10 Março 2021
Robert Macfarlane, autor do livro Bajotierra, que esteve na última edição de “Hay Festival”, como convidado do British Council, compartilhou suas reflexões sobre a relação do ser humano com a natureza, abordando a ciência, a literatura e todos os tipos de ramos do conhecimento e a cultura.
A entrevista é de Andrés Osorio Guillott, publicada por El Espectador, 02-03-2021. A tradução é do Cepat.
Começo com um tema que é recorrente em sua obra e em suas entrevistas: ser um bom ancestral. Esta é uma forma de chamar à reflexão sobre o alcance de nossos atos? É uma maneira de entender a importância da transcendência?
Somos uma espécie que deixa um legado. Nosso poder para dar forma à substância e os sistemas da Terra, ampliado pela tecnologia e a população, tem agora um alcance tão grande que deixaremos um registro na história da Terra que perdurará por milhões de anos. Este é o “impacto do Antropoceno”. As ações que tomarmos agora terão consequências não só para nossos filhos e netos, mas também para inumeráveis milhares de milhões de seres humanos nascidos depois deles.
Bajotierra defende um “pensamento profundo”, tanto nas organizações políticas como nos indivíduos. As culturas indígenas muitas vezes trabalharam em escalas de tempo tão ancestrais que podemos ver a responsabilidade que existe há 10.000 anos dos povos do que agora se chama Alasca, ou o início da Sétima Geração dos Haudenosaunee/Iroquois, por exemplo.
Dos subsolos a ser bons ancestrais. Indubitavelmente, aí está implícito o conceito de tempo. De que maneira essa visita e esse conhecimento aos subsolos ajuda a compreender melhor o presente e a repensar o futuro, a partir deste momento em que vivemos?
A terra firme é um reino de visões e horrores, maravilhas e terrores. É onde estivemos durante milhares de anos para descobrir o passado, mas também para prever o futuro. No mito grego, em uma viagem ao submundo se enfrenta os mortos, com suas perguntas inquisitivas, mas também se obtém profecias do que está por vir. Hoje em dia, os cientistas do clima se tornaram o Orfeu de nossa época, perfurando o gelo antártico de 40.000 anos de antiguidade para prever o futuro climático que estamos construindo para nós mesmos.
A ciência faz um chamado ao cuidado do meio ambiente. Muitas cosmogonias indígenas nos levam a compreender, a partir de múltiplas perspectivas, a relação do ser humano com a natureza. O que você pensa desse choque? Considera que uma conexão com o mundo indígena poderia ser uma via para mudar nossa relação com a natureza?
Tenho um profundo interesse e respeito ao conhecimento e a resiliência dos povos indígenas, ou ao que, às vezes, se denomina “conhecimento ecológico tradicional”. Muitas comunidades indígenas já viveram o fim do mundo, em numerosas ocasiões (primeiro quando foram colonizadas, por exemplo), razão pela qual possuem experiência sobre as crises que agora açoitam o planeta. Deveríamos escutar isso, em vez de afirmar (como o pensamento euroamericano costuma fazer) que a mudança climática é “a primeira grande ameaça existencial”. Este é o excepcionalismo clássico em ação.
Um dos melhores livros que li, nos últimos cinco anos, é “Braiding Sweetgrass: Indigenous Wisdom, Scientific Knowledge and the Teachings of Plants”, do cientista de plantas e membro da Citizen Potawatomi Nation, Robin Wall Kimmerer. Nele, com sua ênfase nas economias da dádiva, mutualismo, cuidado e reciprocidade, há muito do que poderíamos aprender, se pudéssemos.
Das montanhas ao subsolo. De alguma forma, são dois extremos dentro do lugar que habitamos. Que visão da vida cada um deles lhe trouxe? O que há de oculto nestes espaços que podem nos ajudar a compreender a condição humana e o tempo?
Meu coração é formado por montanhas e sempre será. Foram o meu primeiro amor e será o último, em relação à paisagem. Quando eu era um jovem alpinista, estava disposto a morrer por amor a elas, e esse mistério (por que arriscar a vida pelo que não voltará a amar [?]) se tornou o motor de meu primeiro livro, “Mountains of the Mind”, que foi filmado como Montanha, em 2017, para a Netflix.
O subsolo é um reino ainda mais misterioso que o mundo superior, e nos faz perguntas ainda mais difíceis: por que como espécie, enterramos nossos mortos na escuridão, confiando na terra para manter salvo o que é mais precioso para nós? Por que desde antes de sermos humanos anatomicamente modernos, entramos em cavernas e refúgios rochosos para fazer arte e buscar visões? Levei quase oito anos para explorar o subsolo e me aproximar inclusive da ‘matéria escura’ que se encontra no coração de nossa relação com o que está debaixo de nós.
É uma pergunta que lhe fazem frequentemente, mas para contextualizar os leitores, o que o levou a se conectar com a natureza? Que momentos alegres e trágicos viveu? Pode recordar alguns?
Cresci escalando montanhas, foi o que fizemos, quase irrefletidamente. É estranho que eu tenha passado a viver em uma das partes mais planas do mundo: Cambridge, na Inglaterra! Mas a Universidade, onde ensino, me mantém aqui. Sempre digo que sou professor, antes que escritor. E cresci lendo literatura sobre a natureza, guias de história natural, também poetas que escreveram sobre a natureza e histórias de exploração de montanhas e regiões polares. Estes dois enfoques do mundo natural, especialmente a natureza selvagem, mediante a linguagem e os livros, foram o núcleo de minha vida e de minha escrita desde então.
Perdi amigos nas montanhas, e também me deparei com situações de risco e, às vezes, fiquei assustado. Mais recentemente, durante os três dias no escuro labirinto das catacumbas em Paris, sobre os quais escrevo no capítulo “Cidade Invisível” de Bajotierra, e quando fiz uma travessia de inverno, sozinho, sem planejar, na Cordilheira de Lofoten, no Ártico da Noruega, para ir até a Caverna dos Dançarinos Vermelhos, onde foi praticada a arte rupestre periártica, há uns 2000 anos, perto do Maelstrom, redemoinho que gira e se desfaz na parte superior do arquipélago de Lofoten. Estas são coisas que nunca esquecerei, gravadas em minha memória pelo medo e o assombro.
Ao longo do livro, você fala de mitologia, geologia, filosofia e literatura. Além do fato de que tudo está conectado, como pensou na escrita do livro para poder unir estes campos do conhecimento?
A primeira lei da ecologia é que tudo está conectado a tudo, e talvez a primeira lição do Antropoceno seja a que Merlin Sheldrake chama de “vida enredada”, que estamos inextrincavelmente enredados com os sistemas terrestres e a vasta comunidade de vida e matéria humana e mais que humana.
A exploração do submundo, do interior da terra, revela muitas destas redes, incluindo, sim, o milagre da Wood Wide Web: o mutualismo de plantas e fungos que funciona há 400 milhões de anos e que permite que as árvores individuais se comuniquem: florestas, compartilhando recursos e informação.
Há várias contraposições interessantes. Ascensão e descida, luz e escuridão. O que se aprende destas dualidades? E além da descida e a escuridão, que costumam estar associadas ao mal, que outras noções ou ideias mudam seu significado ao habitar nos subsolos?
A ascensão, em minha experiência, é expansiva, maravilhosa. Se é aniquilado no cume de uma montanha, mas pela alegria e a distância. Os que viajam nos cumes das montanhas estão meio apaixonados a si mesmos e meio apaixonados pelo esquecimento. A descida, ao contrário, é um enterro, uma entrada em ordens de tempo e espaço diferentes e profundamente perturbadores: a lentidão da pedra de calcário de um milhão de anos. E, no entanto, na escuridão, às vezes, vemos com maior clareza.
A rede social dos fungos e as árvores lança reflexões interessantes sobre a sabedoria da natureza e o modo como outros seres vivos convivem. Que outros sistemas de cooperação e vida chamam a sua atenção e que poderiam ser úteis e aplicáveis para a nossa condição humana?
Sim, a Wood Wide Web tem muito a nos ensinar, ao menos como metáfora (porque só o abordamos e caracterizamos com a linguagem humana!). A Covid-19, é claro, tirou o melhor e o pior da condição humana: egoísmo e concorrência extremos, mas também novos modos de colaboração e cooperação, em que os vizinhos estabeleceram novos sistemas imaginativos, resilientes e profundamente solidários.
Um deles surgiu em meu bairro, aqui no sul de Cambridge. Minha filha é voluntária no centro de alimentos, arrecadou fundos para o banco de alimentos e centenas de pessoas saudáveis fazem arrecadações para uma grande quantidade de pessoas idosas que vivem na região. Foi emocionante e inspirador ver isso, e espero que não esqueçamos estas formas de ser, se é que a Covid-19 definhará.
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“O subsolo é um reino ainda mais misterioso que o mundo superior”. Entrevista com Robert Macfarlane - Instituto Humanitas Unisinos - IHU