08 Setembro 2020
"Se negligenciamos o aspecto corpóreo, sensível e institucional da Reforma litúrgica, reduzindo-o a um 'opcional', perdemos de uma só vez não só o sentido da reforma litúrgica, mas também o da reforma da Igreja", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 06-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Exatamente 100 anos antes da eleição do Papa Francisco, em 1913, era publicado na Bélgica “La liturgie catholique”, o livro que inaugurou a “fase acadêmica” do Movimento Litúrgico (Brémond).
Naquele livro, o seu autor, Maurice Festugière, fazia duas operações paralelas e profundamente correlatas: lançava as bases para a redescoberta da liturgia como “fonte e ápice” de toda a ação da Igreja e retomava uma dura polêmica com Inácio de Loyola e com a espiritualidade jesuíta do seu tempo.
Pelo primeiro motivo, ele foi um profeta; pelo segundo, sofreu, de 1919 até a sua morte, a proibição de escrever uma única linha a mais sobre a liturgia, proibição que observou escrupulosamente até a sua morte em 1950.
Por que hoje é importante relembrar esse episódio de mais de um século atrás? Certamente, não para alimentar novas polêmicas, mas para recuperar a complexa trama com que nasceu e se desenvolveu a releitura teológica da liturgia do século XX, que, com o Concílio Vaticano II, se tornou até paradigma da reforma da Igreja.
O que permanece atual desse evento traumático? Não apenas uma certa ideia de liturgia, mas também um certo modo de conceber a reforma da Igreja. Tentemos descobrir brevemente as suas características.
Se olharmos por baixo da polêmica entre um teólogo beneditino e os discípulos de Santo Inácio, que Festugière desencadeou com dureza por meio dos seus escritos, encontramos uma antiga diferença entre espiritualidade da interioridade e espiritualidade da mediação exterior.
No fundo, a grande diferença entre beneditinos e jesuítas – que se articulou com força entre os séculos XVII e XIX, e que perdura, sub-repticiamente, não tanto como polêmica, mas como diferença de estilo e de vida – reside na valorização da mediação corpórea dos primeiros e no primado do coração e do espírito dos segundos.
Talvez devêssemos falar de um “estilo antigo” – regulado e institucional – que, na Idade Média mendicante (sobretudo franciscana), e depois na modernidade jesuíta é relido de modo imediato, sentimental, espiritual.
A pretensão atual de entender a reforma da Igreja aquém (e além) do seu porte institucional também deriva dessa longa e complexa tradição. Dentro da qual é bom compreendê-la, nos seus méritos e também nos seus limites.
Aquilo que Festugière dizia, mesmo que a seu modo, há mais de 100 anos, é: a mediação litúrgica não se deixa reduzir ao seu conteúdo interior. Poderíamos dizer o mesmo hoje sobre a reforma da Igreja: ela não se deixa incluir totalmente na “conversão dos corações”. Que continua sendo uma etapa totalmente necessária, mas não suficiente.
A incompreensão da reforma litúrgica, mesmo por parte de quem a defende, ocorre principalmente no modo de compreender (ou de entender mal) as suas lógicas corpóreas, sensíveis e institucionais. Isso parece ser totalmente evidente, precisamente como projeção dessa “simplificação” da questão.
Um exemplo de anteontem me parece totalmente esclarecedor dos riscos de uma leitura “imediata” da liturgia e, mutatis mutandis, da Igreja. Ou, melhor, gostaria de dizer que precisamente sobre esse ponto a tensão entre intenção e realidade é grande e às vezes dramática.
É de anteontem a notícia de um bispo dos Estados Unidos (Diocese de Madison) que celebrou, no dia 27 de agosto passado, nada menos do que 102 crismas “no rito antigo”. A possibilidade de “iniciar” mais de 100 jovens fiéis desconsiderando totalmente tanto a reforma litúrgica quanto, consequentemente, a reforma da Igreja torna-se um princípio de escândalo, eu quase diria de uma “estrutura do pecado”, que é resultado de “palavras, atos e omissões”.
Tentemos identificá-los, na sua embaraçosa exterioridade, nunca redutíveis apenas às intenções do coração.
Nas últimas décadas, permitimos que palavras ambíguas e desprovidas de clareza alimentassem a ideia de que “o próprio rito romano” pode ser mediado indiferentemente das formas novas ou das formas velhas da liturgia. A comunhão eclesial é ferida por tais palavras, que abrem um espaço de indiferença litúrgica, de autorreferencialidade comunitária e de deriva sectária.
Se um bispo, hoje, pode celebrar crismas no rito antigo, as quais depois são seguidas pela Santa Missa segundo o mesmo “ordo”, de fato coloca a si mesmo e a todos os neófitos dentro de um espaço de perigosa ambiguidade, que palavras irresponsáveis descerraram e continuam confirmando hoje. Todos somos responsáveis por essas palavras pouco claras.
Não só as palavras, mas também as obras/atos deram mais uma contribuição para isso. Se existem normativas que chamam a divisão de “comunhão”, então é evidente que a confusão se torna máxima. Sobretudo quando o caminho com o qual a Igreja assumiu novos estilos celebrativos é abertamente desmentido, e isso desorienta o caminho comum. A comunhão é subordinada à ideologia, e a deriva sectária (para não dizer cismática) se deixa confortar por normativas que a “rebaixam” a simples “pluralismo de formas do mesmo rito”. Aqui estão as “práticas eclesiais” que trabalham contra a comunhão e que devem ser explicitamente corrigidas.
Mas não existem apenas palavras e atos, mas também omissões. E são de dois tipos: tanto de quem “finge que nada aconteceu” e vira o rosto para o outro lado, esperando que o fenômeno se esgote por si mesmo, quanto de quem tem toda a autoridade para intervir e não o faz. A degeneração da comunhão é aqui fruto de uma dupla omissão. De quem não fala, mesmo tendo o poder de falar, e de quem não age, mesmo tendo a autoridade para agir. Por isso, é preciso que, em todos os níveis, o cuidado pela reforma da igreja, que passa pela reforma da liturgia, não seja deixado de lado. O discernimento de que precisamos, para esse objetivo, passa não só pelo coração e pela mente, mas também pelo corpo e pelas instituições.
Como já era claro há um século, a redescoberta da liturgia como “ação comum de Cristo e de toda a Igreja” se tornaria princípio de uma releitura que a Igreja fazia de si mesma e da própria missão. A reforma da Igreja nunca se reduz à conversão do coração, que é uma parte necessária e insubstituível dela, mas não suficiente. Isso é evidente sobretudo no plano litúrgico, onde não está em jogo apenas uma “alma” ou um “coração” capaz de culto, mas também um “homem/mulher”, um “corpo”, “mãos”, “olhos”, “sons”, “espaços” capazes de entrar em uma ação litúrgica.
Se negligenciamos o aspecto corpóreo, sensível e institucional da Reforma litúrgica, reduzindo-o a um “opcional”, perdemos de uma só vez não só o sentido da reforma litúrgica, mas também o da reforma da Igreja. As palavras fortes com que Festugière, há mais de 100 anos, advertia contra as “soluções imediatas” ao problema do culto cristão valem ainda hoje, mas em um campo muito mais vasto. Não para alimentar uma polêmica que já objetivamente datada e superada, mas para focar uma inteligência da questão da reforma que deve mediar entre interioridade e exterioridade, com uma sabedoria tão antiga quanto nova.
Se o coração não mudar, as instituições nunca mudarão. Mas, sem uma disciplina renovada dos corpos e das formas institucionais, os corações podem girar no vazio e se fechar. Porque o ser humano nunca é apenas a sua razão e o seu coração, mas também o seu corpo, a sua boca e as suas mãos.
Uma reforma litúrgica e uma reforma eclesial que se esquecessem dessa maravilhosa complexidade estariam condenadas a ficar aquém da sua própria tarefa.
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Reforma da Igreja e das diversas tradições espirituais: palavras, atos e omissões. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU