17 Janeiro 2017
O massacre de 56 presos no Complexo Penitenciária Anísio Jobim (Compaj), em 1º de janeiro, reavivou um antigo debate que ronda as discussões sobre o medieval sistema carcerário brasileiro: a privatização dos presídios. A unidade onde os detentos ligados ao Primeiro Comando da Capital foram assassinados funcionava com um modelo de cogestão, no qual um administrador privado, no caso a empresa Ummanizzare, fica responsável por alguns dos serviços no local. Além da tragédia de Manaus, a crise financeira que deixou vários Estados no vermelho trouxe novamente o assunto à tona. E junto com ele o debate sobre as questões éticas e legais que envolvem o fato: é correto que uma empresa lucre com o cárcere?
A reportagem é de Gil Alessi, publicada por El País, 16-01-2017.
Segundo levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), ligado ao Ministério da Justiça, dos 1.436 presídios brasileiros 29 operam com o modelo do Compaj, em parceria com a iniciativa privada. Nestas unidades cabe ao Estado fiscalizar as operações e agir em caso de rebeliões. A maioria dos presídios, 1.368, são de gestão pública, 36 funcionam de acordo com um modelo de parceria entre o Estado e organizações sem fins lucrativos, e três são parcerias público-privadas – nas quais uma empresa constrói e gere integralmente a unidade, sob a supervisão do Estado. Todas as unidades deste último modelo ficam em Minas Gerais.
Os presídios com gestão diferenciada não escapam dos problemas do resto do sistema: têm facções e têm superlotação. O grau de controle dos grupos criminosos varia, mas eles estão presentes, e a na maioria dos casos seus integrantes são separados em alas diferentes. Veja aqui alguns pontos chave do sistema privado de cogestão, e as polêmicas que o cercam.
Os custos aproximados de manter uma pessoa presa variam muito de Estado para Estado. Em novembro, a presidenta do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, disse que "um preso no Brasil custa 2.400 por mês". São Paulo, por exemplo, gasta em média 1.450 reais por mês com cada detento no sistema público. Já em Goiás este valor chega a 2.111 reais. No Compaj, em Manaus, o Estado repassava cerca de 4.700 reais por preso à Ummanizzare, empresa responsável pela administração da unidade.
Odair Conceição, presidente da Reviver, empresa que possui contratos de cogestão de presídios com diversos Estados, e diretor da Associação Brasileira das Empresas Especializadas na Prestação de Serviços a Presídios (Abesp), afirma que nas unidades da Reviver o custo do preso por mês é “em média 15% mais barato” do que no sistema público. Ele afirma que a cogestão é um modelo que “pode ajudar os Estados que estão com problemas fiscais a cortar gastos”, e ainda “melhorar a qualidade dos presídios”. Segundo ele, a estimativa feita pela ministra não leva em conta gastos como a previdência dos servidores de presídios, entre outros.
O relatório da Pastoral Carcerária, que foi feito com visitas a unidades com cogestão, em 2014, critica o que chama de “restrição do acesso à informação” envolvendo as empresas de cogestão. Além disso, o documento aponta que em mais de uma ocasião houve “contratação das empresas de administração prisional em regime de urgência de forma a isentar licitação para o início das atividades”. Isso teria ocorrido em Alagoas e Santa Catarina: os Estados justificaram a medida alegando que não poderiam viabilizar o imediato funcionamento da unidade.
De acordo com a Pastoral Carcerária Nacional, “em mais da metade das prisões privatizadas não ouvimos queixas de presos sobre a assistência à saúde, psicológica, jurídica e alimentação”, afirma a entidade em um relatório sobre o tema. Eles atribuem este fato à “desburocratização no processo de contratação e demissão de profissionais e compra de materiais”, além de “maior disponibilidade de recursos para a realização desses serviços e maior possibilidade de fiscalização”. Mas a Pastoral faz a ressalva de que em algumas unidades visitadas, apesar do “elevado repasse de recursos à iniciativa privada, os presos manifestaram descontentamento em relação a esses serviços”.
Durante as vistorias em presídios de cogestão, a entidade encontrou presos supostamente torturados, fugas recentes e mortes Odair defende o modelo. “O presídio privado traz uma transformação gigantesca: a pena pode ser cumprida com dignidade”, afirma. Para ele, o atendimento médico, psicológico, psiquiátrico e até mesmo jurídico fazem as penitenciárias de cogestão serem mais “humanizadas” que as públicas.
"No sistema público muitas vezes os parentes do preso acabam tendo que financiar a prisão, levando itens de higiene e alimentos para as unidades", afirma Odair. Um exemplo disso ocorre em penitenciárias públicas femininas, nas quais as detentas que não recebem absorventes levados por parentes improvisam com miolo de pão.
Segurança e controle
Neste ponto, a Pastoral Carcerária Nacional afirma não ver diferença entre os modelos. Durante as vistorias em presídios de cogestão, a entidade encontrou “presos supostamente torturados, fugas recentes, mortes, acusações de corrupção e outras situações violatórias”, fatos comuns também nas penitenciárias públicas.
Para Odair, “o que aconteceu em Manaus foi algo totalmente fora da curva”, afirma. Segundo ele, “o que ocorreu lá é reflexo de problemas da empresa responsável e do Estado, que não fiscalizou da forma correta as atividades no local”. "Desde 1999 existe cogestão no Brasil, e essa foi a única tragédia do tipo no modelo", diz.
Em nota, a Ummanizzare, responsável pelo Compaj, lamentou a tragédia, e afirmou que "nesse modelo de cogestão, ao poder público são atribuídas as funções indelegáveis de comando, direção e disciplina dos presídios, bem como qualquer outra atividade que caracterize poder de polícia. O texto diz ainda que "a lei explicita, sem dar margem a dúvida, a contenção de rebeliões como prerrogativa exclusiva do poder público".
Alguns juristas apontam que o Estado não estaria autorizado a delegar para empresas seus poderes de polícia, jurisdicional e o poder de punir A Pastoral afirma também que as unidades privadas apresentam um nível de rigidez disciplinar maior, “o que as aproxima dos chamados regimes disciplinares diferenciados (RDD)”. Nesta situação, os presos permanecem por longo tempo em total isolamento e praticamente não têm acesso a banho de sol. Em muitos casos essa rigidez disciplinar “ficou especialmente refletida na proibição de acesso a revistas e jornais atualizados, bem como a programas televisivos com noticiários e outros na maioria das unidades visitadas”.
O diretor da Abesp discorda da comparação com o RDD, mas afirma que de fato o sistema de cogestão é mais rígido. “É uma penitenciária, é preciso que seja rígido, que haja um controle sobre atividades ilícitas, para que não entrem drogas e celulares lá dentro”, diz. Odair diz, no entanto, que o “tratamento humanizado e digno” compensaria a rigidez.
Os problemas éticos e jurídicos estão no cerne das principais críticas feitas aos modelos privados. Para a Pastoral Carcerária e outros movimento sociais, “a privação da liberdade dos cidadãos não pode ser objeto de lucro”. Eles defendem que o Estado se encarregue de cuidar do sistema penitenciário, mas com uma agenda de desencarceramento de presos detidos provisoriamente ou por crimes não violentos.
Alguns juristas apontam também que o Estado não estaria autorizado a delegar para empresas seus poderes de polícia, jurisdicional e o poder de punir. A Constituição Federal, no entanto, não contém nenhuma proibição expressa à privatização destes poderes. Um parecer da Polícia Federal afirma que a Lei 7.102/83 proibiria “o exercício, por empresas privadas, de atividades típicas de Estado no âmbito carcerário, tais como a restrição da liberdade de presos ou a contenção de rebeliões, cabendo a elas somente a segurança patrimonial local”.
“Estamos em um país capitalista, uma das principais metas de qualquer empresa é o lucro”, afirma Odair. “Agora, o lucro precisa ser feito dentro da legalidade, com contrato, licitação, fiscalização. O lucro precisa ser resultado da eficiência da empresa”, diz. Para ele, a privatização do sistema penitenciário não está atrelada à “precarização do cárcere”.
Em nota, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) afirmou que "a ineficiência do sistema prisional não pode levar à privatização", e que "o ser humano jamais pode ter sua dignidade aviltada, pois lucro e pena não combinam". De acordo com a CNBB, um sistema carcerário privatizado "abre possibilidades para mais e maiores penas".
“Não há dados confiáveis e sistematizados, nem estudos sérios que possibilitem essa avaliação comparativa”
O relatório da Pastoral sobre o tema afirma que “a unanimidade” dos diretores de prisões “afirmou que é mais fácil substituir agentes das privatizadas, quando esses praticam alguma falta, que agentes públicos”. Isso porque os funcionários de penitenciárias públicas só podem ser demitidos por meio de procedimento formal disciplinar, o que pode durar anos. “Por outro lado, a formação dos agentes contratados pelas empresas para trabalhar com presos é mínima”, quando comparada com a dos agentes públicos. Além disso, existe uma questão trabalhista: os salários dos agentes privados “são até quatro vezes mais baixos que os dos agentes públicos e há alta rotatividade de agentes”.
Odair discorda. Segundo ele, “os agentes do setor privado, de maneira geral, são muito melhor treinados”. O diretor da Abesp aponta que o modelo de cogestão prevê “treinamentos e reciclagens anuais, previstos em contrato”. Quanto à remuneração inferior, ele afirma que o salário “é compatível com a função e com a região de atuação”.
Um dos principais argumentos dos defensores da privatização é que ela reduz a reincidência em comparação com as unidades públicas, onde o índice beira os 70%, segundo estimativas. Para a Pastoral, “não há dados confiáveis e sistematizados, nem estudos sérios que possibilitem essa avaliação comparativa”. Além disso, o relatório da entidade aponta que criar um vínculo causal entre tratamento penitenciário e reincidência “é uma falácia”. “A reincidência é produto de múltiplos fatores, dentre eles os aspectos da trajetória de vida, idade, marginalização social, desemprego, dependência química, saúde mental, e tem sido um desafio determinar porque as pessoas deixam de – ou voltam a – praticar crimes”, diz o texto.
Odair concorda que não existem estudos científicos que comprovem uma menor reincidência no sistema privado. “Eu consigo medir a reincidência nas unidades da minha empresa. Mas se ele for preso novamente em outro presídio que não tem um sistema o dado se perde”, afirma. Levando isso em conta, ele estima o índice de reincidência nas unidades que a Reviver administra como sendo inferior a 10%. Ele aponta como fatores do sucesso na reintegração dos presos o “alto número de presos que trabalham nas nossas unidades, que é de 40% ante 12% no sistema público”, e a oferta de estudo para “mais de 70% dos apenados, ante 22% no público”.
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Massacre de Manaus joga luz sobre o negócio dos presídios privados no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU