26 Mai 2020
Entre a pandemia e os escândalos diários de um governo recheado de personagens assombrosos, o desmatamento avança como nunca na Amazônia. E para dialogar com a apropriação criminosa da floresta o presidente Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória 910, que visa à regularização de ocupações fundiárias ilegais, rapidamente apelidada de MP da Grilagem. Após esgotar seu prazo, o deputado Zé Silva, do Partido Solidariedade (MG), apresentou o PL 2633/20, que trata da mesma matéria. É sobre isso que o Correio entrevistou Philip Fearnisde, o biólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA).
“Os beneficiários não são humildes e pequenos agricultores, nem são os grandes produtores de soja cuja contribuição ao PIB é valorizada. Trata-se de áreas fronteiriças na Amazônia onde a floresta tropical está sendo convertida em pastagens extensivas”, resumiu.
Além de dialogar com avanço sobre territórios de preservação ou de direito dos povos indígenas, Fearnside destaca que o texto do PL apenas reitera leis já existentes – mesmo porque o lobby dos grileiros e grandes desmatadores acumulou grandes ganhos políticos nos anos anteriores. Por fim, alerta que enquanto o foco da sociedade é quase exclusivo na pandemia do coronavírus o desmatamento da floresta avança violentamente.
“O desmatamento aumentou em todos os meses de 2020 em relação às taxas detectadas pelo sistema DETER, do INPE, para os mesmos meses em 2019: 109% em janeiro, 34% em fevereiro, 30% em março e 64% em abril. Esses meses ainda são na parte chuvosa do ano na Amazônia, quando a quantidade de desmatamento é relativamente pequena”, afirmou.
A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 23-05-2020.
Eis a entrevista.
Em linhas gerais, o que significa a MP 910, agora apresentada como Projeto de Lei 2633, e quais devem ser as consequências de sua eventual aprovação?
Transformar esta Medida Provisória, também conhecida como MP da Grilagem, seria mais um revés para os esforços de contenção do desmatamento em áreas ilegalmente ocupadas nas terras da União, ainda pior com base em meras autodeclarações. Sua transformação no PL2633/20 permite um debate público antes de se converter em lei, com as mudanças perigosas que traz em seu conteúdo.
O que pensa das justificativas do governo para a ideia? Quem seriam os beneficiários?
As justificativas do governo são altamente enganadoras. Os beneficiários não são humildes e pequenos agricultores, nem são os grandes produtores de soja cuja contribuição ao PIB é valorizada. Trata-se de áreas fronteiriças na Amazônia onde a floresta tropical está sendo convertida em pastagens extensivas.
Os impactos desta perda de florestas são enormes e claramente vão contra os interesses do país. Entre outros serviços ambientais, a reciclagem de água pela floresta é fundamental para manter o regime de chuvas fora da Amazônia, essencial para a produção de energia hidrelétrica e o suprimento de grandes cidades como São Paulo.
Ela visa mais especificamente à apropriação de terras indígenas ou trata-se de colocar todas as terras no alvo?
Afeta principalmente as vastas terras devolutas, ou “não destinadas”, na Amazônia. Agora também são ameaçadas as 277 áreas indígenas ainda não homologadas que perderam a proteção em 22 de abril quando foi publicada a Instrução Normativa No. 09 de 2020, da FUNAI.
Observando o passado, as MPs 422 e 458, além do Novo Código Florestal de 2012, já não tinham satisfeito todas as pressões políticas e econômicas expressadas na atual MP 910?
Grande parte da MP 910 e agora do Projeto de Lei é simplesmente desnecessária, por já ser tratada em leis anteriores. A inclusão de tais repetições serve para permitir discursos alegando de que “necessitamos” disso para beneficiar pequenos agricultores, apesar desta parte já ser coberta pela atual legislação. As novidades no texto beneficiam apenas os grandes grileiros.
Aliás, quais foram os efeitos dessas políticas citadas até aqui?
Essas políticas vêm favorecendo a ocupação ilegal de terras públicas na Amazônia, pois fica claro para os desmatadores na fronteira amazônica que atos ilegais são depois perdoados e os invasores, tanto grandes como pequenos, são premiados com a propriedade da terra. A anistia até 2018, contida na MP 910 e novo PL, seria mais uma premiação.
Na atualidade e cerca de um ano após o chamado Dia do Fogo, como está o desmatamento e o assédio sobre a floresta nesses tempos em que tudo parece suspenso no ar?
O desmatamento aumentou em todos os meses de 2020 em relação às taxas detectadas pelo sistema DETER, do INPE, para os mesmos meses em 2019: 109% em janeiro, 34% em fevereiro, 30% em março e 64% em abril. Esses meses ainda são na parte chuvosa do ano na Amazônia, quando a quantidade de desmatamento é relativamente pequena.
Agora começando em maio, e ainda mais de junho em diante, se espera um grande aumento. A quarentena devido à pandemia só começou em 11 de março, e não deve confundir o efeito coronavírus com o efeito Bolsonaro, que é o fator maior.
Acredita que a pandemia gerará alegações ainda mais radicais dos interessados em se apropriar da natureza a todo custo?
A pandemia oferece uma desculpa para muitas coisas, mas o efeito mais claro é de tirar a atenção da mídia e da sociedade de qualquer assunto que não seja a COVID-19. Assim, ações podem surgir sem a devida atenção, como no caso que debatemos aqui.
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PL da regularização fundiária: “as justificativas do governo são altamente enganadoras”. Entrevista com Philip Fearnisde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU