23 Mai 2019
Em um pequeno estúdio repleto de livros na Villa Crespo, o ensaísta Alejandro Grimson busca tomar um respiro e continuar com todos os tipos de projetos. Com esforço, publicou um trabalho que reúne variados pontos de vista sobre o peronismo, a grande invenção argentina do século XX, que não apenas persiste, como também marca os ritmos e impulsos do país e dos diferentes peronismos que hoje coexistem em todo o país.
A atualidade política o supera e convoca. ¿Qué es el peronismo? (Siglo XXI) é o título do livro que escreveu e com o qual interpreta 75 anos de história. Após pesquisar culturas políticas, movimentos sociais, processos migratórios e áreas de fronteira, e também explorar os mitos da argentinidade, Grimson entra no grande mistério peronista para entender um partido, um movimento e também, claro, todo o país.
A entrevista é do Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 17-05-2019. A tradução é do Cepat.
Foi automático? Nasce o peronismo em 1945 e também surge sua contraface, o antiperonismo?
Eu trabalho em termos de desenvolvimento histórico, como se deram os acontecimentos. Em certo sentido, é possível dizer que o antiperonismo foi anterior ao peronismo, como uma forma de antipopulismo e também como reação aos direitos, porque a palavra peronista é pronunciada pela primeira vez em público em julho de 1945, em um ato que ocorre no centro de Buenos Aires, organizado pelos sindicatos para defender as políticas de Perón contra o manifesto do Comércio e da Indústria, que eram os poderes econômicos.
Em outras palavras, Perón tinha um plano, que era ser árbitro entre as classes sociais e os poderes econômicos que rejeitaram esse plano. Ao rejeitá-lo, o antiperonismo surge antes do peronismo, porque esse não era o plano de Perón. O peronismo é o fato de que há uma irrupção operária para resgatar Perón da punição dos poderes econômicos, porque na realidade os operários temiam que quando Perón caísse, seus direitos cairiam.
Então, o peronismo é a reação, é especialmente complexo justamente por isso, porque não é o plano de uma pessoa, é a combinação desse plano com a sua rejeição por um grupo e seu resgate com o protagonismo de outro setor. Ou seja, o fato do peronismo nascer como resultado da combinação do plano de Perón com a irrupção operária, lhe confere uma complexidade e uma densidade semiótica, podemos dizer assim, muito peculiar.
E qual foi o papel de Eva Perón na discussão com os antiperonistas?
O peronismo foi muito conservador: manteve o ensino católico nas escolas e, por outro lado, só a presença de Eva supõe uma desestabilização. Porque primeiro se questiona a relação de Perón com Eva. Depois se questionava então o protagonismo da mulher, uma pessoa que vem de fora da política, da pobreza, e que chega ao protagonismo máximo.
Muitas pessoas que não eram peronistas naquela época, escreveram sobre o imenso ódio das classes médias altas contra Eva. Eu vejo uma relação dialética indissolúvel, porque as operárias e operários amam Eva e, ao mesmo tempo, sentem ódio de Eva, e isso aumenta seu amor a ela.
Nesse sentido, há muitas dimensões de Eva que têm a ver com uma dimensão do peronismo, que é o fato maldito do país burguês. "Como pode ser uma mulher representando especialmente as trabalhadoras e trabalhadores no interior do projeto peronista". Recordemos que aquilo que se chama de o renunciamento dessa imensa mobilização de 1951, para pedir que fosse candidata a vice-presidente, é uma mobilização de dentro do peronismo para pressionar em um tripé: eram a CGT, a igreja e o exército, e é a CGT pedindo mais protagonismo no governo através da presença de Eva. Mas, não é factível em termos de disputas dentro do peronismo.
Há um caso particular de governo peronista que é o de Carlos Menem. Ou seja, surge um peronismo opositor contra um governo peronista.
Sim, sim. É impressionante. As principais medidas do governo de Menem são descomunalmente diferentes de qualquer outra doutrina peronista. Há uma militância que estava dentro da PJ que não aderia a essa visão do governo. Isso é incrível também. Não é que não acreditavam no partido, mas não acreditavam nas medidas do governo.
Steve Lvitsky, pesquisador da Harvard, que fez sua pesquisa sobre o PJ em meados dos anos 1990, demonstra que a maioria dos militantes e dos quadros baixos, ou dirigentes de unidades básicas do PJ, em 1997, eram contra as políticas neoliberais. Por que digo que isto é muito impactante? Porque há algo da heterogeneidade constitutiva do peronismo que pode ser visualizada através dessa pesquisa que eu trabalho. Continuavam dentro e eram contra as políticas neoliberais.
Eu acredito que isso é crucial para entender o que foi o peronismo, e também o PJ ou a Frente para a Vitória hoje. Um antiperonista lhes diz: "Vocês têm a López Rega, que era um assassino, e a Menem, que foi um neoliberal". Os peronistas com quem trabalhei, todos repugnam López Rega e não concordam com as políticas de Menem.
Algo que o antiperonista desfruta.
É que para o peronista, os antiperonistas tiveram muitos López Rega e muitos Menem. Então, nem sequer é uma brincadeira. O que quero dizer com isto. López Rega é um assassino político que monta uma organização, uma maquinaria de assassinato político e existiram muitos antiperonistas que montaram essas maquinarias. E existiram muitos antiperonistas que aplicaram planos neoliberais.
A ideia de entrar para entender, o desafio "compreendamos a López Rega", o que quer dizer isso: compreendamos o mal, compreendamos o mal feito corpo em um ser humano. E, então, se diz: “compreendamos o menemismo", agora ... compreender é justificar? Não. Mas para mim, para combater o mal também é necessário compreender.
E como se traduz esta questão dos opostos com o kirchnerismo e o antikirchnerismo?
O século XXI começou com o momento menos intenso da identidade peronista nos 74 anos de história e assim Kirchner assume. Nos primeiros anos do governo de Néstor Kirchner, havia uma desfocagem da identidade peronista e, em vez disso, se tentava tecer outras formas.
A partir de 2008, a tensão peronismo-antiperonismo e kirchnerismo-antikichnerismo é uma relação de intersecção entre dois círculos que em grande parte estão sobrepostos. Há peronistas que não são kirchneristas, peronistas kirchneristas, e kirchneristas não-peronistas. Existem as três possibilidades.
Você fala sobre a ideia de heterogeneidade, de que quando o peronismo é heterogêneo, tem possibilidades de vencer, e quando é homogêneo pode perder, ou perde. Isso parece ser o debate atual e que se poderia plasmar uma possível aliança entre diferentes candidatos para as eleições presidenciais.
Sempre houve heterogeneidades no peronismo e os projetos que procuraram fazer com que todo o partido fosse homogêneo sempre fracassaram. Os radicais K são um êxito de Néstor Kirchner, mas são radicais. Nesse sentido, o peronismo que articulou suas diversidades, às vezes as sintetizando em uma só pessoa, e às vezes não, com outras capacidades políticas puderam fazer isso. Parece que na situação atual a possibilidade do governo hoje está em uma situação muito difícil, e se o peronismo não vai fragmentado as eleições, óbvio que teria muitíssimas chances.
Eu digo que quando o peronismo tem certeza de que vence, perde. Também há muitas situações históricas que mostram que quando o peronismo se convence de que vence, começa a brigar brutalmente em seu interior pela distribuição de poderes, e nesse momento não se verifica a famosa frase de Perón, que é um balaio de gatos, mas está se reproduzindo, ao contrário, nesse cenário perde.
Nas eleições de 2015, no kirchnerismo, quase ninguém acreditava que Macri pudesse ser presidente. Mas, muito menos acreditavam que poderiam perder a província de Buenos Aires.
Ao final do livro, você menciona o Papa, alguém que para muitos é um líder com uma influência muito importante no peronismo. Concorda com essa ideia?
Menciono isso porque digo que quando Bergoglio se torna Francisco, volta a se discutir uma das teorias existentes sobre o que é o poder no peronismo, que é a teoria da caneta. Em outras palavras, Néstor Kirchner teria chegado ao poder sem dizer todas as coisas que faria no campo dos direitos humanos, e depois, ao ter a caneta, fez o que fez. E Bergoglio ao se tornar Francisco, digamos, estando na Argentina era um homem de centro, por assim dizer, e estando no Vaticano é um homem que luta contra as injustiças e as grandes potências econômicas.
Não sei se alguém pode ser Papa sem ser um animal político. Parece-me que Francisco tem influência sobre vários assuntos do mundo e tem influência sobre os peronismos. O que acontece é que duvido muito que pretenda usar essa influência de maneira mecânica, no sentido de que não acredito que Francisco vá dar uma ordem. Eu não acredito nisso. Nesse sentido, está muito distante de Perón, porque não é um dirigente político.
Citando Perón, quando dizia aquilo de que "peronistas são todos", no “Cambiemos” também há peronismo, não é? Que tipo de peronismo há no “Cambiemos”?
É um grande tema. Percebo que os quadros que têm uma origem peronista, que hoje são relevantes no Cambiemos, lhe trazem know-how da política, sem dúvidas, mas não necessariamente lhe dão votos peronistas. Acredito que sim, que Macri em 2015 teve votos que provinham do peronismo, porque, caso contrário, é muito difícil chegar a 51%, porque uma maioria se constrói de forma heterogênea também. Qualquer maioria, aquela que você gosta e a que não gosta. Mas, eu não acredito que esses votos peronistas vieram pelos protagonistas políticos. Cristian Ritondo, Emilio Monzó... Ou seja, acredito que por aí Hugo Moyano contribuiu mais. Mas, Moyano não está no Cambiemos. Na minha opinião, há peronistas nessa aliança, mas eles não puxam o peronismo para o interior do Cambiemos.
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Argentina. Para entender o peronismo e o seu oposto. Entrevista com Alejandro Grimson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU