26 Janeiro 2021
"Ora, é realmente surpreendente como Galli não se dá conta de que a realidade é, de maneira clamorosa e evidente, diferente do que ele afirma: ainda nos reportando aos dois exemplos que ele escolhe, como não ver que é precisamente com o pontificado de Francisco que a liberdade de expressão foi reconquistada na Igreja tanto nas transformações estruturais internas (e o papa fala do caminho sinodal e da pirâmide invertida) quanto no papel eclesial também ministerial das mulheres! Se, por um lado, talvez não conhecendo o ponto de vista teológico do papa, Galli não pode ver, em outros aspectos temo que ele não queira: simplesmente porque ele se opõe à perspectiva de Bergoglio e toma partido entre os opositores", escreve o historiador italiano Fulvio De Giorgi, professor de história da educação da Universidade de Modena e Reggio Emilia e coordenador do grupo de reflexão e proposta da associação italiana Viandanti, em artigo publicado por Nuovo Quotidiano di Puglia, 25-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A intervenção de Ernesto Galli della Loggia sobre "Os grandes temas que a Igreja pensou não ver" suscitou um vasto debate, que também já viu as reflexões, neste jornal, de Antonio Greco, Maurizio Portaluri e Vito Angiuli, reflexões de orientações distintas. No entanto, parece-me que, nesta discussão, às vezes se passe ao lado e se procure, falando sobre tantas coisas, desviar a atenção do cerne do problema. Galli della Loggia fez uma crítica geral ao pontificado de Bergoglio: esse é o centro da discussão. E as intervenções subsequentes se distinguem entre aqueles que explicitamente apreciam e apoiam o Papa Francisco e aqueles que falam de outro assunto, talvez para dissimular a sua desconfiança em relação ao Papa. Essa é a prova de fogo de todo o debate: para entender quem não apoia Francisco, basta verificar quem não o nomeia.
Então Galli, com considerações históricas que não compartilho (sobre a "Cristandade" e sobre o "Compromisso cristão-burguês"), mas que exigiriam um aprofundamento específico que não posso fazer agora, levanta duas questões importantes ao nível da Igreja-instituição: a democracia interna (mesmo que o exemplo dado não tenha nada a ver com isso e seja enganador) e o papel das mulheres. Duas questões reais: quem pode negá-lo?
Mas Galli diz depois que Francisco não aborda esses problemas e, portanto, não vê - ao contrário de seus predecessores, de Montini a Ratzinger - a gravíssima crise da Igreja e da própria fé cristã no mundo contemporâneo. Francisco, segundo Galli, está atento às questões sociais "externas", mas desatento aos aspectos pastorais e eclesiais "internos". Conclui, portanto, que o caminho de Francisco não leva a muito longe.
Ora, é realmente surpreendente como Galli não se dá conta de que a realidade é, de maneira clamorosa e evidente, diferente do que ele afirma: ainda nos reportando aos dois exemplos que ele escolhe, como não ver que é precisamente com o pontificado de Francisco que a liberdade de expressão foi reconquistada na Igreja tanto nas transformações estruturais internas (e o papa fala do caminho sinodal e da pirâmide invertida) quanto no papel eclesial também ministerial das mulheres! Se, por um lado, talvez não conhecendo o ponto de vista teológico do papa, Galli não pode ver, em outros aspectos temo que ele não queira: simplesmente porque ele se opõe à perspectiva de Bergoglio e toma partido entre os opositores (isto é, no campo das direitas vétero-liberais, trumpianas de diferente observância e variedade).
O erro de Galli é não entender que, na visão de Francisco, "externo" e "interno" se saldam. Ou seja, o problema não é: Cristo está desaparecendo do mundo contemporâneo, cada vez mais vazio Dele, devemos, portanto, trazê-lo de volta à sociedade. A questão é se, como católicos, acreditamos no Evangelho ou não. Se acreditarmos, vemos Jesus em todos os cantos do mundo contemporâneo: nos pobres, nos migrantes desesperados, nos famintos, nos oprimidos, nos últimos, homens e mulheres, idosos e crianças. "Quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes" (Mt 25,40). Então aqui está o caminho, que só é social porque é religioso, cristológico, evangélico. Tornar-se próximo: como o bom samaritano (referência essencial da última encíclica Fratelli tutti). Tocar a carne de Cristo.
Viver o Evangelho
Infelizmente, Galli é um exemplo culto de analfabetismo religioso. E Francisco afirmou: “O analfabetismo religioso de hoje deve ser enfrentado com as três linguagens, com as três línguas: a língua da mente, a língua do coração e a língua das mãos. Todas as três harmoniosamente”. Na língua da mente, Francisco segue o anti-niilismo já afirmado por Ratzinger, abrindo-o para um desenvolvimento plural (a imagem do poliedro); na língua das mãos, está próximo da teologia latino-americana do povo. Mas no centro está a língua misericordiosa do coração, que no final Paulo VI havia indicado, falando de Civilização do Amor, como a perspectiva pastoral dos tempos contemporâneos, não por acaso fortemente relançada por Francisco. D
isso resulta, porém, uma escolha de campo: a opção preferencial pelos pobres, que é a opção pastoral fundamental da Igreja desde o Concílio até hoje, ainda que nem sempre levada a cabo com clareza. Nessa linha, que poderíamos chamar de personalismo comunitário, evangelização e libertação humana, se encontram e se empatizam.
Obviamente, para ser coerente e autêntica no contexto histórico atual, essa perspectiva não pode deixar de se opor ao neoliberalismo (que exalta o indivíduo e nega a comunidade, a solidariedade social) e ao populismo soberanista (que exalta a comunidade nacional, mas nega a pessoa humana e a sua dignidade, por exemplo nos migrantes). É uma forte perspectiva social "externa", mas com um coração religioso "interno": porque o neoliberalismo e o populismo soberanista são as duas faces de um materialismo prático egoísta e de uma idolatria do dinheiro. E aqui, provavelmente, Galli não aceita Francisco e prefere aqueles que se opõem a ele em nome do mercado e dos "muros" para se defenderem dos pobres.
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Francisco: um baluarte contra “muros” e “mercados”. Artigo de Fulvio De Giorgi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU