do acaso e da maldade humana. Uma fé que gera esperança, para além de todas as vicissitudes históricas e biográficas... Se não fosse uma pessoa, não haveria a oração humana, que é também o simples suspiro, maior do que todas as palavras, diante do amanhecer, do pôr-do-sol, do morrer, do nascer, do encontrar outros semelhantes a nós e nos acompanhar no empreendimento da vida”.
Se perdêssemos esse Deus, podemos acrescentar, perderíamos também o Deus não violento que é o grande dom feito à humanidade pela Igreja do Concílio, de João XXIII ao Papa Francisco a Abu Dhabi à oração na planície de Nínive, e a violência, começando pela religiosa, ficaria marginalizada.
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.
Na próxima segunda-feira, 12/07/2021, às 14h, o Prof. Dr. Francesco Cosentino, da Pontifícia Universidade Gregoriana, ministrará a conferência intitulada "O declínio do cristianismo: possibilidade de um novo começo para a fé cristã?", que será transmitida na página do IHU, no canal do IHU no YouTube e também nas redes sociais
XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição
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O Deus que perdemos. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU