03 Abril 2019
“Entre os hierarcas eclesiásticos e núncios, existe um pecado eclesial que não se reconhece. A irresponsabilidade dos mandachuvas da Igreja das últimas gerações, que foram os guias do Povo de Deus e que tiveram resultados de evangelização muito ruins, é espantosa”, escreve Paul Buchet acerca da conjuntura eclesial chilena, em artigo publicado por Reflexión y Liberación, 30-03-2019. A tradução é do Cepat.
A consciência tranquila do Cardeal Errázuriz, ao sair do julgamento onde foi citado como culpado no caso de acobertamento de vários abusos sexuais do clero, chama a atenção.
Quando se trata de um abusador, é possível diferenciar entre um criminoso, um doente mental e um pecador, mas neste caso é necessário indagar mais a fundo a noção de “pecado”, porque se declarar “com a consciência tranquila” é se referir a um registro moral muito particular. A teologia moral que foi estudada pelo cardeal foi uma moral casuística, vale dizer uma moral que taxava a maldade de atos precisos como por exemplo a masturbação, o controle da natalidade, o adultério, o divórcio, o roubo, a mentira... e isso para levar os penitentes a se arrepender e poder receber o perdão de Deus e a salvação eterna. Como hierarca da Igreja, seu papel foi o de recordar a Lei de Deus e de guiar as consciências dos fiéis, para depois poder pela confissão perdoar os pecadores. A moral se ensinava como uma doutrina que sustentava a sacramentalização que era a função santificadora e salvífica da Igreja.
Quando o Concílio Vaticano II disse que não se trata somente de evitar o pecado, mas também de dar frutos de caridade para a vida do mundo, abre um novo delineamento moral. O próprio Bento XVI pertenceu a esta nova teologia, afirmando que “a moral cristã é o amor” e não o mero cumprimento dos mandamentos. O Papa Francisco também fala da mesma forma quando diz que “se perdeu o sentido do pecado e que se faz outros pagarem o preço de nossa própria mediocridade cristã”.
A mudança de perspectiva consiste em exortar à compaixão, essa virtude que corresponde melhor à atitude de Jesus do Evangelho, que preferia mais se compadecer que julgar.
Esta mudança de perspectiva se deve primeiro a um entendimento moderno da condição humana. A antropologia compreendeu o mitológico nos relatos do Gênesis acerca do famoso pecado original, a psicanálise lançou luzes sobre as deficiências humanas e deu outro nome ao próprio diabo.
Foi a experiência de vida social, a própria política dos direitos humanos, também a teologia da libertação... que devolveram o sentido profundo do “pecado social”: as violências, as injustiças, as desigualdades... que devem ser reconhecidas e contestadas.
Apesar de um individualismo cultural crescente, o sentido moral societário reivindica esta dimensão humanitária e social nas leis e instituições.
É um fato que foram as instâncias sociais e públicas, mais que as religiosas, que começaram a denunciar os abusos na Igreja. Ocorre como um revés, como se fosse agora a sociedade a ensinar a Igreja, obrigando-o a viver no tempo atual, em vez de ficar no passado. É o que manifestam todas as demandas feitas à Igreja, demandas por democracia contra o clericalismo, a favor da tolerância para a união de cristãos, a transparência nas finanças, pela igualdade das mulheres, por uma demografia razoável, por uma procriação responsável socialmente...
A sociedade não falará de pecado, mas pode falar de “crime”. As leis que foram influenciadas por sistemas antigos foram enganosas porque davam aos juízes uma simili autoridade divina que os conferia a autoria declarando inocentes ou culpados. Na realidade, não lhes corresponde nenhum privilégio divino para encontrar a verdade em seus juízos. Só podem acusar insuficientes provas para culpar ou podem também se equivocar considerando culpado um inocente. Tampouco possuem um código moral divino. A eles só corresponde reestabelecer a ordem que foi perturbada por quem cometeu um ilícito, um atropelo, um crime. Este arranjo humano que são os sistemas judiciais não é contrário aos desígnios de Deus. Deus constrói seu Reino com a atividade humana, o progresso humano. A Igreja, os cristãos, não são toda a massa que precisa crescer, são fermento, não são toda a comida, mas o sal...
Para retornar a nossa história do cardeal Errázuriz, se ele não possui problema de consciência por sua atuação em relação às vítimas de abusos de clérigos que dependiam dele, podemos recordá-lo que o próprio catecismo católico fala de “Consciência reta” e bem poderia ser que por sua formação, um estilo de poder excessivo, uma discrição institucional ou seja o que for, não pôde ter essa compaixão prioritária pelas vítimas e atendê-las, mesmo em prejuízo ao prestígio da Instituição eclesial.
Espera-se que as instâncias civis da Justiça reestabeleçam a desordem que tem muitas facetas: as das vítimas, as primeiras prejudicadas pelo acobertamento, dos próprios feitores com potenciais riscos de repetição, dos cristãos decepcionados com a sua instituição eclesial e a de todo o grande público que fica desanimado diante das revelações de tantas perversões. E, talvez, recapacitando após uma eventual sentença condenatória, Dom Francisco Javier compreenda que não fez tudo bem.
Entre os hierarcas eclesiásticos e núncios, existe um pecado eclesial que não se reconhece. A irresponsabilidade dos mandachuvas da Igreja das últimas gerações, que foram os guias do Povo de Deus e que tiveram resultados de evangelização muito ruins, é espantosa. Quem escreve não atira a primeira pedra e assume que teve, pessoalmente, suas responsabilidades em relação ao que não se conseguiu, ao que foi mal feito, insuficiente, equivocado... Mas, também deseja se unir à decepção de muitos cristãos que veem a maioria dos bispos, arcebispos, cardeais, sacerdotes (também pais, avós) que não assumiram sua responsabilidade por esta decadência da cristandade.
Nós, mais velhos, peçamos perdão a Deus, primeiro, pelo que nos corresponde, mas também saibamos ensinar às gerações futuras que aprendemos uma coisa importante: o Norte em relação à moral (vale dizer a consciência) é o amor ao próximo, mais que qualquer mandamento.
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Chile. Crime e Pecado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU