08 Março 2021
Qual o significado do encontro entre o Papa Francisco e o aiatolá al-Sistani? “Um evento fundamental na estratégia do Santo Padre de diálogo com o Islã e para um papel mais ativo da Igreja na cena internacional”, responde o cientista político francês Gilles Kepel, um dos maiores especialistas mundiais em Oriente Médio e cujo último livro, “Il Profeta e la Pandemia”, será publicado em breve na Itália.
A entrevista é de Lorenzo Cremonesi, publicada por Corriere della Sera, 07-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em que sentido?
Em novembro de 2019, o papa havia se encontrado com o grande imã sunita egípcio da Universidade de al-Azhar, Ahmad al-Tayyeb. Não por acaso, ele havia escolhido uma figura ligada à tradição mística do sufismo, com quem é fácil para um cristão encontrar pontos em comum. E agora ele faz o mesmo com os xiitas. Sistani sempre foi contra a instrumentalização política da religião, ele representa a alternativa ao khomeinismo. Ele atua como figura de fé, mais interessada na oração do que na vida pública. Além disso, a tradição xiita tem fortes raízes na cristã.
Pode explicar?
O Islã xiita das origens provavelmente foi fortemente condicionado pela tradição nestoriana das Igrejas orientais enraizadas naqueles territórios hoje incluídos entre o Iraque, o Kuwait, os Emirados e o Bahrein. Lá, os cristãos não resistiram ao Islã, mas tentaram se adaptar. Por exemplo, ao contrário da sunita, a estrutura hierárquica xiita mantém certas semelhanças com a cristã. Não existe a infalibilidade papal, mas continua havendo escalas de poder entre os clérigos, como nas antigas Igrejas autocéfalos. Além disso, algumas características de Hussein, filho de Ali, neto do Profeta, lembram as de Cristo. Ambos morreram como mártires, e, sobre o seu martírio, desenvolveram-se as duas fés. Portanto, com al-Tayyeb, eles uniram forças contra a Irmandade Muçulmana sunita. Com Sistani, por sua vez, foi exaltada a alternativa xiita à revolução iraniana de 1979.
Mas esta viagem do papa vem depois da terrível crise que devastou o cristianismo local desde a invasão estadunidense do Iraque em 2003.
Certamente, os cristãos sofreram massacres e perseguições aterrorizantes. E o papa insiste em reafirmar a presença das comunidades em um país que esteve na origem da evangelização. Por isso, ele quis visitar Mosul, a planície de Nínive e Erbil. Lá, ele viu personagens como o padre dominicano e arcebispo caldeu de Mosul, Najeeb Moussa Mokhael, que em 2014 se esforçou até o inimaginável para salvar os manuscritos antigos da fúria iconoclasta do ISIS. Mas Francisco também sabe que, para preservar a riqueza articulada da tradição religiosa local, continua sendo necessária a aliança com os xiitas, que são a maioria dos iraquianos. Os cristãos devem se tornar cidadãos sob todos os aspectos e poder defender os seus direitos.
As Igrejas saem tranquilizadas a partir disso?
Certamente. Embora a cidade mais importante do mundo para a comunidade iraquiana não esteja no Iraque, mas sim em Detroit, nos Estados Unidos, para onde eles emigraram em massa.
A as consequências políticas?
O papa foi corajoso. Ele foi ao Iraque apesar da pandemia e do perigo de atentados. A estatura internacional da Santa Sé sai fortalecida. Indiretamente, Mustafa al-Kadhimi, que desde 2003 é o primeiro premiê xiita capaz de mostrar um certo grau de independência de Teerã, também ganha. Certamente, ele não é uma marionete nas mãos dos aiatolás iranianos, como era o ex-primeiro-ministro Nuri Al-Maliki, que, com a sua política insensata de apoio às milícias extremistas xiitas, ajudou a fomentar o fundamentalismo sunita.
Mas quem arrisca mais, o papa ou Sistani?
Eu diria que nenhum dos dois. Ambos saem bem.
E o que acontece nas relações entre Sistani e o Irã?
Os líderes iranianos o temem e o respeitam. A sua autoridade é indiscutível. Agora, as correntes em Teerã que gostariam de agarrar a mão estendida pelo novo presidente estadunidense, Biden, para a retomada das negociações nucleares fazem referência a ele. É preciso lembrar que o recente “Pacto de Abraão” entre Emirados, Bahrein, Israel e Estados Unidos revoluciona o Oriente Médio. O Irã tem uma terrível necessidade de voltar ao jogo, e as correntes de pensamento ligadas a Sistani favorecem a abordagem moderada.
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“Papa Francisco e al-Sistani: um encontro-chave. É preciso uma aliança com os xiitas.” Entrevista com Gilles Kepel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU