13 Novembro 2020
“Hoje, mais do que nunca, precisamos sair de uma roda que está desabando. Enfrentar com força e esperança o abismo social e o colapso ecológico em que nos encontramos requer ampliar o marco da agência política para além do emprego, da tributação e das políticas públicas, que sempre têm sua condição na sustentação da acumulação de capital”, escrevem Amaia Pérez Orozco, doutora em economia pela Universidade Complutense de Madrid, e Gonzalo Fernández Ortiz de Zárate, pesquisador do Observatório das Multinacionais na América Latina (OMAL), em artigo publicado por El Diario, 10-11-2020. A tradução é do Cepat.
Um desânimo profundo. Talvez seja isto o que a maior parte do mundo respira. Ao menos, os mundos que habitam as maiorias sociais, o povo, a classe trabalhadora, como queremos nos chamar. Um desânimo que nasce da consciência de estar vivendo um cercamento intenso das condições de vida. Um cercamento global, ecossistêmico.
“Sem casa, sem batente, sem pensão”. Assim irrompia Juventude sem futuro, em 2011. “Sem medo”, acrescentavam também, conjurando-se para que o desânimo não se tornasse medo. Que não tenhamos medo de um futuro diferente. Entender o que acontece conosco pode ser um antídoto contra essa sensação paralisante. E o que nos acontece, fundamentalmente, é o capitalismo, em seu entrelaçamento consubstancial com o colonialismo e o heteropatriarcado.
Não obstante, parece que temos uma incapacidade manifesta de nos pensar além de seus limites, de imaginar que “um fim do mundo diferente é possível”. A classe trabalhadora, como um hamster pedalando sem parar para manter a roda capitalista e daí obter sua exígua cota de bem-estar, é uma imagem que, avaliamos, expressa bem a nossa situação. Uma metáfora na qual subjaz a bem difundida narrativa de que só com a continuidade do crescimento econômico (leia-se: mercantil) e da acumulação de capital poderemos sustentar, ainda que precariamente, nossas vidas.
Basta analisar as diferentes propostas para enfrentar a atual deflagração pandêmica e a crise civilizatória na qual se insere (crise de acumulação de capital, ecológica, política, de reprodução social e de valores), tanto das direitas como de parte significativa das esquerdas, para confirmar que o marco do possível e a agência política se limitam a assumir tal mantra: o bem-estar popular é apenas uma decorrência da acumulação capitalista. É a velha, mas muito atual teoria econômica do gotejamento, segundo a qual o lucro empresarial se espalha em benefício social, graças ao emprego e as políticas públicas.
Mas o capitalismo, com suas narrativas, não é uma imposição divina, nem um destino histórico inevitável. É um projeto que, em seu avanço, nos impele a correr para manter o ritmo incessante de uma roda que, com mais ou menos emprego e políticas públicas, nos leva a uma ladeira de colapso ecológico, desigualdades crescentes, violência estrutural e controle social. E cuja teoria do gotejamento, que sempre foi uma falácia, mostra agora enormes buracos: não há crescimento sustentável, o emprego se precariza e diminui via digitalização e automação, e as políticas públicas são capturadas, em termos gerais, a favor do poder corporativo.
Precisamos sair desta armadilha da acumulação: a roda capitalista não propaga bem-estar, mas, ao contrário, ataca o vivo. O conflito capital-vida, neste sentido, explica melhor o capitalismo. Não obstante, tal armadilha existe: hoje em dia, estamos na roda. O poder corporativo controla os meios de reprodução da vida, e nossa própria concepção do bem-estar está profundamente mercantilizada. A hegemonia atual da narrativa e da agenda corporativa é tal que o colapso capitalista teria (está tendo) um impacto notável em termos de bem-estar das maiorias sociais. Não podemos negá-lo. Tampouco nos resignar, desanimar, temer.
O presente artigo se centra no chamado a transitar fora da roda capitalista. Em breve, será sucedido por um segundo texto apresentando uma série de eixos teórico-políticos para orientar estratégias de transição. Ambos buscam um diálogo horizontal, que construa inteligência coletiva, a única forma de enfrentar a complexidade do momento, mais ainda para oferecer respostas.
Queremos contribuir com esse diálogo a partir de nossa visão situada, localizada na Europa e com um certo viés econômico. É a partir daí que vemos nossas realidades. Fazemos isto sabendo que ninguém fala a partir da pureza, razão pela qual de um modo ou de outro iremos errar. Cabe buscar respostas suficientemente boas, nunca perfeitas.
Habitar o capitalismo não é estar aqui por acaso, como poderíamos estar em outro lugar. É estar permeadas por sua consigna civilizatória, segundo a qual o fluxo do capital e da renda se torna a premissa do bem-estar geral. A prioridade coletiva consiste, então, em favorecer a dinâmica de maximização dos lucros empresariais para, daí, difundir o bem-estar sobre o conjunto da sociedade a partir, fundamentalmente, de duas intermediações: o emprego e o estado.
O emprego é a principal junta que articula os dois polos: para mais lucro, supostamente mais investimento e, em consequência, mais emprego, do qual procede o consumo, logo, o bem-estar. Gera, assim, os ingressos suficientes para sustentar a vida, para o consumo em massa e para sustentar o fluxo da renda via demanda. Além disso, permite ter acesso a uma parte importante dos direitos sociais, estruturalmente vinculados ao trabalho no mercado (saúde, desemprego, aposentadoria, viuvez, etc.).
O estado, por sua parte, seria a segunda intermediação, por meio de uma via dupla: a primeira, o desenvolvimento de políticas públicas sociais através de certas dinâmicas redistributivas, permitindo mitigar as desigualdades e contribuir para a sustentabilidade e reprodução das vidas. A segunda, a promoção de normativas de regulamentação dos mercados e a contenção do poder corporativo, sob a premissa de que estes se sujeitem, de uma forma ou outra, ao interesse geral.
É nisso que se situa o marco capitalista do possível. O maior ou menor peso concedido a estas intermediações marca as diferenças políticas dentro desse possibilismo capitalista: como gerar caminhos estáveis de investimento, como criar mais e melhores empregos, que tributação e que políticas públicas podem ser implementadas... essa é a margem aceita.
Compartilha-se um esquema similar: é condição sine qua non que a roda da acumulação de capital continue girando. Para as direitas, condição (quase) suficiente. Para as esquerdas que assumem este marco, condição necessária, mas não suficiente, razão pela qual se aposta em fortalecer instituições públicas e condições trabalhistas.
O debate se enreda, deste modo, na sequência capital-emprego-estado-bem-estar, o que nos uniria em torno de objetivos compartilhados, garantindo um cenário de estabilidade e crescimento, sem grandes conflitos. Um horizonte... que afunda no desânimo?
Talvez, o desânimo seja consequência da promessa que não se cumpriu. Uma narrativa falaz que sempre ocultou uma realidade marcada pela insustentabilidade e por múltiplas desigualdades, em que o horizonte de bem-estar popular seria alcançado por meio de duas frágeis intermediações, sem alterar minimamente a lógica da acumulação de capital como premissa inquestionável.
Em relação ao emprego, está certo que o nosso bem-estar atual depende dele em grande medida. Sim, somos “escravas do salário”. Mas este nexo não é inalterável, nem a-histórico. Gera-se no marco de um processo de desapropriação dos meios de reprodução da vida coletiva, que passam a se tornar meios privatizados de produção (acumulação) de capital. Por sua vez, uma vez desapropriadas, nossos sentidos comuns e expectativas se mercantilizam e se dirigem para o emprego como única alternativa aparentemente viável.
Reconhecer esta escravidão nos permite identificar as maiorias sociais como classe trabalhadora. Pode nos ajudar a construir confrontação política não a partir do emprego, mas contra o emprego, enquanto trabalho alienado que não fazemos por seu sentido social, mas porque precisamos de dinheiro para dar conta de uma vida mercantilizada.
Por isso, o poder corporativo serve, às vezes, para despistar. Lança, assim, o que poderíamos chamar de dispositivos de diluição das classes, que nos impelem, como trabalhadores, a buscar viver de rendas e finanças e não do salário, como também a nos tornarmos nossos próprios chefes a partir da figura do empreendedorismo. Mas esta distração tem pouco vigor, já que, sim, dependemos do emprego. E ao invés de lutarmos a partir desta constatação, caímos no argumento-armadilha utilizado pelo poder corporativo para ameaçar com a perda de postos de trabalho, como desculpa para socializar seus riscos.
Além disso, este nexo entre emprego e bem-estar tem um avesso, um lado B que resolve (ou tenta resolver) tudo onde não chega o salário e todo o dano que os mercados causam à vida. São esses acúmulos de trabalhos invisibilizados, que em certas ocasiões chamamos de cuidados, que, em última instância, mal sustentam a vida. São a face oculta do trabalho assalariado, seu resíduo e sua base, trabalhos feminilizados, racializados e invisibilizados. São a base oculta do iceberg que lutou para vir à luz com a pandemia.
Deste modo, o capital e o trabalho se evidenciam como antagonistas, em nenhum caso como aliados, tanto no que se refere à desigual disputa entre classes pela mais-valia no âmbito mercantil, como em relação a esse lado B indispensável para a manutenção do fluxo de capital. Frente a uma narrativa que nos faz sentir que a vida e o trabalho dependem das empresas, podemos afirmar que são estas que dependem da reprodução da vida.
Este conflito entre o capital e o trabalho se vincula a outra série de conflitos estruturais. Um segundo, o conflito heteropatriarcal, que garante que essa precária sustentação da vida seja realizada a partir de trabalhos que não existem (os cuidados), em âmbitos que não são econômicos (os lares em rede) e por sujeitos que não são sujeitos políticos (as mulheres), sendo este o sentido profundo da divisão sexual do trabalho no capitalismo.
Terceiro, a desigualdade intrínseca ao sistema e aos processos globais de acumulação e pilhagem, legitimada sob uma narrativa e uma prática racista e colonialista que rejeita, coisifica e degrada vidas, saberes e poderes distantes dos centros e as elites.
E quarto, a dinâmica de crescimento incessante do capitalismo, que se sustenta sobre a farsa de uma base física e material infinita, assim como de um ecossistema perfeitamente aberto, dando lugar em sua evolução depredadora a um conflito entre capital e natureza, hoje levado ao paroxismo.
Esta intersecção de conflitos nos leva a priorizar a vigência de um grande conflito capital-vida frente à teoria do gotejamento como explicação do que hoje em dia ocorre. Trata-se de uma tensão estrutural e insolúvel sobre a qual se assenta o capitalismo e que nunca foi, nem pode ser, eliminada pela ação do emprego, nem das políticas públicas.
O estado de bem-estar legitima a si mesmo como o mecanismo para eliminar o conflito, para garantir condições de vida dignas no marco de uma economia de mercado capitalista. Desempenha uma dupla função de legitimidade, garantindo certos mínimos de bem-estar e de acumulação, assegurando que o circuito do capital funcione.
Podemos dizer que é, ao mesmo tempo, uma conquista momentânea (e parcial, porque os estados de bem-estar do norte global sempre se assentam sobre a divisão sexual e racializada do trabalho, pilhagem do sul global e espoliação ambiental) da classe trabalhadora e renúncia estrutural. Mas a tensão sempre acaba irrompendo e, quando irrompe, o estado sempre vira para o mesmo lado.
Ao longo de décadas, assistimos a uma ofensiva corporativa pela captura do público e o comum. Por um lado, as empresas transnacionais conseguiram elevar os principais âmbitos de decisão para escalas regionais e globais, distantes dos cidadãos e muito mais inclinadas à pressão corporativa. Tanto é que estão formando uma constituição corporativa global em consonância com a nova onda de tratados comerciais e investimentos de última geração.
Por outro, o rolo compressor neoliberal, desde os anos 1970, privatiza empresas públicas, desregulamenta direitos coletivos, corta políticas sociais onde foram vigentes, bem como iça novos imaginários como as alianças público-privadas, que na prática coloca as instituições a serviço do corporativo.
Sem esquecer que segue muito vigente a disputa pelo público a partir das novas perspectivas do comum, é evidente que não podemos confiar na figura do estado como intermediário do bem-estar em escala planetária dentro do capitalismo, especialmente em um contexto como o atual de crise profunda de acumulação. Deste modo, e no melhor dos casos, as políticas sociais e redistributivas tendem a mitigar, a conciliar o irreconciliável de uma extrema e crescente situação desigual de controle e propriedade dos meios de reprodução da vida, sem colocar minimamente em risco a máxima do ‘business as usual’.
Em definitiva, o sistema orquestrado ao redor do capitalismo, mais que difundir bem-estar com base em certas intermediações, mostra-se como um sistema múltiplo de dominação atravessado por diversos conflitos que confluem nesse meta-conflito capital-vida. Posicionar este conflito significa dizer que, neste sistema, as vidas têm valores radicalmente desiguais: as de valor máximo daqueles que detêm o poder corporativo, as de valor desigual e com margens para exercer certos privilégios, na medida em que servem a esse poder, as que só valem mortas ou são simplesmente restos.
Para poder traçar o caráter biocida do capitalismo como um problema comum, devemos abordar as profundas desigualdades que permeiam a vida coletiva. Posicionar este conflito significa, também, assumir que a reprodução da vida está em perigo, por isso devemos transcender o estreito marco do possível, de forma decisiva e urgente.
Hoje, assistimos um momento de extrema exacerbação do conflito entre capital e vida. O capitalismo não garante um horizonte de estabilidade e crescimento, nem conta mais com dispositivos que minimamente generalizem transferências de bem-estar às maiorias populares, mesmo que seja apenas em certos lugares.
O capitalismo está gripado. É incapaz, em primeiro lugar, de gerar uma nova onda longa de produtividade generalizada, investimento, emprego e consumo, conforme até a OCDE afirma.
Em segundo, sua dinâmica de crescimento incessante já ultrapassou os limites físicos do planeta, como evidenciam a imparável mudança climática e o esgotamento de materiais e fontes fósseis de energia. Desse modo, se vê diante do insolúvel paradoxo de crescer com uma base física menor e mais vulnerável, fenômeno sem precedente histórico.
Terceiro, a aposta estratégica na economia digital, embora não haja evidências de que seja o motor para uma nova fase de acumulação sólida, sim, irá se afundar nas lógicas de precarização e redução em termos absolutos do emprego, minimizando sua relevância como intermediação.
Quarto, o impressionante protagonismo das megaempresas big tech amplia o alcance e a dimensão do poder corporativo, em detrimento de algumas instituições públicas incapazes (ou sem vontade alguma, em muitos casos) de regulamentá-lo.
E quinto e último, a maioria dos estados sofrem, atualmente, uma nova ofensiva para consolidar a aliança público-privada em favor da hegemonia corporativa, com um papel mais significativo em termos de investimento e amparo ao consumo, o que lhes distanciaria definitivamente de um horizonte de defesa do interesse coletivo.
Deste modo, não é mais o caso de que a teoria do gotejamento mostre fissuras, mas que se esfacelou. Suas intermediações se diluem. Se esta teoria conseguiu seguir seduzindo com a promessa do êxito, hoje, o fio de continuidade entre a precariedade na vida e a exclusão é o regime de existência que cada vez mais segmentos da população habitam, em cada vez mais regiões do planeta. O sonho do desenvolvimento virou caco.
E quanto menor a capacidade de sedução, maior é a violência que nos sujeita e que é exercida para garantir a subalternidade daqueles que, com seus trabalhos, lutam para que a vida mal prossiga em condições cada vez mais hostis. O redobramento das violências racistas e heteropatriarcais não se explica apenas por sua funcionalidade ao capitalismo, mas tampouco são alheias ao mesmo.
Portanto, hoje, mais do que nunca, precisamos sair de uma roda que está desabando. Enfrentar com força e esperança o abismo social e o colapso ecológico em que nos encontramos requer ampliar o marco da agência política para além do emprego, da tributação e das políticas públicas, que sempre têm sua condição na sustentação da acumulação de capital.
Precisamos de estratégias de transição que saiam do possibilismo capitalista, mas que também não sejam impostas como formas iluminadas incapazes de se conectar com os atuais sentidos comuns. Estratégias que combinem o melhor do hegemônico (direitos trabalhistas para um trabalho estruturalmente alienado, mecanismos desse estado de bem-estar que pretende apagar o conflito capital-vida) com as periferias que não foram totalmente capturadas pelo poder corporativo (redes de cuidados, economias camponesas e populares, economia social transformadora...) e com o novo que inventarmos.
O momento que atravessamos nos impele a colocar os nossos esforços nisso, com determinação e audácia. Saiamos da roda.
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E se o hamster deixasse de mover a roda capitalista? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU