11 Janeiro 2019
Reconciliar a enxurrada de reformas do presidente francês Emmanuel Macron em favor dos interesses corporativos e dos ricos com a sua reivindicação de representar o centro vital da nação requer uma grande façanha de gestão de relações públicas.
O comentário é do historiador estadunidense Harrison Stetler, publicado por Commonweal, 07-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um léxico inteiro surgiu desde a sua eleição, convocado para desviar as críticas e a oposição. Ele é mais bem demonstrado por um dos mais expressivos tiques verbais da era Macron, proferido por autoridades e comentaristas: pédagogie.
À medida que cada vez mais o público francês percebe a devoção de Macron de servir aos ricos, os líderes do partido da maioria e os editorialistas amigáveis diagnosticaram o problema “real”: uma falha em explicar a agenda de Macron e em torná-la palatável ao público.
Ah, se o cidadão médio fosse capaz de compreender o plano diretor que guia seu presidente “jupiteriano”, afirma o refrão. É claro, esta ou aquela medida pode significar um contracheque menor no fim do mês, ou a necessidade de trabalhar em vários empregos precários e em meio turno, ou um deslocamento mais longo e difícil.
Mas aqueles que reclamam simplesmente não entendem a sua visão abrangente: preparar o país para o proverbial século XXI.
Os aliados de Macron, de certo modo, estão certos: todas as partes da sua agenda somam claramente “algo”. Ele se apressou em desmantelar o poder sindical, providenciar reduções no imposto de renda para as famílias francesas mais ricas, estabelecer um imposto fixo sobre os investimentos e abandonar uma série de impostos sobre heranças.
No início deste ano, funcionários da companhia ferroviária nacional (SNCF) viram seu status de trabalhadores protegidos ser removido, abrindo caminho para a privatização; o governo está agora buscando a privatização de outras peças de infraestrutura cruciais, como os aeroportos de Paris, para fornecer capital público para um fundo de investimentos para “startups”.
Tudo isso em cima do aumento das taxas de pensão, cortes no bem-estar e a profissionalização da educação secundária, junto com a restrição das admissões em universidades públicas.
A dura realidade para os críticos de Macron, no entanto, é que poucas coisas tem atrapalhado o seu caminho. Dada a forte maioria na Assembleia Nacional (um produto da baixa participação eleitoral na última eleição, da baixa unidade contra a extrema direita e do sistema de votação em dois turnos na França), apenas o descontentamento popular expressado pela ação coletiva nas ruas ou no local de trabalho pode ter restringido as ações do presidente.
Mas, nos primeiros 18 meses do governo Macron, mesmo quando seu índice de aprovação despencava, o país viu pouca coisa além dos protestos ou greves esporádicos, certamente nada da magnitude necessária para deter o governo e forçá-lo a recuar.
É seguro afirmar que o governo pensava que essa relativa aquiescência continuaria quando Édouard Philippe, o primeiro-ministro de Macron, anunciou em setembro que haveria novos aumentos de impostos sobre o diesel e outros produtos da gasolina. Estes recairiam principalmente sobre os cidadãos da classe operária e da classe média-baixa, dependentes dos seus carros para chegar ao trabalho, vivendo longe das áreas urbanas da moda na França, bem servidas de transporte público.
Pode haver resmungos em resposta aos impostos, é claro, característicos daquilo que Macron diagnosticou como a natureza “refratária” dos franceses, junto com mais alguns lamentos de que Macron era o “presidente dos ricos”. Nada que não pudesse ser contornado com a dose certa de firme pédagogie.
Como afirmou Philippe no início de novembro, tal medida era necessária para “mudar o comportamento” dos consumidores que consomem muito combustível, já que “não há nenhuma solução mágica para o problema das mudanças climáticas”.
Os protestos que tomaram conta da França durante boa parte do fim de novembro e início de dezembro sugerem que a draconiana agenda pró-negócios de Macron, na verdade, está com os dias contados. De fato, o surgimento do movimento Gilet Jaune (Coletes Amarelos) mudou fundamentalmente o clima político do país, jogando o governo em sua primeira grave crise e também colocando-o na embaraçosa posição de ter que fazer seu primeiro recuo significativo.
Os Coletes Amarelos, batizados com o nome dos coletes refletivos que os motoristas precisam ter em seus carros, bloquearam as rotatórias e os cruzamentos cruciais das rodovias em todo o país. Em Paris e em outras grandes cidades, milhares de manifestantes tomaram as ruas em marchas que se transformaram em tumultos. Estes foram comparados com os protestos de 2005 que viram grandes conflitos entre a polícia e residentes não brancos das banlieues isoladas e empobrecidas de Paris.
Em três sábados consecutivos – 24 de novembro, 1º de dezembro e 8 de dezembro – foram fechadas grandes seções do centro de Paris, abandonando avenidas inteiras para os confrontos de um dia inteiro entre manifestantes e policiais antimotim, um rastro de carros queimados e agências bancárias destruídas em seu rastro.
Cerca de 89 mil policiais antimotim, apoiados por veículos blindados, foram mobilizados no último desses três fins de semana, uma notável demonstração de força que resultou em mais de 1.700 prisões.
Grande parte do debate em curso na imprensa francesa se concentrou em dissecar a identidade política do movimento dos Coletes Amarelos. Foram apontados os suspeitos usuais, especialmente aqueles considerados como os autores das manifestações mais significativas de violência: uma mistura heterogênea de grupos anarquistas e neofascistas de extrema direita.
Mas, diante daquele que era inegavelmente um movimento de protesto em massa, essa tem sido em grande parte uma forma de evasão, um modo de ignorar as causas mais profundas dos protestos.
O que realmente anima os Coletes Amarelos é um amplo e embasado reconhecimento da injustiça no cerne do programa econômico de Macron. Sua decisão de reduzir drasticamente a carga tributária sobre as maiores fortunas do país, por exemplo, deixou um rombo nas receitas do Estado que muitos veem como a verdadeira razão para o novo imposto sobre a gasolina. O que todo esse fiasco representa é uma redistribuição maciça da riqueza, apesar da sua fachada “verde” e da pédagogie de Philippe sobre as necessárias escolhas difíceis para mudar o “comportamento do consumidor”.
Na verdade, essa raiva popular se articula de maneiras divergentes. Eu conversei com pessoas que desabafaram seu medo de que Macron utilize as receitas dos impostos sobre o combustível para subsidiar o bem-estar de refugiados e migrantes, assim como ouvi pessoas condenando a taxação de carros, mas não de jatos privados da classe bilionária. Se o movimento dos Coletes Amarelos começou como uma revolta contra os impostos, ele agora se transformou em uma rejeição mais abrangente da agenda de Macron.
Dificultando as coisas para o governo, o surgimento dos Coletes Amarelos alimentou outras fontes de descontentamento, já que a raiva contra a injustiça econômica coincide com a renovação da agitação estudantil em todo o país.
Os estudantes ocuparam centenas de escolas secundárias entre os dias 3 e 8 de dezembro, protestando contra reformas no currículo das escolas públicas e contra o sistema de admissão nas universidades públicas. As imagens virais de dezenas de estudantes detidos em uma escola secundária suburbana a oeste de Paris, ajoelhados com as mãos sobre a cabeça, aos pés da polícia antimotim, simbolizavam a crescente e brutal intolerância do governo à oposição e ao descontentamento.
Da mesma forma, diversas universidades estão enfrentando novamente a perspectiva de ocupações prolongadas depois que o governo anunciou grandes aumentos nas mensalidades para cidadãos não europeus, o que muitos veem como um prelúdio natural para o fim da educação universitária gratuita para os estudantes franceses.
No fim da primeira semana de dezembro, a situação parecia estar saindo do controle do governo. O movimento dos Coletes Amarelos, que uma pesquisa de 7 de dezembro mostrou estar desfrutando de um forte nível de apoio em todo o país, havia transbordado e começava a atrair vários setores da sociedade francesa.
De fato, o medo pareceu se apossar de muitas pessoas do círculo íntimo do presidente. A disciplina no nível mais alto deu lugar a uma série de mensagens e anúncios contraditórios, durante os quais ficou simplesmente incerto quem do governo estava definindo a agenda. No dia 8 de dezembro, nada menos do que 500 soldados da Guarda Republicana de elite foram designados para proteger o palácio presidencial no centro de Paris.
Para evitar o abismo, Macron finalmente mudou de rumo – ou pelo menos fez concessões significativas. Em um discurso na televisão no dia 10 de dezembro, dois dias depois do quarto sábado de protestos, ele anunciou uma série de medidas destinadas a acabar com a revolta. Além do cancelamento do aumento do imposto sobre a gasolina anunciado alguns dias antes, Macron prometeu renunciar aos aumentos planejados das taxas para aposentados de baixa renda, isentar as horas extras da tributação e dos encargos sociais, e aumentar o salário mínimo. No entanto, ele repetiu a sua determinação de não voltar atrás em relação aos cortes no imposto sobre heranças e no novo imposto fixo sobre a renda de investimentos.
O elemento mais revelador do discurso de Macron no dia 10 de dezembro é o menos relacionado às demandas reais que impulsionaram o movimento dos Coletes Amarelos. Em seu discurso, Macron declarou sua intenção de reconciliar a França com sua “identidade profunda”, reiterando a necessidade de “abordar a questão da imigração”.
Com base na lei de asilo e imigração promulgada no ano passado, que fortaleceu uma série de obstáculos administrativos para refugiados e requerentes de asilo, Macron confirmou o flerte crescente do seu governo com as ansiedades de direita que redefinem a política europeia.
Recusando-se a reconhecer plenamente a injustiça no centro de sua agenda econômica, Macron está reforçando ao dobro o hábito da elite francesa de desviar e ressignificar toda a raiva como uma expressão de ansiedade cultural.
No entanto, como um importante estudo sociológico encomendado pelo Le Monde concluiu no dia 11 de dezembro, “as duas principais motivações dos gilets jaunes, portanto, parecem ser uma maior justiça social (...) e a demanda de serem ouvidos pelo governo. As demandas nacionalistas, ao contrário, como aquelas que enfatizam a identidade ou a imigração, eram muito marginais, contradizendo a ideia de um movimento infundido por apoiadores ou ativistas do Rassemblement National [antiga Frente Nacional]. (...) Em suma, esta é realmente uma revolta do ‘povo’”.
Em meados de dezembro, os maiores e mais intensos protestos pareciam, no momento, ter diminuído – embora não antes de deixar o governo de Macron enfraquecido em todas as frentes. O que acontecerá nas próximas semanas permanece incerto.
Então, voltemos à fonte original da crise. E, com o propósito de um experimento mental, concedamos a Macron o benefício da dúvida. Suponhamos que o imposto de carbono foi, de fato, motivado pelo desejo sincero de reduzir as emissões de carbono, de alinhar ainda mais o “comportamento do consumidor” com as restrições do meio ambiente e, como disse Macron, “tornar o nosso planeta grande novamente”. Se o primeiro teste do ambientalismo de Macron foi um fracasso retumbante, o que deu errado?
Macron gostaria de nos fazer acreditar que as economias industriais avançadas do mundo ocidental e as hierarquias sociais sobre as quais elas jazem podem permanecer praticamente intactas. Embora devamos ver a crise ecológica como estrutural, marcada por graus de culpabilidade vastamente diferentes em regiões diferentes do mundo e entre classes diferentes dentro dessas regiões, Macron tira a crise do seu contexto social e a torna amorfa: todos nós devemos ser culpados.
Com esse tipo de lógica, é fácil jogar o peso das mudanças tão necessárias no “comportamento do consumidor” sobre os menos abastados, e não sobre os super-ricos – cujos iates em St. Barts e Chalet Les Alpes, e os jatos privados que os transportam entre os dois respondem de modo desproporcional pelos resíduos humanos e pelas emissões globais de combustíveis fósseis.
Poucos negariam que um modelo de desenvolvimento dependente da universalização do automóvel pessoal também é ecologicamente insustentável, sem falar da deformação da vida urbana e da cidade, e da expansão suburbana que isso acarreta. Mas, com o crescente custo de vida nas grandes cidades e a concentração da vida econômica nas áreas rurais ao redor dos grandes armazéns nas periferias das cidades, o automóvel tornou-se uma necessidade para grande parte da classe operária e média-baixa da França.
Em suma, o pecado original da ecologia de Macron é a suposição de que a crise ambiental pode ser divorciada de questões de desigualdade social e econômica. O macronismo sustenta que as mudanças climáticas podem ser abordadas sem drásticas medidas redistributivas e esforços diretos para reduzir o consumo por parte das classes de milionários e bilionários globais e sem facilitar a transição dos trabalhadores para um modo de vida sustentável.
Essas ideias estão por trás dos crescentes pedidos de um equivalente francês de um “New Deal Verde”, sem o qual um imposto sobre o carbono será sentido como um novo ônus pela sociedade francesa. Na verdade, o governo está indo na direção oposta: o desmantelamento da infraestrutura pública, como visto na reforma da SNCF do ano passado, enfraquece uma das instituições que deveria ser fortalecida como parte de uma resposta abrangente à crise ecológica.
Tal plano exigiria, no entanto, uma grande mobilização de recursos financeiros. Em uma recente coluna no Le Monde, o economista Thomas Piketty escreveu:
"Para que um imposto sobre o carbono seja bem-sucedido, é essencial que todas as suas receitas sejam investidas de volta na transformação ecológica da economia. Mas o governo está fazendo exatamente o oposto: dos quatro bilhões de aumento de receita em 2018 e dos quatro bilhões a mais esperados em 2019, podemos esperar que apenas 10% sejam redirecionados para o investimento, e o restante, de fato, irá financiar o cancelamento de impostos sobre heranças e ganhos do imposto fixo sobre ganhos de capital."
Em um nível mais profundo, as evidências que todos podemos ver e compreender – incêndios devastadores e padrões climáticos cada vez mais imprevisíveis, inundações históricas e o crescente risco de fome em muitas regiões do mundo, a crescente densidade de dióxido de carbono na atmosfera terrestre e os riscos inerentes para a saúde humana – nos obriga a reconhecer limites fundamentais à nossa capacidade de expandir a produção e o consumo.
Isso nos chama, com atenção especial para aqueles que consomem mais e produzem mais lixo, a abraçar a contenção e a reavaliar as nossas noções recebidas sobre a boa vida. Mas Macron parece não ver nenhuma necessidade de estender tais noções comuns como de modéstia e de limite aos mais abastados, em cuja defesa ele lançou a democracia francesa na maior crise que ela já enfrentou em anos.
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''Júpiter em eclipse'': coletes amarelos forçam Macron a recuar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU