03 Abril 2020
"O drama é este: o responsável desta vez não existe, não há ninguém que possa responder por tudo isso. Algumas escolhas - erradas ou tardias - podem ter agravado a situação ou não limitado os danos o suficiente, mas não há um verdadeiro responsável a quem pedir explicação por toda essa morte e destruição. E na ausência de respostas, também as palavras falham. No entanto, precisamos de palavras pelo menos tanto quanto do ar que o vírus tira daqueles que atinge", escreve Stefano Biancu, filósofo, teólogo italiano e professor da Universidade de Genebra, em artigo publicado por Il Regno, 02-04-2020. A tradução é de Tradução de Luisa Rabolini.
A pandemia nos tira as palavras, detona os critérios com os quais costumamos falar sobre o mundo e quebra a ilusão de ter a realidade sob controle. Para nós, que somos tão vulneráveis, no entanto, permanece a possibilidade de sermos responsáveis pela esperança e de recomeçar, pessoal e politicamente, a partir do mandamento do amor.
Eu sou professor, trabalho com as palavras. Eu sei como se pode preencher de palavras todos os espaços e todos os momentos, como se captura a atenção de uma plateia com uma palavra engraçada ou comovente, como sair-se com elegância quando não se tem as respostas para todas as perguntas. Eu aprendi: são os segredos do ofício.
No entanto, agora não tenho mais palavras. Porque as palavras de que dispunha não são suficientes para dizer o que estou testemunhando e o que estamos vivendo: elas não são suficientes para mim e, aliás, me perturbam. Gostaria de fugir de tudo isso e não sei para onde ir, porque estamos todos no mesmo barco: o vizinho do lado e o distante que mora no outro hemisfério.
A única palavra que me resta é "por quê". Por que tudo isso? Por que nessas proporções? Não tenho resposta para essa pergunta e desta vez não consigo me sair com elegância.
Eu explico aos meus alunos que uma ação não é um fato simples, porque supõe um agente livre e responsável: alguém a quem poderei pedir conta de suas ações, poderei pedir para justificá-las e torná-las justas aos meus olhos.
Mas hoje não há ninguém a quem possamos pedir explicação sobre o que está nos acontecendo. Todas as tentativas de encontrar um responsável - alguém que possa responder pelo que está acontecendo conosco - parecem vãs. O vírus nem é um ser vivo. Mata e destrói sem sequer a motivação - questionável, mas compreensível - de ter que garantir a sua subsistência: mors tua vita mea.
Tentamos encontrar os responsáveis: poluição, algumas supostas práticas de zootecnia, as mentiras do governo chinês, a desorganização do nosso país, os cortes na saúde, até os runners. A certa altura, pareciam ser eles - os runners - as causas da catástrofe: se você corre enquanto as pessoas morrem, você deve ser o culpado. Confesso: enquanto era possível, eu fui um deles. Corria para viver e o fazia sem colocar em risco a vida de ninguém: sei, portanto, que não é ali que deve ser procurado o responsável. Ficamos zangados um com o outro na busca desesperada de um responsável: vamos encontrá-lo e o problema será resolvido.
O drama é este: o responsável desta vez não existe, não há ninguém que possa responder por tudo isso. Algumas escolhas - erradas ou tardias - podem ter agravado a situação ou não limitado os danos o suficiente, mas não há um verdadeiro responsável a quem pedir explicação por toda essa morte e destruição. E na ausência de respostas, também as palavras falham. No entanto, precisamos de palavras pelo menos tanto quanto do ar que o vírus tira daqueles que atinge.
Desta vez, a cura terá inevitavelmente efeitos colaterais muito pesados: estamos salvando vidas colocando outras em risco. A escolha entre pandemia e carestia é um dilema que não pode ser decidido, assim como toda escolha entre quem vive e quem morre. No momento, vigora o princípio de focar no perigo mais iminente, mas esse argumento não será válido por muito tempo: fome e solidão poderiam em breve matar tanto quanto o vírus. Não sabemos o que dizer: tudo parece incerto.
Tudo vai ficar bem, nos repetimos como um mantra. Mas agora sabemos que nem tudo ficará bem, pelo menos não para todos. O custo humano dessa história será muito alto para muitos, mas para alguns mais ainda. Também aqui falta a palavra em que nos havíamos apegado - "tudo ficará bem" - levada por uma coluna de caminhões militares carregados com caixões.
O que poderá nos restituir a palavra desse vazio de respostas? Nessa condição em que nos parece que tudo o que fazemos é errado ou, de qualquer forma, não será decisivo? Nesse massacre contínuo de ilusões, em que todo dia parece mais evidente que nem tudo vai dar certo no final?
Hoje, mais do que nunca, está claro para nós que a esperança não é uma paixão e nem um sentimento. É o resultado de uma decisão: de uma escolha. Hoje podemos escolher a esperança. Em relação ao que estamos vivendo, somos mais vulneráveis do que responsáveis: há mais coisas fora do nosso controle do que sob o nosso controle. E, no entanto, somos responsáveis por uma coisa: por nossa esperança.
A esperança não é a ilusão de que o mal não nos atingirá: a ilusão de não ser vulneráveis. É a confiança de que esse imenso absurdo pode fazer sentido: poderemos voltar a ter palavras. Mas desse sentido e dessas palavras seremos responsáveis.
Tudo isso terá um sentido se não tivermos desperdiçado o tempo, extremo, do isolamento e da quarentena.
Tudo isso terá um sentido se o empregaremos para trabalhar sobre nós mesmos, agora que as condições exigem que façamos as contas com a realidade de nós mesmos sem nenhum filtro social: a empresária, a trabalhadora, o zelador e o modelo estão igualmente sozinhos diante deles mesmos.
Terá sentido se o usarmos para trabalhar em nossas relações humanas, agora que aquelas sociais diminuíram.
Terá sentido se, cada um pelo que puder, contribuiremos para sonhar e projetar um mundo diferente: uma política diferente, uma economia diferente, uma Europa diferente e até uma ética diferente.
Uma ética que deverá estar à altura daqueles seres insuperavelmente vulneráveis e responsáveis que o vírus nos fez redescobrir que somos. Uma ética para os seres que não têm tudo sob o seu controle, mas que o que de bom podem fazer, eles têm que fazer: muito além do que os direitos de terceiros ou os ditames de uma regra podem exigir.
O que até ontem considerávamos supererrogatório - bom, mas não exigível - agora se tornou um dever diário aos nossos olhos: resposta necessária ao apelo dos mais vulneráveis e condição própria de viver como seres humanos. O mandamento do amor - o supererrogatório por excelência: o que ninguém pode exigir de você – desde sempre considerado válido apenas para as pessoas de fé, agora se impôs como centro vivo da ética: sine amore non possumus.
O final feliz pode não ser o que havíamos imaginado enquanto nos repetíamos, que tudo ficaria bem: somos vulneráveis. Mas outro final feliz é ainda possível e está em nossas possibilidades: deste somos responsáveis.
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“Como eu vos amei”. Menos não é mais suficiente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU