13 Novembro 2019
Advogada, militante feminista, produtora cultural e empresária do Racionais MC’s, o maior grupo de rap do país do qual seu marido Pedro Paulo – como se refere a Mano Brown – é o principal integrante. Essa é uma breve apresentação de Eliane Dias, menina nascida nos fundos de um barraco, que morou até oito meses de idade na rua, cresceu na periferia do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, e que em uma lata de lixo achou o livro que transformaria sua vida.
A reportagem é de Júlio Carignanoé, publicada por Porém.net, 11-11-2019.
Na atualidade é uma das principais vozes do empoderamento da mulher negra no Brasil. Conciliando a advocacia, a militância e o cuidado com a família e a carreira do quarteto mais valioso do rap nacional, a ativista ainda encontra espaço na agenda agitada para percorrer o país com palestras voltadas à juventude periférica. Na semana passada esteve em Curitiba, em um bate papo com estudantes do Colégio Estadual Santos Dumont, na Vila Guaíra.
Eliane Dias e os Estudantes do Colégio Santos Dumont em Curitiba (Foto: Pedro Augusto Genra Carvalho)
O evento foi organizado pelo Centro de Promoção de Agentes de Transformação (CEPAT) em parceria com o Grêmio Estudantil do colégio. A palestra com a ativista foi a principal atração de uma manhã que teve muita poesia e apresentações musicais de moradores da comunidade. Por lá ela falou de sua história, deu conselho aos jovens, indicou leituras – entre elas Rosa Parks, Malcolm X e Angela Davis – e falou da importância da educação e sua luta para formar-se em Direito.
Citou por diversas vezes aquela que é sua maior inspiração. Sua mãe Maria Aparecida Dias, uma empregada doméstica que foi expulsa de casa pelos pais quando estava grávida de Eliane. Segundo a ativista, sua mãe era uma feminista mesmo sem saber. “Minha mãe me ensinou a ser livre, me ensinou que as mulheres devem tomar rédeas de sua vida. Que não precisamos ser a dona Maria do seo Juca”, diz Eliane em analogia com nomes de pessoas que fizeram parte de sua infância.
Dona Maria e seo Juca eram seus vizinhos. Quando tinha 9 anos, Eliane saia com seo Juca para recolher lavagem para porcos. Foi numa dessas saídas que ela encontrou em uma lata de lixo seu primeiro livro, a obra Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, escritora que viveu boa parte de sua vida na favela do Canindé, em São Paulo, e uma das mais importantes autoras da literatura periférica. Foi essa obra que despertou a vontade de Eliane em cursar advocacia.
Foi a partir deste livro que Eliane Dias buscou “entender as palavras”, com ela diz. “Aos 9 anos eu li o livro da Carolina. Eu queria entender as palavras. Quando a gente entende, quando a gente sabe, quando a gente ouve, quando a gente enxerga as coisas, tudo fica mais fácil e que a gente pode mudar as coisas”.
Esse despertar ao entendimento fez com que Eliane fosse a primeira pessoa de sua família a ter um diploma do ensino superior. “Somos em mais de 300 pessoas na família toda. Eu fui a primeira a entrar em um faculdade. A minha filha foi a primeira da família a entrar em uma universidade pública”, orgulha-se.
Na sua fala, Eliane confessou que a escolha de cursar advocacia não agradou em um primeiro momento seu companheiro. E foi justamente em uma viagem de Brown com os Racionais MC’s à Alemanha, que ela matriculou-se no cursinho do Núcleo de Consciência Negra da USP, que era gratuito. Ela passou seis meses estudando lá e posteriormente concluiu a graduação em uma faculdade particular em São Caetano, no ABC paulista.
Sua atuação política iniciou em 1994. Antes de trabalhar no SOS Racismo, na Assembleia Legislativa de São Paulo, unidade a qual foi a primeira mulher negra a coordenar, ela tinha atuado na assessoria da deputada Leci Brandão, do PCdoB. “Eu adoro política. Política não é para se abominar, política é para se estudar. Se você não gosta do que está ai, mude o que está aí, mas não se afaste da política”.
Defensora dos direitos da população negra, Eliane afirma que o racismo no Brasil é estrutural e por isso que ele se perpetua. “Não temos que se matar porque um segurança seguiu a gente dentro de um shopping. Não temos que se matar porque escolheram a mina branca ao invés da gente na vaga do emprego. O problema não é nosso, a gente não precisa se mutilar e se auto excluir por um problema que não é seu. Se a pessoa é racista o problema é do racista, não é da gente. A pessoa racista é sobretudo uma pessoa burra”.
A ativista usa a expressão “hackear o sistema” como alternativa a esse racismo estrutural. “Como se hackeia o sistema? Ocupando o espaço que o sistema não quer que eu ocupe. Recusando o que o sistema unicamente me oferece. O rico se utiliza de todo nosso poder qualificado, nosso poder de trabalho, nossa mão de obra. E o sistema se utiliza do racismo. Por isso precisamos hackear o sistema, ocupando o lugar que ele não quer que a gente ocupe. Daqui precisam sair médicos, médicas, precisa sair advogada, precisa sair prefeito, prefeita, deputado, deputada”, apontou.
Indagada sobre quem manda no Brasil atualmente, ela é enfática: “Quem manda no país é classe C, é a mulher. Só precisam ter consciência disso. Como é que muda isso? Votando em mulher, votando em preta, votando em preto. Mudando o sistema, hackeando o sistema. Sendo mais alegre, sendo mais feliz, andando junto”.
E sem fugir de nenhum assunto ao qual foi questionada pela plateia, Eliane Dias não deixou de se manifestar sobre o atual momento do país. “Não é um momento fácil, mas vamos superar. Quando o Racionais foi formado vivíamos na época da ditadura militar e saímos daquilo”.
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Empresária dos Racionais, Eliane Dias fala em ‘hackear o sistema’ para combater o racismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU