19 Abril 2021
"Tanto a fome, quanto a pandemia foram potencializadas exponencialmente pela má condução de políticas econômicas e sanitárias. Sob a alegação de ter de salvar a economia para salvar as pessoas, não se salvou nem as pessoas e nem a economia voltada para salvar as pessoas", escreve Dirceu Benincá, teólogo e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB.
A fome não é uma ideia, nem uma falsa notícia. É uma triste realidade. Não é uma situação momentânea como a vontade de comer, que desaparece depois de ingerir algum alimento. Também não é mera ideologia, embora tenha tudo a ver com ela. Nesse caso, com a ideologia da concentração dos bens e das riquezas, à custa da exclusão de muitos das mínimas condições para uma vida digna. A fome é um atentado à dignidade humana, um escândalo ético. No Brasil, é um problema histórico e estrutural que se acentua e se atenua de acordo com diversas variáveis, entre elas, com o maior ou menor investimento em políticas públicas.
Para o geógrafo, cientista e ativista social Josué de Castro (1908 – 1973), a fome tem causas e efeitos muito definidos. Em sua obra clássica “Geografia da Fome”, publicada em 1946, no contexto da Segunda Guerra Mundial, o autor faz um mapeamento das carências alimentares e nutricionais no Brasil. Castro defendia a adoção de um modelo de desenvolvimento econômico capaz de solucionar o dilema da fome e da miséria. Como médico, sabia muito bem que da fome decorre uma série de doenças. E pôs toda a sua ciência e vontade na luta pelo combate a esses problemas de ordem econômica, social e sanitária.
Nos anos 1990, quando o espectro da fome se mostrou mais uma vez muito acentuado no Brasil, surgiram outras abordagens práticas para enfrentar o problema. Entre elas, destacou-se a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, criada em 1993 sob a coordenação do sociólogo e ativista dos direitos humanos Herbert de Souza, o Betinho (1935 – 1997). Acontece que cerca de 32 milhões de brasileiros, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), estavam abaixo da linha da pobreza. O tema impunha e sempre impõe urgência, pois, como dizia Betinho, “quem tem fome, tem pressa”!
Os primeiros anos do novo milênio foram marcados por políticas de significativo impacto no enfrentamento à fome. Conforme o relatório global da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Brasil reduziu em 82% a população em situação de subalimentação entre os anos 2002 e 2013. Em 2014, o país diminuiu para menos de 5% da população nesta condição. Foi quando conseguiu sair do chamado mapa mundial da fome. De acordo com o Centre for Economics and Business Research (CEBR), em 2011 o Brasil chegou a ser a 6ª economia mundial. Em dezembro de 2012, segundo o IBGE, o desemprego brasileiro caiu para 4,6%, o menor nível histórico.
Agora as coisas estão mudadas. Os índices nefastos subiram brutalmente. De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2020 o Brasil caiu três posições no ranking das maiores economias do mundo e em 2021 deverá cair mais uma posição, quando, então, passaremos a ser a 13ª economia mundial. Segundo o IBGE, no trimestre encerrado em janeiro de 2021, a taxa de desocupação chegou a 14,2%, atingindo um recorde de 14,3 milhões de pessoas desempregadas. Ainda em 2018, conforme o IBGE, retornamos ao mapa da fome. E ela vem tomando proporções cada vez mais dramáticas nos tempos atuais. Conforme a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, nos últimos meses de 2020, cerca de 19 milhões de brasileiros passavam fome.
Soma-se a isso, os mais de 370 mil mortos pelo coronavírus, sem contar os que são vitimados por doenças ocasionadas pela carência alimentar num país que tem supersafras de grãos. A fome, a carência e a insegurança alimentar são resultados diretos da desigualdade e da inequidade socioeconômica. Tanto a fome, quanto a pandemia foram potencializadas exponencialmente pela má condução de políticas econômicas e sanitárias. Sob a alegação de ter de salvar a economia para salvar as pessoas, não se salvou nem as pessoas e nem a economia voltada para salvar as pessoas. E, muitas vezes, ainda utilizando o nome de Deus para tentar justificar essa ideologia.
A fome é também um assunto de fé. Padre Valter Girelli, reitor do Seminário de Fátima de Erechim/RS, no último dia 16 de março, refletindo sobre a passagem bíblica da partilha dos pães e dos peixes (Jo 6, 1-15), afirmou que Jesus sempre se preocupou muito com a fome do povo. Diante dela não deu espetáculo da multiplicação mágica da comida, mas realizou o grande ensinamento da distribuição dos alimentos disponíveis. Aquilo foi considerado um milagre (miraculum = gesto maravilhoso) que requer de quem se pretende humano e cristão a incansável prática deste ensinamento. Ao defender a necessidade de taxar as grandes fortunas, Girelli disse que “enquanto não for resolvido o problema da distribuição da renda no mundo não vamos superar o problema da fome”.
O aumento da fome em qualquer sociedade é também a medida do aumento da pobreza e da miséria. A propósito, a teologia cristã ensina que o fundamento ético da conduta humana e social está na relação com os famintos e marginalizados em geral. Em Mt 25, 35 lemos acerca do juízo final, ocasião em que o Filho do Homem dirá: “... eu estava com fome e me destes de comer”. Entretanto, na sociedade capitalista, a defesa dos pobres não é matéria pacífica. Por esta razão, dom Hélder Câmara (1990 – 1999) expressou em certa ocasião: “Quando dou comida aos pobres, me chama de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista”. Por sua vez, o profético bispo dom Pedro Casaldáliga (1928 – 2020), defensor incondicional da vida e do direito dos pobres e marginalizados afirmou: “Na dúvida, fique ao lado dos pobres”.
A fome é um fator que atenta à integridade humana. Ela desfigura e desumaniza os que a sofrem e também torna desumano quem a produz. Impor a fome a alguém ou a muitos é a completa desumanização! Ocorre que “quem inventou a fome são os que comem”, afirmou acertadamente a escritora e poetisa brasileira Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977). E quem a padece, raramente o faz por vontade própria, ou seja, duramente a experimenta por imposição alheia.
Ao par da fome, há o grave problema da insegurança alimentar decorrente, em grande medida, do elevado uso de agrotóxicos – somos campeões mundiais também nesse quesito. Portanto, nossos desafios são gigantescos e de diversas ordens. Enfrentá-los de forma unificada e efetiva é urgentíssimo, sob pena de seguirmos produzindo o genocídio, o homicídio coletivo, a indiferença e a insensibilidade, demonstrações mais cabais de uma sociedade doente em avançado processo de desumanização. A vida e a dignidade em todos os tempos, lugares e circunstâncias precisam estar em primeiro lugar!
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Fome: caminho de desumanização! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU