Equador. Três lições da trágica semana de outubro

Protesto indígena no Equador. | Foto: Jorge Cano/Wambra.ec/Agência Pública

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19 Novembro 2019

Há um mês a Pontifícia Universidade Católica do Equador – PUCE acolheu em seu campus, em Quito, indígenas que participavam da Greve Nacional. Compartilhamos as reflexões feitas pelo reitor, o jesuíta Fernando Ponce, à comunidade universitária, sobre essa experiência, publicadas por CPAL Social, 13-11-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Eis a reflexão.

Acabamos de viver uma semana trágica que desconcertou a todos nós. Há ainda muito por assimilar, e muito mais por corrigir como país. Pelo momento, quis compartilhar com vocês três lições deixadas por essa crise, a título pessoal e sem comprometer a PUCE.


O reitor da PUCE, Fernando Ponce, recebendo os manifestantes. Foto: Facebook PUCE

Uma primeira lição é que a autêntica solidariedade nos absorve e é exigente, porém é a única via para a humanização. Ao início da semana fomos muito claros ao definirmos as características das pessoas que queríamos acolher. Nos propusemos a aceitar mulheres, crianças, idosos e outras pessoas vulneráveis de Zumbaha. Pelos ocorridos, no entanto, tivemos que abrir ainda mais a porta do albergue. Acabamos recebendo homens e jovens também, outras comunidades de Cotopaxi, e comunidades de outras províncias, muito além de nosso plano inicial. Essa experiência nos transbordou em momentos; ainda guardo em minha memória o portão de entrada com tanta gente querendo entrar e nós buscando filtrar com vários mecanismos. Porém, ao mesmo tempo, foi uma experiência humanizadora e transformadora. Terminamos recebendo aqueles que pediam, e não mais aqueles que havíamos decidido receber. A solidariedade transbordou, porém nos tornamos mais humanos, creio eu.

Essa experiência de abertura de portas e de corações reflete o essencial da parábola do bom samaritano, que se encontra em um giro narrativo que passa muitas vezes desapercebido. Quando os fariseus querem seguir provocando Jesus, eles lhe perguntam: E quem é o meu próximo? Ou seja, como o defino? Jesus narra então a parábola e depois dá sua lição: então, qual dos três (levita, sacerdote e o caminhante da Samaria) se portou como próximo do homem que foi assaltado pelos ladrões?

Segundo esse Evangelho, existe uma diferença entre definir o próximo que queremos ajudar, e fazer-se próximo do verdadeiramente abatido, isso é, aproximar-se a ele deixar-se interpelar e redefinir-se por sua situação. O se aproximar, em vez de somente ajudar, é entrar em contato e em relação, em vez de somente dar serviços, e é o que, a meu ver, nos aconteceu e nos tornou mais humanos.

Uma segunda lição provém de outra perspectiva. Desde o ponto de vista da política, com nossa zona de paz e acolhida humanitária contribuímos ao exercício da democracia no país. Em teoria, todos nós equatorianos somos iguais em direitos, todos temos o mesmo direito de opinar, de manifestar nossa opinião publicamente, de participar ativamente na construção do país, da saúde, educação, etc. Na prática, indígenas e camponeses, para mencionar somente eles, não contam com as condições necessárias para exercer esses e outros direitos. Nós equatorianos somos iguais em direitos, porém com desiguais oportunidades e condições para exercê-los.

Ao oferecer abrigo, promovemos a igualdade de oportunidades para esse grupo de cidadãos, por alguns poucos dias. Em pequena escala, fizemos o que todo Estado deveria buscar fazer permanentemente, e em relação com todos os direitos: a igualdade de oportunidades, pilar básico de qualquer democracia moderna.

Alguns nos criticaram pelo que fizemos, porque, dizem, apoiamos os protestos. O que fizemos foi facilitar o direito de manifestação daqueles que foram, por séculos, excluídos do debate público e da construção de um país que deveria ser um projeto republicano, um projeto comum. Condenamos a violência e o vandalismo desses dias, e nos abstemos como universidade de pronunciar sobre a razoabilidade das medidas econômicas decretadas pelas autoridades governamentais. Porém não podíamos seguir o passo como o sacerdote e o levita da parábola do bom samaritano.

Finalmente, chegou o momento de fechar um capítulo, e em seguida abrir outro do mesmo livro da vida. O país necessita caminhar para a reconciliação nacional, e a universidade pode contribuir a esse objetivo. Nesses dias nos entristeceu o grau de violência que se abateu sobre a cidade e nos indignou a intensidade do racismo e o ódio que se espalhou por todo o país. Alguns creem que essa semana trágica nos fraturou como país, quando a verdade é que o país carrega fraturas e injustiças estruturais há séculos, que hoje voltaram a ser sentidas. Não é um exagero dizer que o Equador nasceu mal feito em 1830.


Foto: Facebook PUCE

Como universidade confiada à Companhia de Jesus e, obviamente, como universidade católica, estamos chamados a trabalhar de acordo com nossas diretrizes globais (Preferências Apostólicas Universais), as quais dizem: “caminhar junto aos pobres, os descartados do mundo, os vulneráveis em sua dignidade, em uma missão de reconciliação e justiça”. O fizemos com a acolhida humanitária, e agora devemos fazê-lo mediante nosso compromisso pela reconciliação nacional e segundo nossa especificidade de comunidade acadêmica.

Um grupo de docentes que colaborou no albergue está preparando uma proposta concreta que lhes será comunicada logo e que, espero, suscite seu interesse e sua adesão.

Para que essa semana de outubro não volte a ocorrer, meditemos e apliquemos as sábias palavras do papa Paulo VI: “Se queres a paz, lute pela justiça”.

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