29 Setembro 2018
Localizada a 363 km de Manaus, a cidade de Coari pode ser hoje considerada uma importante base do Primeiro Comando da Capital (PCC), principal facção criminosa do Brasil, no seio da Amazônia. Na luta pelas principais rotas do narcotráfico no Norte do país, o coariense e a sua fama de “pirata” protagonizam roubo, violência e mortes no rio Solimões.
A reportagem é de Thiago de Araújo, publicada por Sputnik Brasil e reproduzido por Amazônia.org, 28-09-18.
A origem indígena do nome do município – inspirada nas palavras indígenas “Coaya Cory” (“rio do ouro”) ou “Huary-yu” (“rio dos deuses”) – tem em 2018 a cocaína como o ouro em disputa entre os traficantes que descem o rio em direção à capital do estado do Amazonas, e a ausência de divindades em meio ao fogo cruzado com armas de grosso calibre.
A reportagem da Sputnik Brasil esteve em Coari para conhecer a realidade do município, o quinto mais populoso no Amazonas, e com um dos piores índices de desenvolvimento humano (IDH) do Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – ocupa a posição 4.506 dentre 5.565 municípios de todo o país.
Aguardo a passagem de algum mototaxista para seguir o meu roteiro preestabelecido em Coari, no Médio Solimões. Estou há três dias na “Capital dos Piratas” da Amazônia e, conversando com um comerciante que vende água mineral e botijões de gás, resolvo fazer a pergunta que me intrigava:
“O pirata traz tudo o que não presta e deixa aqui na cidade”, completa. Minha carona finalmente chega, me despeço e sigo para o próximo destino, tentando decifrar tal lógica que já havia sido mencionada por autoridades ouvidas pela reportagem da Sputnik.
Vídeos disponíveis na internet comprovam tal conceito: não é incomum que uma carreata de motos percorra a cidade cada vez que um pirata seja preso pela polícia em Coari. Embora o foco principal da atividade dos piratas de Coari seja roubar cargas de drogas que seguem da Colômbia ou do Peru em direção a Manaus, vários outros crimes são associados a eles.
Coari teve as etnias indígenas Catuxy, Jurimauas, Passes, Irijus, Jumas, Purus, Solimões, Uairipis, Uamanis e Uaupés como seus primeiros moradores, e coube ao jesuíta alemão Samuel Fritz, no século 18, a fundação do primeiro povoamento na localidade. Foi elevada à categoria de cidade só em 1932, e o desenvolvimento só aumentou com a descoberta de petróleo na região.
Mas a posição geográfica não foi só explorada pelos meios lícitos. Traficantes que passaram a transportar para o Brasil o excedente de cocaína e maconha do tipo skunk (mais potente do que a cannabis paraguaia, mais barata e comum no tráfico nacional), vindo da Colômbia e do Peru, passaram a usar Coari como um ponto estratégico de parada e reabastecimento.
Fonte: Sputnik Brasil
De apenas um ponto de parada, desenvolveu-se ali um mercado consumidor de drogas nos anos subsequentes. E vieram com ele todos os crimes associados ao narcotráfico, como roubos e assassinatos, na maioria das vezes causados pelas disputas por pontos de venda de entorpecentes, e com fortes requintes de crueldade de violência.
“Coari deixou de ser um entreposto da droga para ser um grande centro consumidor também. E Manaus da mesma forma. Manaus em tempos anteriores também era uma mera rota de passagem, hoje é um grande centro consumidor da droga e essa disputa por esse mercado tem causado cenas típicas do que existe no México. Aqui nessa região mesmo nós temos relatos de piratas que foram encontrados por rivais, e de narcotraficantes que são decapitados e jogados nos rios e nunca mais são encontrados”, disse o major Pedro Moreira.
A alta rentabilidade do narcotráfico foi o principal estimulante para o surgimento da figura do pirata, que costuma ser um morador da região de Coari, com idades que variam entre 17 e 40 anos, e que conhece muito bem os rios e pequenos afluentes que cortam a região. A expertise das ações dos corsários da Amazônia logo chamou a atenção.
Dona das rotas do tráfico na Amazônia, a Família do Norte (FDN) – considerada a terceira facção criminosa mais poderosa do Brasil, atrás do PCC e do Comando Vermelho (CV) – acabou sendo o principal alvo dos piratas de Coari. A retaliação da organização veio no sistema prisional do Amazonas, com episódios de assassinatos de piratas dentro e fora da cadeia.
Segundo autoridades ouvidas pela Sputnik Brasil, foi a partir de 2017 que a Família de Coari (FDC), principal facção criminosa da cidade, se aproximou e buscou abrigo e proteção junto ao PCC, que já vinha colocando em prática seus planos de avançar na região Norte. O maior massacre em uma penitenciária brasileira neste século, durante uma rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em janeiro do ano passado, expôs ao mundo as disputas entre a FDN e o PCC, que na ocasião resultou em 56 detentos mortos.
“Até [2017] eles não tinham uma bandeira, uma facção, porque eles nunca foram benquistos em todas elas […]. Eles são mortos nas cadeias, eles roubam drogas de todas as facções. Aqui [no Amazonas] houve em 2017 aquele massacre do Compaj, então eles viram uma oportunidade de se aliar com o PCC. Viram uma oportunidade de se filiar ao PCC e garantir uma forma de proteção nas cadeias de Manaus, porque o medo deles aqui era de ser transferido para uma cadeia em Manaus”, destacou o comandante da PM da cidade.
As ações de piratas no Solimões respingam na sociedade local, que já sofre pela ausência de políticas públicas e vive em um ambiente de ampla informalidade. Os ribeirinhos são os alvos preferenciais. Quando não aderem à pirataria criminosa organizada, eles podem ser alvos de roubos e ainda são obrigados a tolerar e, por vezes, colaborar com criminosos.
De acordo com o promotor Weslei Machado, tal situação é recorrente principalmente na zona rural, onde o Estado está ausente e os piratas fornecem meios de sobrevivência para a população. Por consequência, seja por gratidão ou coação, os ribeirinhos precisam tolerar e colaborar com as atividades criminosas, grande parte delas realizadas durante a noite.
Eles [ribeirinhos] são vítimas de uma grave falha e omissão do Estado, não só claro do estado do Amazonas, mas também do governo federal. A atuação, e se a gente considerar o poder bélico que essas organizações criminosas têm, os munícipes, os ribeirinhos, as comunidades indígenas não têm como se opor à atuação dessas organizações”, ponderou Machado". “E aí, para manter uma convivência minimamente harmônica e evitar que nós tenhamos algum tipo de prejuízo à comunidade, eles toleram essas atividades. Eles se tornam coparticipes, mas em razão da coação exercida pela organização criminosa. Mas é claro que a organização, para manter o poder e evitar que a comunidade avise ao poder público o que está acontecendo, eles dão benesses mínimas para garantir um conforto mínimo para aquela comunidade”, acrescentou o promotor.
Já as crianças costumam ser cooptadas desde cedo pelos criminosos locais, sobretudo em áreas periféricas – a reportagem visitou os bairros Duque de Caxias e Do Pêra, dois dos mais perigosos de Coari –, atuando como “olheiros” ou “aviãozinho” (no transporte de pequenas quantidades de drogas).
“Onde há os bolsões de miséria que são os locais onde eles arregimentam crianças”, completou o major Pedro Moreira. Em comum nesses bairros é a presença de igarapés e palafitas, que contam com becos, vielas e pontes, locais usados pelos piratas e pelos traficantes locais para se esconder e realizar suas atividades criminosas".
Mas o problema não para por aí. As crianças de Coari também sofrem os efeitos de outros crimes, e a prostituição infantil é um dos maiores desafios para as forças de segurança. O comandante da PM da cidade revelou que coibir isso é difícil, sobretudo pelas dificuldades e falta de estrutura para realizar um trabalho de inteligência e levantamento de informações.
“Na verdade, muitas vezes são pessoas da própria família [que aliciam crianças]. São tias, são primos, são irmãos mais velhos que levam as menores até esses locais. E acabam ficando com o dinheiro”, completou o policial militar. A exploração sexual de menores em Coari, aliás, fez com que a cidade amazônica se tornasse notícia nacional.
Em 2014, o ex-prefeito Manoel Adail Pinheiro foi preso sob a acusação de chefiar uma rede de exploração sexual de crianças e adolescentes no município, com idades entre 9 e 11 anos. Ele também foi condenado a 11 anos de prisão neste ano por um esquema de desvios milionários de recursos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em 2002 e 2004, revelado pela operação Matusalém.
Apesar disso, o filho do ex-prefeito, Adail José Figueiredo Pinheiro, comanda Coari, tendo um primo – Keitton Wyllyson Pinheiro Batista – como presidente da Câmara dos Vereadores.
A corrupção não se restringe aos menores em Coari, se embrenhando também para o meio político local. O Legislativo municipal teria tido parlamentares eleitos com recursos oriundos da pirataria e do tráfico de drogas, com base em apurações do MP-AM.
“Para você ter uma ideia da angústia, recentemente o delegado de polícia da cidade me ligou e falou: ‘doutor, o vereador fulano de tal estava em uma reunião em que estávamos tratando da segurança pública’, e a presença de alguém de dentro de um poder legislativo que foi financiado pelo tráfico de drogas, por uma organização criminosa, fragiliza como um todo a segurança pública. Ele passa a ter voz ativa e, além disso, sabe quais medidas serão adotadas pelo poder público. E isso tudo, claro, traz prejuízos para o combate dessas organizações criminosas”, revelou o promotor Weslei Machado.
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Capital dos Piratas’: Coari vira base do PCC na Amazônia na luta pelas rotas do tráfico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU