03 Abril 2020
A esperança cristã está em se saber acompanhado por um Deus compassivo, próximo das nossas feridas, que não faz vacilar o nosso pé, observa a miséria do seu povo.
A opinião é do teólogo e padre italiano Francesco Cosentino, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em artigo publicado em Avvenire, 31-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por que aconteceu conosco? Por que Deus não intervém para nos salvar?
O antigo grito, que desde sempre habita o coração do ser humano perante o mistério do sofrimento, é hoje a única oração possível.
Somos como Jó, que amaldiçoa o dia do seu nascimento, enquanto a maioria das chagas lhe rasgam a carne; somos como os apóstolos que, sacudidos por uma tempestade de vento e de ondas, gritam o seu protesto contra um Jesus que dorme tranquilamente: é possível que tu não te dês conta de nós? Acorda, por que dormes?
É nesses momentos que alcançamos a essência profunda da nossa fé, quando somos chamados a louvar e a servir a Deus, não dentro das consolações de uma vida, no fim das contas, abastada e no marco de uma religião burguesa tranquila e pacífica, mas quando somos jogados no calor do deserto e na noite escura da angústia, do medo, da dor e da incompreensão.
Justamente nesses momentos, quando conseguimos ver sementes de trigo que crescem onde tudo fala de galhos secos, captar pequenas luzes na noite, ver como Jeremias o pequeno ramo de amendoeira no coração do inverno, experimentamos aquilo que propriamente se chama “fé”. Mas contanto que a forma dessa esperança não tenha nada a ver com a ingenuidade de uma religiosidade infantil, com a atitude milagreira de quem, tomado pelo esforço de suportar o impacto da dor, se apega a eventos extraordinários ou, ainda, com o sentimento da fuga para não enfrentar o amargo duelo com o mal.
A esperança cristã, ao invés disso, reside em se saber e em se sentir acompanhado, a partir de dentro da dor, por um Deus humano e compassivo, que se faz próximo das nossas feridas, não deixa o nosso pé vacilar e continua sendo, mesmo hoje, o Deus que observa o miséria do seu povo e desce para libertá-lo (Ex 3,7-8).
Diante do não sentido, a oração pode se tornar um grito, que inquieta o infinito silêncio do céu. Uma oração de Jó, que abraça a dor de todos os crucificados da história e assume a postura plenamente humana de Jesus, que não “pula” a hora da prova, mas entra nela com angústia e medo, percorrendo a dramática pergunta que, neste momento, também reúne todas as nossas:
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Jo 20,17).
Enquanto o inimigo invisível multiplica os infectados, enquanto médicos e enfermeiros estão exaustos, e enquanto em Bérgamo desfila uma dramática marcha de militares que acompanham os caixões, a oração deve se fazer pergunta: é possível falar de Deus em uma unidade de terapia intensiva para o coronavírus? Qual Deus nomear neste Auschwitz de hoje? A qual Deus rezar quando se perde um pai em quem não se pôde dar uma carícia final?
Experimentamos aqui a ausência de Deus. Dias de deserto e de despojamento, noite escura da fé, semelhante àquela noite em que a noiva do Cântico sai para procurar o amado e não o encontra: “Em meu leito, durante a noite, procurei o amado de minha alma. Procurei-o, e não o encontrei” (Ct 3,1).
E é nessa experiência que descobrimos uma paradoxal proximidade com o ateu: “Existe em nós um ateu em potencial – escrevia o cardeal Martini – que grita e sussurra todos os dias as suas dificuldades em crer”.
Em maio de 2006, quando o papa Bento XVI foi a Auschwitz, ele fez ressoar o drama desta oração durante a noite: “Tomar a palavra neste lugar de horror, de acúmulo de crimes contra Deus e contra o ser humano que não tem comparação na história, é quase impossível – e é particularmente difícil e opressivo para um cristão, para um papa que vem da Alemanha. Em um lugar como este, as palavras desaparecem; no fundo, pode restar apenas um silêncio perplexo – um silêncio que é um grito interior a Deus: por que, Senhor, te calaste? Por que pudeste tolerar tudo isto?”.
Porém, essa oração concebida na dor não permanece sem ser escutada. Enquanto expressa o grito do nosso medo, ela nos purifica, acima de tudo, da imagem de um Deus que nos responde por mandato, que evita as nossas lágrimas, que intervém de cima para resolver os nossos problemas. Assim, saímos da interpretação supersticiosa e mágica da religião e aprendemos – como afirmava o teólogo alemão Metz – que Deus não é o tapa-buracos das nossas decepções, mas sim a razão da nossa esperança.
Essa oração concebida na dor também nos torna mais humanos e, portanto, mais compassivos e solidários com os outros. A dor escava dentro de nós. Na dificuldade e na escuridão, experimentamos a nossa fragilidade, de modo que abandonamos as máscaras fabricadas artisticamente para escondê-la e os substitutos da nossa sociedade de consumo para exorcizá-la.
Somos frágeis e aprendemos a bendizer aquilo que somos, tirando as vestes da onipotência: precisamos do outro, sozinhos não conseguimos, e a sua dor também é sempre a minha.
Mas a oração na dor nos aproxima, sobretudo, de modo único, da experiência de Jesus e da sua oração: “A minha alma está triste até a morte” (Mc 14,34). Aproxima-se para ele a hora da noite. Mas a noite do Cristo é única a seu modo: naquele Getsêmani, estão reunidas também todas as nossas noites, as trevas da história, as injustiças do mundo, as feridas dos pobres, os medos que muitas vezes nos habitam.
É naquela noite que nós podemos ver Deus justamente quando pensávamos que o tínhamos perdido; entrando na noite, de fato, Jesus nos revela quem é Deus: não alguém que faz teorias sobre a dor ou estabelece as suas culpas, mas sim o Deus que entra na noite, sofre-a contigo, acompanha o teu medo, deixa-se tocar e ferir. E se deixa pregar na Cruz, para que aquela noite se abra à luz de uma nova vida.
Essa luz chega inesperadamente, como o amanhecer da manhã de Páscoa. Pode significar o fim daquele sofrimento ou simplesmente o fato de ter recebido a graça de olhar para a vida de um modo novo.
O certo é que um milagre acontece e precisa de olhos de fé. Talvez ele já esteja acontecendo, se, no meio do sofrimento indescritível de muitos dos nossos irmãos doentes ou já mortos, está mudando o nosso olhar para as pessoas queridas e para as coisas, para os abraços perdidos e para o delírio de onipotência deste nosso Ocidente que já chegou ao fim da linha.
“Compreendam a hora da tempestade e do naufrágio – afirma o teólogo protestante Bonhoeffer –, é a hora da inédita proximidade de Deus, não do seu distanciamento. Onde todas as outra seguranças se despedaçam e desmoronam, e todos os pilares que sustentavam a nossa existência são arruinados um após o outro, onde tivemos que aprender a renunciar, é precisamente aí que se realiza essa proximidade de Deus, porque Deus está prestes a intervir, quer ser para nós sustento e certeza (...) Isso quer nos mostrar: quando você abre mão de tudo, quando perde e abandona toda a segurança própria, então você é livre para Deus e está totalmente seguro nele”.
Na hora da noite e da prova, então, mesmo dentro de uma oração sofrida, busquemo-lo ainda. “Levantemo-nos e percorramos a cidade, pelas ruas e pelas praças, procurando o amado da nossa alma” (Ct 3,1-2). E levantemos a cabeça, porque a nossa libertação está próxima.
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O vírus, a dor e o silêncio de Deus: quando a oração se torna um grito. Artigo de Francesco Cosentino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU