02 Junho 2020
"O Papa, acessível a muitos, governa com um estilo que lembra algo dos superiores gerais, que logo evoca a ação da Companhia de Jesus. Na realidade, como a sociedade global, a Igreja passa por uma transição incerta: não se delineiam ainda as instituições de amanhã. Enquanto isso, o Papa coloca no centro o confronto pessoal e eclesial com o Evangelho. E, percorrendo esse caminho, ele se coloca como um líder global e espiritual de autoridade".
A opinião é do historiador italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 01-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Durante as semanas dos coronavírus, o Papa Francisco adquiriu um destaque renovado, não apenas pela transmissão diária da missa que, apenas a rede TG1 alcançou um milhão e meio de ouvintes. Sete anos se passaram desde a eleição de um papa que "vem do fim do mundo": uma virada na Igreja atingida pelo trauma da renúncia de Bento XVI, motivada por um forte senso de responsabilidade mais que por graves problemas de saúde. Em 1978, houve um momento decisivo na eleição do papa "estrangeiro", vindo do mundo comunista. Na realidade, Wojtyla, por apenas dois anos, não nasceu em terras dos Habsburgos, como Pio X e Pio XI (e os lombardos Roncalli e Montini vieram, anos depois, de terras anteriormente dos Habsburgos). Ratzinger também não estava longe do coração da Europa Central do catolicismo. Os Papas europeus estavam convencidos do papel religioso do continente para a Igreja no mundo. Mas também do papel político: Pio XII favoreceu a integração europeia, incluindo protestantes, superando a Europa latino-católica; Wojtyla fez da unidade europeia seu horizonte.
Com Bergoglio, há um salto no papado. Os comentaristas tiveram dificuldade para colocar Francisco no panorama católico. Às vezes há um certo incômodo, bastante irracional, diante de uma figura que se dissocia da continuidade na gestão do poder político dos papas, especialmente em aspectos externos e protocolares. Até os predecessores depois do Vaticano II se moveram nessa direção, embora com outra cadência.
É uma tensão antiga, tanto que Bernardo de Claraval criticava Eugênio III, Papa em 1145: "você parece ter sucedido não a Pedro, mas a Constantino".
Para o teólogo conciliar, padre Chenu, o "fim da era constantiniana" com uma Igreja missionária havia chegado, amiga dos pobres, na qual "vive" o Evangelho mais que o direito ou a filosofia.
Francisco, com desconcertante simplicidade, apresenta-se como padre e bispo. É marcado pela história argentina e pela formação jesuíta. Ele foi o protagonista do documento de Aparecida, com o qual os bispos latino-americanos relançaram a Igreja no continente.
Acima de tudo, impressiona o evangelismo que vibra nele, com o chamamento à conversão, misturado com as Escrituras. Quem o ouve percebe um evangelho vivo, mais que ideologia ou visão de mundo. Obviamente, isso cria simpatias e antipatias.
A insistência sobre os pobres é constante: a Igreja dos pobres do Vaticano II vivida no contato com os feridos da vida, mas também unindo mística do pobre (evangélica) e compromisso social com bem outra vibração da praxe institucional das grandes organizações assistenciais católicas. Os migrantes e refugiados, aos quais o Papa frequentemente se refere, são um tema difícil para os setores nacional-católicos.
Impressiona-me a leitura da Exsul familia de Pio XII sobre migrantes (1952). Pacelli afirma um "direito a um espaço de vida" da família migrante: é mais radical que Francisco, mesmo que em uma situação diferente. Bergoglio, como posição social, coloca-se em uma postura "terceira", estranho às sugestões marxistas, mas crítico do capitalismo global.
Em 1981, João Paulo II confidenciou a Andreotti que pensava no futuro da Polônia: "nem capitalismo nem marxismo". Para a URSS pós 1989, aconselhava não aderir ao capitalismo.
Como Bergoglio vê a Europa? Sobre isso, Ferruccio de Bortoli o questionou na primeira entrevista. Não recordo as várias intervenções oficiais, mas apenas a última operação de pressão, realizada por ele, em tempos de Covid-19 (culminada no apelo da Páscoa), por uma UE solidária com o Sul, que tenha o ponto de força na relação com Angela Merkel, sensível ao pensamento do Papa.
Quanto ao governo do primeiro Papa global em um mundo desestruturado, as fusões e ajustes não criaram uma nova arquitetura de instituições. O centralismo romano, que desagrada a várias Igrejas locais, moderou-se, mas o governo romano continua sendo um ponto de coesão.
O Papa, acessível a muitos, governa com um estilo que lembra algo dos superiores gerais, que logo evoca a ação da Companhia de Jesus. Na realidade, como a sociedade global, a Igreja passa por uma transição incerta: não se delineiam ainda as instituições de amanhã.
Enquanto isso, o Papa coloca no centro o confronto pessoal e eclesial com o Evangelho. E, percorrendo esse caminho, ele se coloca como um líder global e espiritual de autoridade.
No passado se falava de alternância entre Papas religiosos e políticos. Bergoglio, Papa religioso ou político? A distinção não faz sentido hoje, aliás, nunca fez.
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Confronto com o Evangelho, a virada do Papa Bergoglio. Artigo de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU