07 Outubro 2019
"Um brasão cardinalício se torna uma hermenêutica eclesial e cultural de primeira qualidade. E você pode exibir todos os terços do mundo, pode invocar todos os corações imaculados que conhece, mas essa imagem se implanta na sua carne e não lhe dá mais trégua".
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 06-10-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um dos pontos firmes sobre os quais é possível reconhecer a vitalidade ou a estaticidade, a fecundidade ou a aridez de uma tradição é constituído pela renovação e pelo enriquecimento dos seus símbolos fundamentais.
A cruz, o cordeiro, a porta, a água, o pão, o vinho e muitos outros são símbolos cristãos. Eles são muito antigos e têm uma grande autoridade. Mas são símbolos por dois motivos: porque significam uma fé, uma transcendência e porque permanecem enraizados na cultura, na imanência. Assim, mantêm essa autoridade não simplesmente “repetindo a si mesmos”, mas também sofrendo novas leituras, curvando-se a novas histórias, entrando em novas vidas e relendo possíveis novas aventuras.
Permanecem como símbolos se permanecem abertos a novas leituras e possibilitam novas aventuras. Permanecem como símbolos se soubermos aprendê-los, desaprendê-los e reaprendê-los, como diz bem um texto do Instrumentum laboris para o Sínodo sobre a Amazônia (IL 102).
Foi esse o pensamento que saltou na minha cabeça assim que conectei as duas imagens que se destacam acima deste meu texto: o brasão do novo cardeal [Michael Czerny, SJ] e o barco dos migrantes. No brasão, retoma-se, em forma estilizada, aquela imagem da realidade cotidiana. Essa aproximação inesperada me fez pensar no imaginário eclesial da “barca”, que é muito antigo e pesca nos textos bíblicos, e que os Padres utilizaram pelo menos com dois grandes protótipos: a arca de Noé e a barca de Pedro. Uma interpretação penitencial e uma interpretação eclesial acompanharam durante séculos o imaginário e a simbólica da barca, como forma plástica de relação com Cristo e com a Igreja.
Mas algo novo ocorre no brasão do cardeal Czerny. Obviamente, tudo o que foi permanece como substrato, como linguagem que sustenta a imagem. Mas a própria imagem, embora estilizada, não é simplesmente uma barca, mas sim um barco com pessoas, com refugiados, com migrantes. Eis a novidade: a barca se torna não apenas “salvação do pecado”, não só “identidade eclesial”, mas também “provocação à acolhida”. Demanda de porto. Demanda de desembarque.
Brasão do novo cardeal, Czerny (Foto: Divulgação)
Acho que, pela primeira vez, olhando para o brasão do cardeal Czerny, dei-me conta de como mudou o nosso olhar sobre o fato de viajar (por mar, por terra ou por ar). Tudo já é programado. Você sabe os horários, os destinos, os lugares, os tempos, as modalidades. Você tem “navegadores” que lhe dizem continuamente o caminho, os desvios, as alternativas, os trechos de lentidão, os tempos de chegada. Até as peregrinações já são feitas com ar-condicionado e com uma chegada diretamente no destino.
No brasão do cardeal, estão os últimos peregrinos. Aqueles que não sabem se chegarão, aonde chegarão, a quem chegarão. Mas têm uma meta que é guardada pelo desejo e que espera na acolhida. Confiam-se a uma acolhida possível, mas não garantida. A viagem, ao longo dos séculos, sempre teve essa característica “migrante”. Todo viajante se tornava, por um período curto ou longo de tempo, um migrante. Todos os que viajavam, entravam na condição de migrantes.
Contam que J. S. Bach, para ir escutar o grande Buxtehude, no início do século XVII, fez uma viagem de quatro semanas (que se tornaram quatro meses), sozinho, a pé, sem qualquer garantia, para chegar a Lübeck, percorrendo 400 quilômetros para poder descobrir a arte do grande organista.
Hoje, somente os migrantes viajam assim. O nosso esforço para reconhecê-los e para acolhê-los depende de uma memória curta e de uma indiferença longa. Acolhê-los torna-se um elemento distintivo, profético, evangélico, em uma cultura da autodeterminação que elimina qualquer inconveniente e vai diretamente à meta, com uma regularidade imediata e controlada. Sem memória e com indiferença.
“Suscipe” está escrito na parte de baixo. Esse é o lema de Inácio e do cardeal jesuíta. Pode-se traduzir: tome, assuma, acolha, mas também se encarregue, mas também assuma sobre si mesmo, mas também sustente, mas também suporte. O sujeito a que se dirige, o destinatário do imperativo é Deus, mas não é só Deus. Um Deus contagioso permite ler a barca como “bote”. E a Igreja como porto. E as simbólicas se invertem. E a fé se renova.
Um brasão cardinalício se torna uma hermenêutica eclesial e cultural de primeira qualidade. E você pode exibir todos os terços do mundo, pode invocar todos os corações imaculados que conhece, mas essa imagem se implanta na sua carne e não lhe dá mais trégua. Suscipe. Sume.
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A barca do cardeal: desaprender e reaprender os símbolos. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU