“O vírus opera uma mudança de campo da esfera biológica à psíquica”, avalia Franco “Bifo” Berardi

Foto: Pixabay

16 Setembro 2020

Homem de esquerda, incansável pensador, infatigável ensaísta, Franco “Bifo” Berardi (Bolonha, 1948) refere-se, em sua última publicação, a justamente isto: a fadiga, a asfixia, a falta de ar e, por conseguinte, de palavra. Respirare – Caos y poesía (Prometeo) é uma análise psicanalítica como nunca fez e propõe a poesia como terapia, ou melhor, a terapia poética como exercício de respiração para sobreviver ao caos.

A reportagem-entrevista é de Lala Toutonian, publicada por Perfil, 13-09-2020. A tradução é do Cepat.

Bifo é precedido por uma obra filosófica que o situa entre um marxismo e estruturalismo de vanguarda, um pós-pensamento a estas correntes, onde a linguagem, a partir de uma perspectiva ou interpretação social de sua própria retórica, resulta uma estrutura fundamental para pensar estes tempos. Pessimista? Realista, e até otimista, em certos momentos. Considera a Covid não como uma causa de efeitos, mas como um catalisador, um acelerador de tempos (aquecimento global, neoliberalismos, etc.). Uma multiplicação de dor.

Hoje, a natureza humana se vê alterada, e como seres de linguagem que somos, as análises são retóricas. Esta peste não deixa de ser negra: a Covid mata e asfixia e, de algum modo, isto se transforma em uma lógica distinta da que sempre regeu a cultura humana.

Sua condição de asmático tem muito a ver com sua visão de mundo, que tem a dificuldade de respirar. Da poluição às circunstâncias existenciais são detonadores da asfixia. Sustentado nesta perspectiva, escreve: “Talvez um sentimento de solidariedade asmática fez com que me provocasse tanta impressão o vídeo que mostra o assassinato de Eric Garner, um afro-americano que tinha asma e que foi assassinado no dia 17 de julho de 2014, em Staten Island. Um policial o agarrou por trás, apertando-o com o seu braço até ficar sufocado. Suas últimas palavras, que repetiu oito vezes antes de expirar, foram repetidas por milhares de pessoas nas ruas das cidades norte-americanas, nos meses seguintes: ‘Não consigo respirar’”.

E continua: “Trump é o imperador perfeito deste império barroco da hipocrisia reluzente, que se sobrepõe ao sofrimento silencioso generalizado. A respiração é um ponto de vista que pode nos ajudar a explicar o caos contemporâneo para buscar uma via de escape do cadáver do capitalismo”.

Os pensadores fazem uma relação muito estreita entre a filosofia e a poesia, e entre a filosofia e a psicanálise. Talvez porque o que reativa a respiração é a séria análise que necessitamos hoje, de que estamos no limite do colapso (vital-social-capitalista-etc.).

“O problema que eu exponho é o da subjetividade, ou melhor dito, o problema da subjetivação. Como é possível criar formas de elaboração emocional e política da condição em que nos encontramos? Qual é esta condição? É uma condição de asfixia que foi produzida antes de mais nada pela aceleração da exploração das energias nervosas do organismo individual e coletivo e, secundariamente, pela difusão de um biovírus que está paulatinamente evoluindo para um psicovírus, após ter infectado a infosfera. A política, assim como a psicanálise, se tornou incapaz de proporcionar respostas adequadas a esta dupla asfixia”, avalia.

A relação poesia-respiração tem a ver com seus tempos, cadência, ritmo e vibração. E a poesia, despojada de precisão sintática, atua assim. Neste novo livro, Berardi ressalta que a poesia em si é “nada” (poderíamos acrescentar algum elemento niilista), mas que o ato poético em si é um acelerador da linguagem.

“Há duas maneiras de pensar a poesia na situação presente, se por poesia entendemos a criação de formas linguísticas, visuais, ambientais que tornem possível um ritmo autônomo a partir da asfixia, um ritmo que torne possível a sintonia entre corpos, a dança feliz da solidariedade e do erotismo. Mas há duas maneiras de pensar o gesto poético na situação presente. Uma é a da sublimação, a translação do prazer (que se tornou impossível na esfera do mundo social) para uma esfera puramente simbólica. Outra maneira é o reencantamento do mundo (como dizia Bernard Stiegler): a reativação das energias eróticas e sociais segundo um outro ritmo. Penso que temos que habitar as duas maneiras. Temos que nos proteger em uma esfera linguística de cortesia e de amizade e de sedução. Mas não apenas isso. Temos que buscar o ritmo da época apocalíptica que estamos vivendo, temos que encontrar uma sintonia com este ritmo, temos que difundir um ritmo harmônico”.

 

 

Eis a entrevista.

A Terra se asfixia desde antes da Covid. Hoje, o caos é absoluto. O litoral argentino está em chamas. Não há ação alguma do Estado. Não só a fauna e a flora serão perdidas para sempre, mas os habitantes ficam desalojados. Urge uma lei de zonas úmidas para conter a catástrofe. A direita argentina inventou um termo ofensivo. Chamaram a disposição estatal de permanecer em quarentena de “infectadura”, fazendo um jogo de palavras entre a infecção do vírus, é claro, e a ditadura militar. Uma pergunta punk: não há futuro?

A pergunta punk tem uma resposta muito fácil. Claro que não, não há futuro. Não há futuro humano, no sentido humanístico da palavra “humano”. O futuro imaginável não é vivível. Welcome to hell, como disse o slogan dos ativistas de Hamburgo 2017. Dois terços dos animais da fauna mundial morreram, segundo o que escreve hoje a BBC, em uma pesquisa muito importante. Isso significa que o planeta não é habitável por organismos naturais, como os animais, e por nós humanos, que somos animais.

 

 

A sobrevivência dos humanos é uma sobrevivência no inferno. A Califórnia, que é o estado mais desenvolvido, mais rico, mais tecnicamente forte do planeta não pode fazer nada contra os fogos que estão destruindo seu território. Um amigo me envia uma foto do céu de San Francisco, parece o céu que havia sobre a Austrália em dezembro. O mundo está pegando fogo e não há como apagá-lo. Estamos entrando na fase final do processo de extinção da civilização humana, mas a questão é: qual é o papel do intelectual nesta condição? Temos que buscar uma saída, enquanto for possível, uma possibilidade de sobreviver. Nosso projeto se reduziu a buscar sobreviver no inferno, como apenas possibilidade? Ou nossa tarefa intelectual e nosso projeto político-terapêutico é dispor a mente e a relação social (o que fica da relação) à extinção?

 

 

Seguindo com as políticas mundiais, nada é muito auspicioso: Itália, Espanha, Brasil, Reino Unido e Estados Unidos falharam. A Argentina teve a quarentena mais longa e, no entanto, há novos surtos por todos os lados. Qual é o modo político a ser desenvolvido e qual é o exercício social? Parece não haver maneira humanamente possível de saber.

Não tenho uma preparação científica que me permita manifestar a respeito da escolha de quarentena que foi realizada pelo estado italiano e pelo estado argentino. Acredito que uma escolha de outro tipo (a que foi realizada por criminosos políticos como Bolsonaro e Trump) era um desafio muito perigoso. Mas, ao mesmo tempo, penso que fizemos uma escolha inevitável que está destroçando a última esperança: a esperança de uma subjetividade solidária, capaz de remediar coletivamente o desastre produzido pelo capitalismo neoliberal. Esta esperança foi apagada pelo surto.

A geração que está crescendo hoje é uma geração destinada à sensibilização fóbica, à solidão, ao medo, à depressão. O suicídio foi multiplicado por quatro entre os jovens na Itália, durante a pandemia. Este é o ponto mais desesperador: que a geração futura não tenha a autonomia psíquica para imaginar, para construir solidariamente, para sair da armadilha capitalista.

 

 

Em certo momento, você disse que a civilização não desaparece, mas se separa da humanidade. Por acaso diz isto a partir do humanismo entendido como algo humanitário ou em um sentido sartreano?

A civilização não desaparece porque está transferida para a máquina tecnodigital, o autômato global. A própria cognição, a memória e a linguagem são transferidas para a máquina. Só a máquina pode atuar coerentemente. Ao redor do autômato existe o caos. Caos das relações afetivas, das relações políticas, da economia, da migração, da agressividade identitária, da guerra. Mas a máquina técnica segue trabalhando, proliferando automatismos, sugando mais-valia, acumulando capital abstrato, enquanto a vida concreta se corrompe.

 

 

Mas a civilização não pertence à vida consciente dos humanos. Os humanos são possuídos pelo caos, e pelo sofrimento que o caos gera. A civilização continua se desenvolvendo em forma de máquina separada pelo organismo coletivo dos humanos, que pertencem à esfera do caos. “Socialismo ou barbárie”, dissemos nos anos 1960. O socialismo fracassou e a barbárie é o que resta. Mas a barbárie não dura muito, porque apenas prepara a extinção.

 

 

O que nos diz estas “liberdades” governamentais que incentivam a economia a se promover em virtude da morte da população que se expõe ao vírus?

O capitalismo está morto porque sua dinâmica fundacional, ou seja, a acumulação de capital, e consequentemente a expansão, está bloqueada pelos próprios limites do planeta e pelo esgotamento das energias nervosas da sociedade. A estagnação (secular stagnation, nas palavras de Lawrence Summers) é a realidade inevitável. Para sair da stagnation, para reativar a acumulação, o capitalismo neoliberal colocou em marcha uma tendência de extração e devastação que, em 40 anos de domínio neoliberal, levou a humanidade à beira do colapso final. Mas não conseguimos encontrar a saída a partir do cadáver do capitalismo. A subjetividade social não tem as energias mentais e políticas para produzir um processo coletivo de transformação socialista, igualitário, solidário e frugal.

 

 

Em seu texto, “Caos y poesía”, ou Caos e ritmo, talvez um ritmo de respiração, andam de mãos dadas e nos salvam? O que nos espera? Porque não há retorno à normalidade. Acredito que você deve concordar com esta afirmação.

O caos não é uma realidade objetiva, não há caos na realidade. O caos é uma relação entre o mundo e a elaboração da mente humana. Quando a complexidade e a velocidade dos processos informacionais e da própria percepção do mundo superam a capacidade de elaboração consciente, entramos em uma dimensão caótica. Não podemos governar o caos, mas não podemos rejeitá-lo, cancelá-lo, aboli-lo. Temos que encontrar no interior do caos o ritmo e as formas que possam nos permitir viver harmonicamente. Mas esta atuação pressupõe uma subjetividade criativa, poética. Uma imaginação que saia dos limites da realidade que se tornou caótica.

A pandemia passará? Não sei, penso que sim, penso que a vacina ou a cura, ou o próprio esgotamento do surto libertará o mundo do coronavírus. Mas os efeitos, sobretudo os efeitos psíquicos, permanecerão no inconsciente coletivo. Voltar à normalidade é uma esperança estúpida, não só porque a normalidade capitalista produziu as condições do colapso, mas também porque as mutações produzidas pelo medo e pelo distanciamento tornam impossível uma reconstrução da normalidade.

Quando se fala em voltar ao crescimento econômico, não se considera que o crescimento se tornou impossível porque os recursos naturais estão se esgotando, mas também porque a subjetividade social não pode reativar energias que foram dissipadas pela pandemia. A demanda de mercadoria não é só um efeito econômico, é também um efeito psíquico, precisa de mobilização de energias psíquicas que já não existe.

No final de “Respirare”, faz uma análise sobre a felicidade.

A felicidade é a suspensão consciente da visão do abismo. Nesses momentos de suspensão, podemos construir pontes sobre o abismo. (...) A ponte sobre o abismo pode assumir diferentes formas: a paixão, a ternura, a criação coletiva, a alucinação e o movimento. Estas formas dão vida à experiência viva do significado.

Antes éramos felizes e não sabíamos?

A felicidade não é uma condição que se possa traduzir de forma analítica, é uma condição em sintonia do organismo consciente com os outros organismos, conscientes e inconscientes, com os corpos dos outros humanos e com o corpo da natureza. A pergunta que tenho hoje é: é possível ser feliz (como indivíduo, como indivíduos eróticos, como comunidade solidária autônoma) no horizonte da extinção? Não tenho uma resposta. É a pergunta que me coloco no limiar em que estamos. Podemos elaborar uma forma de vida e de cultura que nos permita viver felizmente o processo de extinção da civilização humana? Não sei, mas me pergunto.

 

 

O colapso respiratório de 2020 por Franco Berardi

A edição argentina deste livro, originalmente publicado em inglês pela editora Semiotext(e), em 2019, acontece em meio a uma dupla crise respiratória mundial.

A primeira é a pandemia de Covid-19: um colapso do organismo social planetário, provocado pela asfixia hipercapitalista.

A segunda é a agressão violenta contra as condições de vida da população, sobretudo dos jovens: o estrangulamento metafórico e verdadeiro. Esta agressão está desencadeando uma revolta dos negros norte-americanos, junto com os latinos, os migrantes e os brancos precários.

Sintomas do fim do capitalismo que deixa em seu lugar um abismo caótico.

(...) Quando digo que se trata de uma crise respiratória, não é em sentido metafórico. A poluição do ar nas metrópoles e a ansiedade da precariedade, literalmente, fragilizaram o organismo dos seres vivos, que respiram.

No entanto, ao mesmo tempo, o que realmente me interessa neste livro é o desenvolvimento de uma metáfora: a respiração se tornou difícil, a voz ronca, o cérebro coletivo entrou em um estado de pânico pela falta de oxigênio.

 

 

(...) Este colapso da sociedade planetária não pode ser explicado somente como consequência da epidemia de coronavírus. O organismo planetário já estava no limite do colapso e foi a pandemia que o precipitou.

Pelo aspecto ambiental, a coisa é muito evidente: as matas ardendo, os gelos se derretendo, os desertos avançando, as metrópoles asfixiando e a economia mundial sustentada graças à constante intervenção para salvar as finanças, enquanto se empobrecia os trabalhadores e o sistema público e, em primeiro lugar, o sistema público de saúde.

(...) Começam transformações profundas e irreversíveis na sociedade, às quais a vontade não pode se opor, nem a política pode se opor e para as quais o poder não tem armas.

O vírus atua como um recodificador: o vírus biológico recodifica todo o sistema imunitário dos indivíduos e, depois deles, dos povos. Depois, o vírus opera uma mudança de campo da esfera biológica à psíquica: produz medo, distanciamento. O vírus modifica a reatividade ao corpo de um outro, atua no inconsciente sexual.

Além disso, verifica-se uma difusão midiática do vírus: a informação fica saturada com a epidemia, a atenção pública está polarizada e paralisada.

O próprio tempo transcorre com uma sensibilidade de novo tipo: o passado começa a ser percebido de maneira diferente e, sobretudo, o futuro é visto como inquietante, ao passo que a respiração coletiva se torna difícil e, finalmente, fica bloqueada.

Então? Então, é necessário modificar o ritmo para retomar a respiração. Estamos em um limiar. O limiar da passagem da luz à obscuridade. Mas também da passagem da obscuridade à luz.

(...) Está em andamento uma busca coletiva em grande escala, que tem um caráter psicanalítico, político, estético, poético.

Nos últimos meses, assistimos a um profundíssimo dilaceramento do sentido da ação, de produzir e de viver. Não é só uma questão médica, claro que não. As próprias bases da civilização que herdamos (na qual sofremos, mas também gozamos) estão questionadas. Continuaremos aceitando cortes no gasto público? Continuaremos aceitando que o trânsito de automóveis torne as cidades irrespiráveis? Continuaremos aceitando que energias descomunais sejam gastas nos sistemas militares?

Mas também continuaremos olhando de lado, assim como estamos obrigados com as máscaras, as luvas e o medo? Continuaremos beijando na boca uma pessoa que conhecemos há uma hora, após uma recíproca e deliciosa sedução?

(...) Acredito que a longa quarentena do primeiro semestre de 2020, a qual provavelmente sigam outras, marca a passagem do horizonte moderno da expansão, que já há tempo vinha sendo freada, ao horizonte da extinção. Estamos nesse horizonte agora, e só se soubermos respirar em outro ritmo, um ritmo que sabe da extinção, saberemos sobreviver e, talvez, viver novamente.

Bifo”, 1 de junho de 2020.

Trecho da Introdução de Respirare (Prometeo, 2020).

 

Leia mais