18 Janeiro 2020
"Convém recobrar a resposta de Dom Helder quando buscava analisar a essência e não a superfície. Se o que interessa é 'a ausência de roupa para vestir o nu, e não quem queira retirá-la', então percebe-se que a peça reduziu a expectativa da arte, perdeu sua autonomia e de quebra, tornou seus resultados politicamente frágeis, pois retira seu precioso véu", escreve Rafael dos Santos da Silva, professor da Universidade Federal do Ceará - UFC e doutorando em Sociologia na Universidade de Coimbra.
Certa vez, tentaram envolver Dom Helder Câmara em uma polêmica dirigindo-lhe a seguinte pergunta: “o que o senhor acha do topless?” Na sua sabedoria, ele respondeu: “estou preocupado com quem não tem roupa para usar. Mas quem tem e quer tirar eu não me importo”. Com esta altivez gostaria de propor observação quase analítica sobre o especial de natal do grupo Porta do Fundos. Sob esse ponto proponho concentrar-me nos aspectos sociológicos em que a questão fundamental se relaciona as dimensões da democracia e da política enquanto mediadoras da arte. Logo, antecipo, o que realmente me importa não é a roupa retirada, mas a ausência dela.
Inicialmente algumas questões precisam ser estabelecidas. A primeira passa por insistir que não se trata de oportunistas, mas de um grupo correto que vem ao seu modo tentando imprimir narrativas sociais, e por isso precisa ser respeitado. Depois, a análise é um recorte ao especial de 2019, focando-se exclusivamente nesse objeto. Essa peça se vale da sátira para propor uma releitura do cristianismo, utiliza o humor e o sarcasmo para estabelecer narrativas daquelas digamos... “oficial”. Ideia interessante, mas possui um erro crasso! Em tempo, cabe ressaltar a importância política de outros trabalhos do mesmo grupo, aquelas sim podem ser chamadas de arte. Portanto, a crítica que segue não visa atingi-los ou desmerecê-los. Ao contrário, é preciso ter cuidado para não os jogar aos leões e de alguma forma legitimar a perseguição e a violência de seus algozes.
Em seguida, tem-se a questão da censura. Sabe que toda censura é essencialmente ruim, pois tenta estabelecer a proibição pela força, sempre se valendo de métodos e técnicas arbitrárias a paralisar a circulação da informação. No fundo o objetivo é tolher aquilo que é mais básico em democracia: a liberdade de expressão. Na prática, há um pouco de cesarismo na cabeça de todo censor, porém ele nunca espera, mas sempre acontece é que tal atitude joga mais luz sobre o objeto censurado do que realmente o elimina. Sempre foi assim, desde a história da maçã no paraíso, até as tentativas policialescas sobre as drogas. Todas resultaram em desobediência.
Foi exatamente essa desobediência que me levou a assistir o vídeo em questão, pois antes da censura o evento não havia chamado minha atenção. Ao meu ver o vídeo não deturpa a essência do cristianismo, apenas coloca os personagens em outras posições das moralmente aceitas. Pura bobagem!
Em primeiro plano quero chamar atenção à dimensão contida na liberdade de expressão. Trata-se de um bem valiosíssimo e inegociável em qualquer contexto, sobretudo no estado que se pretenda democrático. Inegociável! Nesse ambiente, deve ser assegurado o pleno exercício da liberdade em todas as suas dimensões, incluindo a de se expressar. A sociedade moderna sempre buscou a liberdade para o centro e, portanto, sua referência em termos de civilidade. Aqui, a liberdade de expressão foi colocada como ícone e por assim dizer merece ser alimentada em todos seus sentidos, mas, atenção! Não em todos os seus níveis. Por quê? Porque, paradoxalmente, a democracia exige observar limites. Boaventura Sousa Santos nota que no Século XX a democracia foi muito utilizada para legitimar atos muitas vezes pouco democráticos. O liberalismo econômico, por exemplo foi quem mais apelou à democracia como forma a dar uma capa de verniz as suas tramas. Ditadores, africanos e sul-americanos perceberam, igualmente, essa possibilidade. Logo, é preciso ter em mente que nem sempre aquilo que colocamos na conta da democracia é de fato democrático.
O ponto alto da democracia consiste exatamente em estabelecer a tênue linha dos limites sociais. Amartya Sen credita à democracia o ambiente necessário para “preparar qualquer país” a enfrentar suas realidades. Isso não é fácil! Porém, se fosse diferente teríamos uma sociedade totalitária e não democrática, onde os limites seriam mediados pela força e não pelas pluralidades. Portanto, democracia não é ausência de fronteiras, mas a própria expressão da liberdade fruto do movimento político a partir do tecido social, capaz de estabelecer ao estado, em disputa, suas narrativas.
Noutro polo, tem-se a dimensão política da arte e nela a constituição do indivíduo que busca razão e emoção, mas também participação e emancipação. A relação entre arte e política se apresenta dinâmica, enquanto uma recorre à criação, a outra à repetição/ação; a primeira busca o absoluto, enquanto a segunda reclama o campo da concretude. Arte e a política se atraem e se repelem numa dança dialética para compor as tratativas sociais. Novamente Boaventura Sousa Santos atesta que “a arte sem a política é burra, e a política sem arte é pobre”. O autor chama atenção aqui para a instrumentalização da arte pelo mercado no exato limite em que esta se presta “a um mero desperdício da experiência humana”. Em outras palavras, o sociólogo induz que “se a arte não estiver comprometida com as inquietações sociais, assume apenas o papel de uma peça publicitária”, adotando outro caminho que pode levá-la a servir aos senhores da casa grande. Hitler foi quem melhor entendeu isso na primeira metade do século XX. Antes, o estado romano havia feito bem esse dever de casa.
A arte é acima de tudo a busca da imaginação, a possibilidade de ver além da questão determinada. Como bem retrata Benjamin: para ver a “arte não tem que se levantar o véu, mas antes elevar-se a intuição do belo”. Nesse sentido, bem retrata Byung-Chul Han, “o véu é mais essencial do que o objeto velado”. Logo a tarefa da arte sempre busca outros movimentos conduzindo o artista e o espectador a outras possibilidades sociais, ou seja, a arte se faz uma janela codificada a outra dimensão. Quando ela se nega esse caminho, perde sua autonomia, dá-se à manipulação do “gosto ou não gosto”, abre mão do belo e projeta uma janela para si mesma. Nesse quadro, a arte é apenas uma mercadoria, sem imaginação, nem conexão.
Na outra linha, a política, por ser prática, precisa recorrer sempre ao processo de imaginação, e assim fazer uso da arte a fim de criar um mundo possível. Quando essa ligação não ocorre, a busca pelo absoluto cede lugar ao controlador ideológico reduzindo de igual modo o papel do indivíduo a experiências sem sentido. Para Boaventura, esse movimento de separação ocorreu quando ciência moderna de base positivista abriu mão de outras experiências para “reduzir os sentidos”. Segundo o autor, com os sentidos reduzidos “a arte assume um caráter insidioso e apelativo”, virando um mero instrumento da indústria cultural que não tem poupado esforços para submeter as necessidades espirituais às necessidades materiais.
Dito de outra forma, a política sem arte já reduziu o presente digitalizando-o a partir do utilitarismo de mercado em que “os homens cosem apenas com suas retinas”, portanto sem sentido, sem escuta, sem tato, sem cheiro. Apenas com a visão.
Voltando ao Especial de natal de 2019 do grupo Porta dos Fundos, a partir das lentes acima fica a impressão de uma profunda desconexão entre arte e política. Não quero parecer grosseiro, mas percebi apenas merchandising. Me parece que o marketing falou mais alto do que a possibilidade do novo, próprio do encontro entre arte e política, que por sua vez fora reduzido a buscar a mera polêmica.
Há todo direito desses profissionais fazer isso, independente da minha fé. De forma sincera ver Jesus deste ou daquele jeito, com estas ou com aquelas opções, definitivamente não abala meu credo. O centro da questão é outro! Passa por entender que a peça abandonou a possibilidade de fazer arte para fazer negócio. Negou a tarefa de apresentar outro Jesus daquele supostamente conhecido. Aqui ao meu ver está o grande erro do vídeo, ao optar por satirizar o conhecido sem apresentar o novo, portanto, vazio de conteúdo.
Em síntese quero insistir em três elementos finais. O primeiro consiste no fato da democracia ter sido manipulada no seu conceito mais básico de liberdade de expressão para ceder às intempéries da aceitação/negação entre gosto ou não gosto. Em segundo lugar, vem o ponto de vista sociológico; é preciso notar a ausência de resultados positivos para a sociedade, apenas a polêmica, o exagero e o atrito. Em terceiro lugar, a produção em massa – ao modo taylorista – corrompeu a proposta original de apresentar um Jesus diferente, escorregando na despolitização da arte.
Sob meu ponto de vista – que é apenas a vista de um ponto - ao propor uma releitura do cristianismo dessa forma, o grupo abandonou a possibilidade de fazer arte com política e negociou os resultados com o mercado numa verdadeira aposta na polêmica para vender mais... Eis aí o erro!
Finalmente, convém recobrar a resposta de Dom Helder quando buscava analisar a essência e não a superfície. Se o que interessa é “a ausência de roupa para vestir o nu, e não quem queira retirá-la”, então percebe-se que a peça reduziu a expectativa da arte, perdeu sua autonomia e de quebra, tornou seus resultados politicamente frágeis, pois retira seu precioso véu.
Literalmente, a arte saiu pela porta dos fundos.
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Democracia e Política: quando a arte sai pela porta dos fundos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU