24 Fevereiro 2021
Edith Bruck foi salva várias vezes. Quando saiu de Auschwitz, aos 13 anos, estava tão desnutrida que pesava apenas 25 quilos, uma pequena pilha de ossos, quase incapaz de imaginar novamente o fluxo da vida em um mundo que havia se pulverizado, sem mãe, pai e irmãos. "Pare de chorar: você quer ver sua mãe?" lhe perguntou no campo de concentração C, número 11, a kapo polonesa que controlava o galpão. "Você vê essa fumaça e sente o cheiro? É sua mãe quem está queimando”.
Sua pequena cidade na Hungria, Tiszabercel, havia sido praticamente aniquilada e uma peregrinação sem fim a esperava, primeiro para Israel e depois para a Itália, onde se casaria com Nelo Risi. Edith nunca teria imaginado que outra salvação viria da língua italiana, uma ferramenta com a qual teve oportunidade de contar e se distanciar emocionalmente do trauma que sofreu.
Escritora, poetisa, tradutora, Edith usou o italiano como escudo.
Em seu último livro, publicado pela Nave di Teseo, Il Pane Perduto, que lhe valeu a candidatura ao Prêmio Strega e ao Campiello, ela retoma sua densa narração, cada vez mais sutil e afiada, descendo aos abismos da alma.
A entrevista com Edith Bruck é de Franca Giansoldati, publicada por Il Messaggero, 23-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O quanto a escrita lhe serviu de ajuda?
Escrever é necessário para mim. Eu ainda faço isso manualmente. Eu escrevi todos os meus livros à mão. Achei mais difícil escrever o último por causa da maculopatia, mas acredito que também poderia escrever se fosse cega.
Por que você rejeitou sua língua nativa, o húngaro?
Em italiano sinto-me mais livre. De alguma forma eu me escondo. O fato é que minha língua evoca lembranças dolorosas em mim. Se escrevo a palavra pão em húngaro, por exemplo, automaticamente vejo a imagem da minha mãe na cozinha, perto do forno, com as pernas inchadas, o rosto vermelho e cansado. Vejo sua figura encostada no forno, e essa imagem é insuportável para mim. Se, por outro lado, escrevo pão em italiano, não me provoca emoções, apenas sinto sua fragrância e cheiro. O húngaro toca a profundidade das emoções. Ainda hoje tenho dificuldade para suportar o peso de algumas palavras em húngaro.
Por exemplo, certas ofensas que ouvia quando ia para a escola. Eu era uma criança judia e estava sendo insultada com apelidos que ainda me magoariam hoje. Os sons emitidos são como facas. Se escrevo um palavrão em italiano, não sinto sua profundidade. Não conseguiria nem o pronunciar em húngaro. A dor se reabre e jorra solta. Para mim, o italiano foi uma língua salvadora, por um lado permitiu-me sobreviver, por outro lado dar testemunho.
No sábado passado, após o pôr do sol, recebeu a visita do Papa Francisco em sua casa. É verdade que dedicou um poema a ele?
Na verdade, é a dedicatória do livro: "ao amado Papa Francisco, um presente do céu, um presente para o meu sábado, tão rico quanto era pobre quando criança e amargo como adulta. Mas hoje mais doce com uma memória mais viva, enquanto vívido de um ser grande, humilde, simples, inesquecível. Vou pedir a Adonai que lhe mantenha vivo por muito tempo, talvez por uma vez ele me escute'.
Muitos se perguntam onde Deus estava em Dachau ou Birkenau. Que ideia a senhora teve daquele silêncio?
Lidar com o aspecto religioso me causa embaraço. Acho que religião é algo muito íntimo. O que é religião para mim, explicarei imediatamente com dois exemplos muito pequenos, mas significativos. Tive uma sogra que colocava numa folha de papel açúcar para atrair as formigas que estavam na casa e depois as levava para o jardim. Meu marido, por sua vez, um dia encontrou um rato no banheiro e construiu uma espécie de escada para ele poder sair. Para mim isso é a religião. É o respeito por toda vida, por tudo o que existe na natureza e respira. Até mesmo salvar a vida de uma formiga. Para mim, religião não significa bater no peito, mas comportar-se da maneira mais justa e civilizada, respeitando o próximo, seja qual for a sua cor.
A senhora e o Papa falaram sobre Deus?
Ele veio me visitar porque sou judia, não importa se crente ou descrente. Sinto-me judia, como também dizia Primo Levi. Ficamos refletindo sobre o que está acontecendo.
Como sobrevivente, a senhora está preocupada com o enfraquecimento da memória coletiva na Europa?
Os jovens não têm culpa se não sabem o que aconteceu no coração da Europa. Pouco se ensina sobre a história recente nas escolas. O que eles podem saber se inserirem apenas 10 linhas sobre a Segunda Guerra Mundial? Com o passar do tempo, fica cada vez mais difícil acreditar, é uma monstruosidade inaceitável. E já podemos ver claramente a tendência de negar até o que foi feito pelos avós: há países que negam que foram aliados dos alemães.
O negacionismo galopante pode ser interrompido?
É um problema. O negacionismo levou ao suicídio Primo Levi. Lembro que ele ficou transtornado. Ele me ligou e disse: você percebe que eles estão negando o que aconteceu com a gente, ainda vivos? Como se nós, sobreviventes, saíssemos contando mentiras. Há alguns anos fui denunciada por um professor em Abruzzo. Ele era um negacionista e eu disse publicamente que aqueles que negam o Holocausto certamente não podem ensinar, então ele me denunciou. Veja a situação ....
A senhora tem medo de morrer?
A morte faz parte da vida. Não tenho medo, mas não gostaria de morrer. Mas é inevitável: quem nasce morre.
Por que depois da guerra a senhora reconheceu sua carcereira e não a denunciou?
Foi ela quem me mostrou a chaminé de onde saía a fumaça. Pensei muito nisso e cheguei à conclusão que não podia fazer isso, não tinha que ser eu a julgar. Eu poderia denunciar um SS que torturava com método e crueldade. Mas uma judia deportada não poderia ser julgada porque foi fraca e, para sobreviver, se faz qualquer coisa. Na minha opinião, essas pessoas não podem ser julgadas.
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Holocausto. “Com o passar do tempo, fica cada vez mais difícil acreditar, é uma monstruosidade inaceitável”. Entrevista com Edith Bruck - Instituto Humanitas Unisinos - IHU