05 Mai 2020
Tudo é graça, até o sofrimento de não podermos nos reunir para a eucaristia: a graça de reencontrar na nua fé o primeiro princípio da nossa salvação e da nossa comunhão na Igreja.
A opinião é do teólogo e padre italiano Severino Dianich, cofundador e ex-presidente da Associação Teológica Italiana e professor da Faculdade Teológica de Florença. O artigo foi publicado na revista Vita Pastorale, de maio de 2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Para Maria, sua mãe, pelo que os Evangelhos narram, Jesus ressuscitado não teria dito nada. Gosto de pensar que isso aconteceu porque Maria, sua mãe, já havia entendido tudo.
Para a outra Maria, por sua vez, a de Magdala, ele disse peremptoriamente: “Não me segures!”. Ele não pretendia permanecer aqui perenemente, como não aconteceu com nenhum homem vivo nesta terra: “Subo para junto do meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”. Esse era o destino do Ressuscitado. Ele diria aos discípulos: “Eis que eu estou convosco todos os dias, até o fim do mundo”, mas eles também deviam entender que não o veriam mais no meio deles, não poderiam mais tocá-lo nem escutar a sua voz.
Na última noite em que estiveram com ele, para a ceia da Páscoa, ele repetira várias vezes que, para ele, era o momento de ir embora. E eles nem lhe perguntaram para onde ele estava indo, porque temiam ouvir: “Agora vou para junto daquele me enviou”.
Eles deviam entender, porém, que, mesmo na sua ausência, eles encontrariam uma graça: “No entanto, eu vos digo a verdade: é bom para vós que eu vá. Se eu não for, o Paráclito não virá a vós. Mas, se eu for, eu o enviarei a vós” (Jo 16,5-7).
A nossa espiritualidade está muito ligada ao sentido da sua presença, que percebemos toda vez que nos reunimos em seu nome, quando se celebram os sacramentos e especialmente na eucaristia. Todo domingo na missa, sentimo-nos como seus comensais, ouvimos a sua Palavra e, como os discípulos naquela noite, nos alimentamos daquele pão partido por amor, que é o seu corpo, e nos tornamos membros uns dos outros debaixo dele, nossa cabeça.
Esses sentimentos nos acompanham, portanto, ao longo dos dias e, nos momentos de sofrimento, nos sustentam.
Ora, uma situação totalmente imprevisível está nos privando dessa percepção física da sua presença no encontro de fé com os irmãos e irmãs. Descobrimos, então, que há momentos da vida, e são estes, nos quais é preciso voltar a meditar sobre o mistério da sua ausência, aquele que ele quis que a Madalena, que chorava, aceitasse com fé: “Não me segures!”.
O que permanece é outra presença dele, e as nossas comunidades nestes dias, obviamente, não estão absolutamente se esquecendo dela, inevitável e particularmente imperativa nos momentos difíceis, a nos pobres: “Os pobres sempre os tendes convosco. A mim, no entanto, nem sempre tereis”.
Sobre a graça escondida na ausência de Cristo, São Paulo teve uma ideia precisa: “Se, outrora, conhecemos Cristo à maneira humana, agora já não o conhecemos assim” (2Cor 5,16). O texto grego sugere também outra versão: a expressão “à maneira humana” corresponde, de fato, a um “katá sárka”, “segundo a carne”, isto é, alguma forma de percepção física da sua presença.
Então, o apóstolo quer dizer que, por outro lado, conhecemos Cristo “katá Pneuma”, ou seja, em uma experiência diferente, totalmente interior ao nosso espírito e mais real e profunda, animada pelo Espírito Santo, assim como Jesus havia previsto para o tempo da sua ausência: “Se eu não for, o Paráclito não virá a vós. Mas, se eu for, eu o enviarei a vós”. De fato, é o Espírito que dá a fé, e é pela fé que Cristo habita nos nossos corações.
Hoje nos sentimos particularmente chamados a acolher a provocação de Paulo: “Examinai- vos bem, para ver se estais na fé. (...) Não reconheceis que Jesus Cristo está em vós?” (2Cor 13,5).
“Tudo é graça”: essas foram as últimas palavras sussurradas antes de morrer, depois de uma vida atormentada na alma e oprimida pela doença no corpo, pelo jovem padre do romance de Georges Bernanos, “Diário de um pároco de aldeia”.
Tudo é graça, até o sofrimento de não podermos nos reunir para a eucaristia: a graça de reencontrar na nua fé o primeiro princípio da nossa salvação e da nossa comunhão na Igreja. Diz-se, com razão, que, sem eucaristia, não há Igreja. Porém, isso nem sempre é verdade: os cristãos da Amazônia que não podem celebrá-la, senão muito raramente, ou os fiéis que estão na cadeia ou em prisão domiciliar na China, ou os catecúmenos que, nesta Páscoa, não puderam celebrar o tão desejado batismo não são, talvez, Igreja? Mesmo antes dos sacramentos, é a fé que cria o fiel e forma a Igreja. O sacramento celebrado sem a fé não serve para nada.
Sermos chamados a nos lembrar disso é graça também para uma reavaliação da nossa prática pastoral mais habitual. Tudo parece se concentrar nos sacramentos, razão pela qual, quando não podemos celebrá-los, sentimo-nos no vácuo. Nestes nossos países de antiga tradição cristã, estamos demasiadamente acostumados a considerar a fé como um pressuposto quase óbvio, e nos dedicamos muito pouco a propô-la aos ateus, às pessoas de outras religiões, aos muitos batizados que a abandonaram, aos muitos, até mesmo praticantes, de fé incerta e vacilante. Mais do que exortar: “Venha à missa!”, devemos perguntar a muitos: “Quem é Jesus para você? Você acredita?”.
Se nos sentimos perdidos devido ao desaparecimento do encontro dominical para a celebração eucarística, em relação ao qual, às vezes, mede-se superficialmente o sucesso ou o insucesso da missão da Igreja, devemos nos perguntar se, por acaso, não esquecemos que o primeiro e fundamental dever de todo cristão é comunicar “a alegria do Evangelho” àqueles que nada sabem sobre Jesus, assim como àqueles que sabiam, mas esqueceram. Que a graça do momento presente também é a de levar a sério a exortação do Papa Francisco à Igreja para se voltar “mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação” (EG 27)?
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O tempo da ausência de Cristo. Artigo de Severino Dianich - Instituto Humanitas Unisinos - IHU