10 Julho 2020
"A homilia do Pe. Edson Adélio Tagliaferro, censurada por Dom José Roberto Fortes, denuncia a situação alarmante do país que registra quase 70 mil óbitos confirmados. O Brasil se tornou o epicentro da pandemia, atingindo o primeiro lugar referente ao número de mortes diárias registradas por covid-19, no mundo", escreve José Cristiano Bento dos Santos, Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina – UEL e padre da Arquidiocese de Londrina.
Marcelo Barros [1], em seu livro “Dom Hélder Câmara: Profeta para os nossos dias”, registra as últimas palavras do bispo dos marginalizados, poucos dias antes de sua morte. Disse Dom Hélder ao monge: “Não deixe cair a profecia” (BARROS, 2011, p. 20). Foi a sua última mensagem e que traduz, teologicamente, a intervenção de Deus na história do judaísmo e do cristianismo, através de homens e mulheres, na denúncia e na luta contra sistemas opressores, historicamente, das classes socialmente desprotegidas.
José Comblin deu testemunho do bispo profeta defensor dos mais fragilizados socialmente, com as seguintes palavras: “Dom Hélder foi uma personalidade múltipla. Foi um profeta, mas também um místico e um poeta. Era um homem totalmente apaixonado pela sua missão, e inteiramente aberto aos outros de qualquer religião e cultura” (COMBLIN, 2009, p. 224).
Para Marcos de Castro, a postura de Dom Hélder em favor dos perseguidos e contra as ações da Ditadura Militar, irritava os generais que sucediam na presidência e toda a cúpula de poder do país. Em maio de 1970, por exemplo, Dom Hélder denunciou, em Paris, a existência da tortura no Brasil, com ação violenta contra os indivíduos perseguidos, desde a imposição do Ato-Institucional número 5 (AI-5) (CASTRO, 2002, p. 11-12).
Dom Hélder se apresentava como um bispo consciente dos efeitos negativos que sua denúncia causaria aos militares. Afirmou Dom Hélder, questionando as atitudes abusivas e em defesa dos indivíduos perseguidos pela Ditadura Militar: “Se combato as injustiças quando são cometidas em qualquer parte do mundo, por que haveria de calar quando essas injustiças e arbitrariedades se passam dentro do meu país?” (CASTRO, 2002, p. 181-182). Por isso, Dom Hélder passou a ser mais amado pelo povo e odiado pelos militares que o rotularam como “Arcebispozinho comunista” (CASTRO, 2002, p. 50).
De acordo com Comblin, a atitude de Dom Hélder, em Paris, custou-lhe a perda de títulos e cargos institucionais dentro da Igreja Católica. Além disso, o bispo, mesmo indicado quatro vezes ao Nobel da Paz, entre os anos de 1970 e 1973, não pôde alcançar tal reconhecimento, em virtude de ação difamatória do governo brasileiro e perseguição política (COMBLIN, 2009).
Essa pergunta pode ser meditada e respondida, tendo como um dos exemplos atuais de profecia, a atitude do Pe. Edson Adélio Tagliaferro, da Paróquia Nossa Senhora das Dores, em Artur Nogueira, no interior de São Paulo, Diocese de Limeira. A repercussão de sua fala, na homilia da missa do dia 02 de julho, provocou uma reação imediata do bispo Dom José Roberto Fortes que emitiu uma nota de retratação. A instituição religiosa afirmou que o padre se excedeu em suas palavras e pediu desculpas ao presidente Jair Bolsonaro. Diz um trecho da nota, assinada pelo responsável pela diocese:
Uma parte da homilia ganhou repercussão midiática pelo uso de palavras inadequadas em sua referência ao Exmo. Sr. Presidente da República. Pe. Edson Adélio Tagliaferro reconhece que se excedeu em suas palavras e pede desculpas ao Exmo. Sr. Presidente da República e a todos que se sentiram de algum modo atingidos [2].
Disse Edson Adélio Tagliaferro em sua homilia transmitida online na última quinta-feira (2):
Vocês querem que eu fale aquilo que todo mundo fala, que não deixam ele trabalhar? Não! Bolsonaro não presta. Bolsonaro não vale nada. E quem votou nele devia se confessar, pedir perdão a Deus pelo pecado que cometeu, porque elegeu um bandido para presidente. Muitas pessoas dizem: padre, cuidado com o que você fala na homilia porque tem gente que não gosta. Ué, o que a gente tem que falar na homilia, senão aquilo que Deus nos pede para falar. Se a gente tá vendo que o governo não presta, o padre não pode falar que o governo não presta porque o povo não quer ouvir isso? [3]
O padre também lembrou que, em meio às 60 mil mortes provocadas pela pandemia do coronavírus. Nós ainda não temos ministro da Saúde [4].
A homilia de Tagliaferro, censurada por Dom José Roberto Fortes, denuncia a situação alarmante do país que registra quase 70 mil óbitos confirmados. O Brasil se tornou o epicentro da pandemia, atingindo o primeiro lugar referente ao número de mortes diárias registradas por covid-19, no mundo. Mesmo com esse número de óbitos e de pessoas infectadas pelo vírus, o presidente Jair Bolsonaro, ao contrário de outros países, ainda prefere fortalecer sua política negacionista da pandemia, minimizando seus efeitos, forçando a saída do país do isolamento social e perseguindo prefeitos e governadores que administram estados e municípios, com embasamento em orientações científicas, para evitar o aumento de contágio e de mortes.
Todo esse cenário complexo é agravado pelo aumento da letalidade contra a população negra. O caso de João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, um adolescente negro, morador do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (região metropolitana do Rio), faz parte desta triste estatística. Ele foi baleado durante uma ação do Batalhão de Operações Especiais (Bope), no dia 18 de maio deste ano. Esse acontecimento é mais um exemplo da violência policial que revela uma ação coordenada e negligente contra a população pobre e negra, conforme demonstra a reportagem de Maria Carolina Trevisan: “Não é só no Rio que a violência policial tomba tantos corpos, quase todos negros, quase sempre pobres. Bahia e São Paulo também têm um amplo saldo de desaparecimentos forçados e brutalidade de agentes de segurança”.
Por meio de dados obtidos e analisados pelo Instituto Sou da Paz, fica visível o aumento da violência policial. No primeiro trimestre de 2020, as polícias de São Paulo mataram 267 pessoas. Acrescenta o estudo:
Esse é o maior número de mortes cometidas por policiais em um trimestre desde 2016 e representa um aumento de 23,6% na letalidade policial em comparação com o 1º trimestre de 2019 [...] O maior crescimento percentual (+53,3%) ocorreu nas mortes cometidas por policiais fora de serviço, mas as mortes cometidas por policiais em serviço tiveram um aumento de 186 para 221 (+18,8%) e alcançaram um patamar de letalidade trimestral que não era visto desde o ano de 2012 [5].
Um outro fato grave é a opção de uma política nacional que deixa visível também, o aumento de conflitos no campo, pois é o maior número de violência e morte, principalmente na região da Amazônia, como expõe a Comissão Pastoral da Terra (CPT), ao publicar os dados de conflitos ocorridos no campo no Brasil no ano de 2019, tendo como parâmetro o artigo da jornalista Eliane Brum: “A miliciarização da Amazônia: como o crime vira lei e o criminoso ‘cidadão de bem’ na maior floresta tropical do mundo”. Comenta a Comissão Pastoral da Terra (CPT):
Ela analisa a violência no campo, na Amazônia, com destaque para o momento atual, dada a intensificação dos ataques promovidos contra a floresta e seus povos, sob o patrocínio de Bolsonaro, cuja clara intenção é abrir os recursos naturais amazônicos à exploração predatória do agronegócio e da mineração, sem poupar sequer as terras indígenas e quilombolas, áreas constitucionalmente protegidas e destinadas ao usufruto perene dos povos aos quais pertencem. Destaca que 60% dos conflitos de terra ocorridos no Brasil em 2019 se deram na Amazônia, que também concentrou a violência extremada, com 27 (84,4%) dos 32 assassinatos registrados pela CPT [6].
Diante de tais evidências, percebe-se um período de genocídio sistemático que revela que o Brasil está vivendo uma situação de extermínio da vida, não apenas por causa da Covid-19, mas pelas ações violentas, estruturalmente, endêmicas e, fortalecidas por uma política seletiva, presente historicamente no imaginário cultural da sociedade brasileira. Por isso, afirma o historiador João José Reis sobre o governo Bolsonaro:
É mais um capítulo da necropolítica, quando se escolhe quem vai morrer ou viver [...]. Bolsonaro tirou do armário o ódio, o preconceito. Sim, neste governo aumentou o machismo, a violência contra a mulher, contra os negros, contra os índios, aumentou a violência. Há uma abertura maior para esse aspecto mais maldito que o brasileiro tinha dentro da sua alma [7].
Foi diante desse cenário de morte no Brasil, cuja vítima é o povo pobre, indígena, negro, favelado, que o Pe. Edson Adélio Tagliaferro atendeu o pedido de Dom Hélder Câmara: “Não deixe cair a profecia”. É o múnus profético que, segundo o Catecismo da Igreja Católica, todo o cristão recebe no Batismo (nº 871).
De acordo com José Comblin (2009), o profeta é um homem profundamente afetado pelos acontecimentos, pois ele possui sensibilidade para perceber a realidade, tornando inseparável a profecia da pessoa do profeta.
Na nota diocesana, o bispo Dom José Roberto Fortes pediu desculpas ao presidente e reiterou que a Igreja Católica “não se identifica com nenhuma ideologia ou partido político” [8]. Porém, na visão de Comblin, a profecia por ser palavra que se transforma em “ações públicas”, tem caráter político. Afirma o autor:
A profecia é palavra de Deus ao seu povo aqui e agora. É atualização da palavra de Deus, que foi missão de Jesus nessa terra. Por isso ela é 100% religiosa e 100% política – mas política num sentido bem particular [...]. A profecia é política porque é pública, dirige-se à sociedade inteira e aos seus governantes e anuncia uma mudança radical na sociedade toda. Não substitui a política que é própria do governo, mas denuncia as injustiças do governo e anuncia uma mudança na sociedade e nos seus governantes (COMBLIN, 2009, p. 12).
Essa concepção de profecia demonstra que o Pe. Edson Adélio Tagliaferro compreendeu que a Igreja, ao longo da história, em diferentes contextos, responde à sua missão de promover e defender as vidas ameaçadas pelo “sistema que as oprime, degrada e mata” (PAPA FRANCISCO, 2015).
Como profeta, Tagliaferro agiu pastoral e politicamente, porque se mostrou um pastor com uma visão integral do cristianismo, traduzida no amor aos sem voz: pobres, presos, negros, índios, mulheres, homossexuais, os sem-terra (MST) e os sem-teto (MTST), cumprindo o pedido de Dom Hélder ao teólogo Marcelo Barros: “Não deixe cair a profecia”.
[1] Marcelo Barros de Sousa é um monge beneditino, escritor e teólogo brasileiro.
[2] Cf. Disponível aqui.
[3] Cf. Disponível aqui.
[4] Cf. Disponível aqui.
[5] TREVISAN, Maria Carolina. Caso João Pedro: coronavírus e letalidade policial ameaçam população negra. 2020. Acesso em 27 de maio de 2020. Disponível aqui.
[6] Cf. Disponível aqui.
[7] REIS, João José. Bolsonaro carrega um cemitério nas costas. LUCENA, Eleonora de; LUCENA, Rodolfo. 2020. Acesso em 27 de maio de 2020. Disponível aqui.
[8] Cf. Disponível aqui.
BARROS, Marcelo. Dom Hélder Câmara: Profeta para os nossos dias. São Paulo: Paulus: 2011.
CASTRO, Marcos de. Dom Hélder Câmara: misticismo e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo Brasil 2019. (Acesso em 08 de julho de 2020). Disponível aqui.
COMBLIN, José. A profecia na Igreja. São Paulo: Paulus: 2009.
PAPA FRANCISCO. Participação ao II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. (Acesso em 08 de julho de 2020). Disponível aqui.
REIS, João José. Bolsonaro carrega um cemitério nas costas. LUCENA, Eleonora de; LUCENA, Rodolfo. 2020. (Acesso em 27 de maio de 2020). Disponível aqui.
TREVISAN, Maria Carolina. Caso João Pedro: coronavírus e letalidade policial ameaçam população negra. 2020. (Acesso em 27 de maio de 2020). Disponível aqui.
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Pe. Edson Adélio Tagliaferro: “Não deixe cair a profecia”. Artigo de José Cristiano Bento dos Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU