20 Junho 2019
Uma primavera atmosférica bizarra, este ano, com vislumbres felizes de verão e súbitas geadas invernais; e assim – para continuar com a comparação - nos parece a atual época da Igreja católica romana, atravessada por eventos luminosos, mas também travada por resistências, ou por pusilanimidade, no caminho da conversão ao Evangelho e da implementação substancial do Concílio Vaticano II. Sem pretender ser exaustivo, relatamos aqui e comentamos alguns dados que, parece-nos, confirmam nosso barômetro.
A reportagem é de Luigi Sandri, publicada por Confronti, 04-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Comissão Teológica Internacional (CTI) - criada por Paulo VI em 1969, atualmente composta por cerca de trinta teólogos/as e liderada pelo cardeal Francisco Ladaria Ferrer, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé - nos anos 2014-18, primeiro através de um subcomitê de dez de seus membros, e depois na plenária da própria CTI, abordou e, depois aprovou por maioria, o tema A liberdade religiosa para o bem de todos. Abordagem teológica aos desafios contemporâneos. Finalmente, em 19 de março de 1919, o papa autorizou a publicação do texto, que foi disponibilizado em abril.
O documento volumoso (150 mil toques) examina a doutrina católica sobre o assunto: antes do Vaticano II, depois a declaração Dignitatis humanae (Dh) do Concílio; então os desenvolvimentos subsequentes, em um mundo profundamente alterado. O texto constitui uma ferramenta muito útil para aqueles que desejam aprofundar o problema examinado. No entanto - em nossa modesta opinião - é reticente quando retrata os séculos em que a Igreja romana, a começar pelo papado, não admitia o princípio da liberdade religiosa e com extrema severidade punia os dissidentes.
Afirma: “Dh revela um amadurecimento do pensamento do Magistério sobre a natureza própria da Igreja em conexão com a forma jurídica do Estado. A história do documento demonstra a importância essencial dessa correlação para a evolução homogênea da doutrina, devido a mudanças substanciais do contexto político e social em que se transforma a concepção do Estado e sua relação com as tradições religiosas, com a cultura civil, com a ordem jurídica e com a pessoa humana. Dh atesta um progresso substancial na compreensão eclesial dessas relações devido a uma mais profunda inteligência da fé, que permite reconhecer a necessidade de um progresso na exposição da doutrina" [n. 14].
"Uma certa configuração ideológica do Estado, que interpretara a modernidade da esfera pública como emancipação da esfera religiosa, havia provocado o Magistério de então a condenar a liberdade de consciência, entendida como legítima indiferença e arbítrio subjetivo em relação à verdade ética e religiosa ... A primeira reação da Igreja é explicada a partir daquele contexto histórico em que o cristianismo representava a religião do Estado e a religião de fato dominante na sociedade ocidental" [15].
Escrevendo assim se fotografa como era a situação, quase legitimando as condenações de Gregório XVI e Pio IX no século XIX definiram deliramentum (loucura) a ideia daqueles que, depois do Iluminismo e da Revolução Francesa, apoiavam o direito à liberdade religiosa. Mesmo assim, já naquela época, mesmo dentro da Igreja romana, havia pensadores que consideravam justas as afirmações condenadas pelo magistério; mas os papas os ignoraram. Além disso, ampliando a discussão, nos perguntamos: por que o texto de 2019, cinquenta anos depois do Vaticano II - que, sobre o assunto, admitiu o mínimo - não ousa nomear os horrores das fogueiras contra os "hereges", partindo do pressuposto implícito de que "a verdade [aquela estabelecida pelas autoridades da Igreja] tem todos os direitos, o erro nenhum?" Claro, hoje não podemos julgar o passado com nossas categorias; contudo, depois que na Genebra de João Calvino, em 27 de agosto de 1515, o espanhol Miguel Serveto, acusado de negar o dogma trinitário, foi enviado para a fogueira, o teólogo reformado Sébastien Castellion protestou: "Matar um homem não é defender uma doutrina, é matar um homem”.
Palavras análogas foram ditas, a respeito da Inquisição, por pensadores católicos. Portanto, mesmo "naqueles tempos" havia aqueles que entendiam. Mas o poder eclesiástico ignorou os profetas. Certamente, há casos em que as mudanças, mesmo doutrinárias, são o resultado de um "desenvolvimento homogêneo". Mas a CTI reafirma um "dogma" da apologética católica: no magistério sempre houve "desenvolvimento coerente", e nunca erro, ruptura ou salto substancial. No entanto, entre a fogueira e o respeito pela liberdade de consciência, há um abismo insuperável.
Quando, em março de 1976, a junta militar tomou o poder em Buenos Aires com o objetivo declarado de combater o perigo do comunismo, muitos bispos argentinos acolheram positivamente o golpe; outros, prudentemente, ficaram em silêncio; outros ainda, em grande silêncio, tentaram ajudar os presos políticos; muito poucos se opuseram efetivamente. Então a Diocese de La Rioja era liderada pelo D. Enrique Angel Angelelli, conhecido por seu empenho em defender os direitos sociais de seu povo: por isso, uma das primeiras decisões da ditadura foi eliminar aquele prelado "subversivo" - com uma emboscada, realizada em agosto de 1976, porém disfarçada como um acidente de carro. Mas, depois que o regime caiu e a legalidade retornou em 1983, o "caso Angelelli" foi reaberto, e um tribunal condenou à prisão perpétua os assassinos do bispo.
Francisco apressou a beatificação de Angelelli (e três de seus amigos que sofreram semelhante sorte cruel): e assim, em 27 de abril, o prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, o cardeal Giovanni Angelo Becciu, presidiu o rito em La Rioja ad hoc.
Mas a decisão papal, bem recebida pela maioria do episcopado argentino, foi contestada por alguns bispos, há sua época a favor da junta militar (que - como muitos sabem, mas nem todos os bispos argentinos sabem - organizou, entre outras coisas, a eliminação física de trinta mil pessoas desaparecidas).
Em vista da beatificação, o ex-vigário argentino castrense, monsenhor Antonio Baseotto, disse: "Se Angelelli tivesse sido morto pelos militares, não teria sido por causa de sua fé, mas por seu empenho em favor das forças da esquerda". E Héctor Aguer, arcebispo emérito de La Plata: "Eu não entendo como seja possível declarar ‘mártir’ e beatificar Angelelli, de quem não se sabe com certeza como morreu, enquanto o mesmo não é feito com o filósofo Carlos Sacheri, morto em um atentado - ao sair da missa - porque denunciava a infiltração marxista na Igreja”. (NB: foi a magistratura argentina, não a Igreja, que estabeleceu que Angelelli foi morto; Sacheri, católico conservador, foi assassinado em 1974 por membros do ERP - Ejercito revolucionario del pueblo).
Em tal contexto - até os católicos argentinos, sobre o assunto, estão divididos - o papa fez uma escolha forte e clara. No Regina Coeli, de 28 de abril, recordou o bispo e os outros três: "Esses mártires da fé foram perseguidos por causa da justiça e da caridade evangélica. Que seu exemplo e sua intercessão sustentem especialmente aqueles que trabalham por uma sociedade mais justa e solidária. Uma salva de palmas para os novos Beatos”.
"Vossas Eminências, Vossas Beatitutes, Vossas Excelências, por meio desta carta, dirigimo-nos a vós com dois objetivos: o primeiro é acusar o Papa Francisco do crime canônico de heresia; o segundo, é de exortar-vos a tomar as medidas necessárias para enfrentar a grave situação que implica a presença de um papa herético ... medidas que geraram uma das piores crises da história da Igreja católica".
Abre-se assim a carta aberta que dezenove católicos - duas mulheres e dezessete homens - de vários países, a maioria deles especialistas em teologia, em 30 de abril de 2019, festa de Santa Catarina de Siena, dirigiu a todo o episcopado católico. Por que o papa seria "herético"? Porque ele compartilhou a tese de Martin Luther; e por que na exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia (2016) se opõe – eles sentenciam - ao magistério da Igreja, ao Concílio de Trento e ao ensinamento dos papas Wojtyla e Ratzinger.
O apelo teve - em nossa opinião - um eco exagerado. De fato, na prática, já havia sido "antecipado" por iniciativas semelhantes, que sugeriam a acusação de "heresia". Em 19 de setembro de 2016, quatro cardeais [Walter Brandmüller, Raymond Burke, Carlo Caffarra e Joachim Meisner] expressaram ao papa alguns dubia (dúvidas) que, sem falar em heresia, consideravam inconciliáveis com o magistério anterior a possibilidade, que emergia do texto de 2016, de admitir à Eucaristia, caso a caso e após cuidadoso discernimento, pessoas divorciadas e recasadas (chamadas d&r). Depois, em 2017, três bispos do Cazaquistão afirmaram: "A hipótese do Papa representa uma alteração substancial da bimilenar disciplina sacramental da Igreja. Além disso, uma disciplina substancialmente alterada acabará por alterar também a doutrina correspondente".
Também em 2017, em abril, uma convenção romana dedicada a "esclarecer as coisas sobre Amoris laetitia" passava perto da acusação de "heresia" a Francisco; depois, em julho, cerca de quarenta leigos católicos dirigiram ao papa uma Correctio filialis de haeresibus propagatis (correção filial devido à propagação de heresias), que chegaria a duzentas e cinquenta assinaturas. A iniciativa de 2019 insere-se nessa tendência. O leitmotiv é sempre o mesmo [para aqueles que gostariam de se aprofundar, sugiro um livro meu - ver pag. 45]: Francisco diz "sim" onde todos os 42 papas que se sucederam desde Pio IV, que encerrou o Concílio de Trento, até Bento XVI, disseram "não".
Consideramos que o papa gaucho agiu bem, imprimindo uma virada teológica e pastoralmente honesta, embora clamorosa, pois está na linha do Evangelho (e do Concílio de Niceia, que no entanto ele nunca cita expressamente). No entanto, é surpreendente que quase toda a mailing list do mundo teológico italiano não evidencie a impressionante "descontinuidade" entre ele e seus predecessores imediatos.
Nós também estamos convencidos de que aqueles/as que acusam o papa reinante de propagar "heresias", amontoem considerações razoáveis com distorções capciosas, simplificações históricas, curtos-circuitos teológicos e objetivos políticos "reacionários".
E, portanto, compartilhamos as críticas contundentes que o teólogo Giuseppe Ruggieri dirige a eles (Repubblica, 11 de maio). É sábio, no entanto, calar sobre a grande mudança realizada por Francisco que, em nome do Evangelho, tem ultrapassado reiteradas normas doutrinais/pastorais magisteriais que o contradiziam? Um silêncio tão embaraçoso, talvez escolhido para dourar uma pílula amarga para os "tradicionalistas", acaba por reforçar a obstinação dos modernos cruzados, e fortalece seu desejo de cisma e de destruição da própria alma do Vaticano II.
Esses senhores afirmam: "Entre estabelecer (Wojtyla + Ratzinger) que d&r podem viver juntos, pelo bem dos filhos, mas como irmão e irmã e, em vez disso (Bergoglio), esconder que eles, caso a caso, possam viver maritalmente, e aceder à Eucaristia, não há "desenvolvimento homogêneo", mas uma divergência insuperável". Eles dizem a verdade. De fato, estamos diante - se as palavras têm sentido - de uma insuperável contradição do magistério que, finalmente, se converte ao Evangelho. Por que, portanto, não expressar a boa notícia?
Falando em geral, o teólogo alemão Michael Seewald no Concilium (1/19) critica um magistério “encapsulado na ideologia da continuidade”, que ... “tem duas estratégias: ou uma inovação é negada como inovação e sugere-se que desde sempre se ensinou o que se ensina hoje, ou uma posição que não mais sustentável é largada em silêncio, na esperança de que ninguém a perceba”.
Há um mês (5-7 de maio) o papa visitou a Bulgária e o norte da Macedônia. Na tradicional coletiva de imprensa na viagem de volta, ele falou sobre a mulher-diácono; tema que melhor aprofundou no dia 10, ao se encontrar com mais de oitocentas superioras gerais de congregações religiosas (Uisg). Em 2016, justamente por sugestão daquele grupo, montou uma comissão de estudo - seis mulheres e seis homens - sobre o diaconato das mulheres, "especialmente em relação aos primeiros tempos da Igreja". Agora, no avião e depois respondendo a uma Irmã da UISG, disse que os/as membros da comissão por enquanto não chegaram a um acordo sobre um quesito decisivo: nos primeiros séculos, as "diaconisas" recebiam uma ordenação sacramental, análoga àquela fornecida para os homens, ou não? Especificando: "No caso do diaconato devemos procurar o que havia no início do Apocalipse, e caso exista, fazer com que cresça e chegue... Se não havia algo, se o Senhor não quis o ministério, o ministério sacramental para as mulheres, não dá”.
Tendo fracassado a comissão de 2016, outra vai resolver o enigma? É difícil esperar que se possa sair, assim, de um beco sem saída. No entanto, no Evangelho, há indícios de que o corpo vivo da Igreja poderia considerar fundamento adequado, não tanto para "diaconisas", mas para admitir as mulheres a todos os ministérios na Igreja, sem exceção, superando o conceito arraigado de "sacerdócio" (estranho, como defendem muitos exegetas, ao pensamento de Jesus). E o fundamento é o mandato de Jesus Ressuscitado a Maria de Magdala, que estivera ao seu lado quando estava morrendo na cruz: "Anunciai a minha ressurreição aos discípulos". Não é, portanto, com a pesquisa histórica sobre "diaconisas" (embora muito útil - como a referência a Febe, em Romanos 16.1 - mas, muitas vezes, inadequada) que se resolve o problema Igreja/mulher; precisamos desencavar o input evangélico que poderia dar nova luz à questão e fazer com que a Igreja romana dê o grande salto. De fato, é razoável pensar que quem recebeu de Jesus o mandato para anunciar a todos/as a ressurreição, não possa presidir a celebração da Ceia do Senhor?
Não uma comissão, e nem mesmo um papa sozinho poderá ousar tanto. Cabe ao povo de Deus ousar, mesmo que existam aqueles que, ligados às ideias de Bento XVI, bispo de Roma emérito (cuja estratégia de obstrucionismo foi abordada na última edição de Confronti) se oporão vigorosamente a essa nova prática. Mas ... no pasaran. Finalmente, caberá a um Concílio - com "padres" e "madres" - colocar o selo nessa revolução evangélica.
No dia 11 de maio, o cardeal esmoleiro, Konrad Krajewski, em Roma, quebrou os lacres – embora colocados, no dia 6 do mês, por autoridades municipais legítimas a usuários considerados "inadimplentes" em 319 mil euros - que impediam que os geradores iluminassem o prédio do Spin Time Labs, ocupado por 450 pessoas, incluindo 98 crianças. O cardeal disse que estava disposto a aceitar todas as consequências de sua ação. É o sinal de que Francisco envia para casos semelhantes em todos os lugares?
No entanto, o Vaticano não aplaudiu outra admirável iniciativa. Maria 2.0, é um site católico, aparentemente de natureza devocional, na verdade um lugar virtual de conexão, e de estímulo, lançado por grupos de mulheres alemãs que propuseram "a greve da missa" entre os domingos 12 e 18 de maio. A Liga das Mulheres Católicas Alemãs (Kdfb) e a Comunidade das Mulheres Católicas da Alemanha (KFD) solicitaram ao episcopado de seu país que não ignore o "importante sinal". "Sem a gente a Igreja fecha" foi outro slogan da manifestação: ela previa que naquela semana as mulheres interrompessem todo o serviço voluntário nas atividades paroquiais e que, vestidas de branco, no domingo ficassem na praça da igreja.
Elas também lançaram palavras de ordem precisas (bem vistas inclusive por alguns bispos): o fim radical de violências sexuais do clero contra as mulheres e a "admissão das mulheres em todos os ministérios eclesiais".
A Alemanha não é o mundo, e aqueles amáveis protestos hoje são elitistas; no entanto, acreditar que o que aconteceu lá foi apenas uma andorinha que não faz verão, significaria ignorar uma onda que corre o risco de se tornar um tsunami. Mas nos agrada esperar que a próxima temporada eclesial seja um verão cheio de colheitas. Caracterizado pela redescoberta de Maria de Magdala.
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Entre inverno e primavera, à espera de Maria de Magdala - Instituto Humanitas Unisinos - IHU