03 Dezembro 2020
"Unimo-nos ao encantamento de sua arte e nas lágrimas de tantos do povo argentino que com Maradona ganhavam a força de superar dificuldades e manter a alegria de viver. Uniu em si o humano e o inhumano, como nos recorda Nietzsche, pois ambos pertencem ao humano: luminoso e obscuro, heroico mesmo vencido", escreve Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo e escritor brasileiro, e autor de A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana (Vozes, 2005).
Que é o ser humano? Por mais que todas as ciências tentem definir o ser humano, este continua sendo sempre uma questão aberta. Santo Agostinho (354-430) que durante a vida inteira se preocupava desesperadamente por encontrar uma resposta sobre que é o ser humano, termina dizendo apenas:”factus sum quaestio magna”: “tornei-me para mim mesmo uma grande questão”. E se cala.
Às vezes não são as ciências nem as religiões que nos fornecem a melhor imagem (ao invés de uma definição), mas os literatos. A melhor fórmula para mim encontrei-a em Antoine de Saint Exupéry, o autor do Pequeno Príncipe, em seu romance A Cidadela. Aí ele entende o ser humano como “um noeud de relations” “um nó de relações voltada em todas as direções”. Vai além da sexta tese de Marx sobre Feuerbach ao definir “essência humana é o conjunto de suas relações sociais”. Essa visão é redutivista. O ser humano é o conjunto de suas relações totais e em todas as direções e não só sociais. Faz sentido também ainda dizer que ele “é um projeto infinito sempre em busca de seu objeto adequado, nunca encontrável no mundo em que vive”, o que o leva a transcender este mundo.
À parte desta busca sem fim, cabe seguramente dizer que ele é um ser complexo e a conjunção de duas dimensões que sempre ocorrem conjuntamente: o positivo e o negativo, o luminoso e obscuro, o inteligente (sapiens) e o demente (demens), a pulsão de vida (eros) e a pulsão de morte (thánatos), o utópico e o histórico, a realização e a frustração, a derrota e a vitória, a gentileza e a boçalidade, a cordialidade a rudeza, o poético e o prosaico, o dia-bólico (que divide) e o sim-bólico (que une), o equilíbrio e o excesso, o caos e o cosmos. Esta dualidade não é um defeito de criação. É a condição humana real. Esta mesma estrutura se encontra no cosmos (ordem e desordem) e em cada ser vivo e inerte (autônomo e integrado). Temos a ver com uma constante universal.
Desafio para cada ser humano não é negar uma das partes, o que seria impossível e ela voltaria furiosa, mas como integrar esta dualidade, encontrar um justo equilíbrio dinâmico, sempre por fazer, de forma que possa construir sua identidade, seu projeto de vida e buscar a felicidade possível aos filhos e filhas de Adão e de Eva.
Ocorre, entretanto, que existe o trágico na vida humana, tão plasticamente representado pelos teatros gregos. O excesso, o demencial e o dia-bólico (o que cinde) pode tomar conta da pessoa, inundar sua consciência e fazê-la escrava da dimensão do obscuro.
O arquétipo do herói/heroína nos pode ajudar a entender esse drama. Não o herói/heroína convencional das sagas de guerra e das novelas. Mas no sentido da moderna psicanálise. Cada pessoa pode ser herói/heroína na forma como trabalha esta dualidade, consegue integrá-la e realizar seu processo de individuação. Há vários tipos de heróis/heroínas: o resistente, o peregrino, o lutador, o mártir e outros.
Escrevo tudo isso a propósito da figura do genial jogador argentino de futebol Diego Maradona. Vê-lo em campo era um espetáculo por si só. Driblava com uma inteligência sumamente criativa; um sentido único de oportunidade. Pequeno, 1,65 de altura, robusto e com uma velocidade inacreditável. Toda comparação é odiosa, pois cada um é um e irrepetível. Mas Maradona excede sobre qualquer jogador ainda em atividade. Será uma referência mundial imarcescível.
Mas eis que irrompeu a tragédia: foi tomado pela dependência química da qual nunca se libertou totalmente. Era tão humano que não escondia sua dependência. “Sabe que jogador eu teria sido se não tivesse usado drogas? se perguntava com humor. Tenho 53 anos, mas é como se tivesse 78. Minha vida não foi normal, digamos. 53 anos? Eu vivi 80." Morreu aos 60 anos. Ele foi um herói resistente (del aguante) tragado pelo lado do obscuro e do excesso.
Vale recordar: jogava com os pés agilíssimos e com a cabeça que marcava gols notáveis. Mas sua cabeça também pensava e definia em que lado se colocava no espectro social: do lado dos oprimidos, simbolizados por Fidel Castro e por Lula. E o anunciava publicamente.
O povo argentino, tão sofrido por problemas internos políticos, o elevou ao mais alto ponto da exaltação a ponto de penetrar no espaço do Numinoso e chamá-lo de “deus”. Faltavam-lhe palavras para admirar o seu “Pibe” “o divino infante”. Há que se entender corretamente tal exaltação que ocorre sempre quando o entusiasmo supera todos os limites e encontra nas palavras do Numinoso sua melhor expressão.
Unimo-nos ao encantamento de sua arte e nas lágrimas de tantos do povo argentino que com Maradona ganhavam a força de superar dificuldades e manter a alegria de viver. Uniu em si o humano e o inhumano, como nos recorda Nietzsche, pois ambos pertencem ao humano: luminoso e obscuro, heroico mesmo vencido.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Maradona, uma metáfora da condição humana. Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU