06 Setembro 2018
Grupo que busca soluções eclesiais para trabalhar casos de abuso se reúne hoje no Vaticano com Francisco e uma das ideias é criar um canal de comunicação com denunciantes; assunto pode ser discutido na próxima assembleia da CNBB.
A reportagem é de José Maria Tomazela, publicada por O Estado de S. Paulo, 06-09-2018.
Em meio à turbulência causada por uma carta que acusa o papa Francisco de ignorar alertas sobre abusos sexuais na Igreja, a Comissão Pontifícia de Proteção ao Menor se reúne hoje no Vaticano para definir ações práticas sobre o tema. O Brasil é um dos três países – ao lado de Zâmbia e Filipinas – escolhidos pelo pontífice para desenvolver um projeto-piloto, visando a dar voz às vítimas. A informação foi dada ao Estado pelo representante brasileiro na comissão, o leigo Nelson Giovanelli Rosendo dos Santos.
O assunto preocupa a hierarquia e a ideia é que possa ser discutido na próxima reunião da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Para isso, trabalha-se com a vinda do arcebispo de Boston, Sean O’Malley, presidente da comissão pontifícia. “É o nosso desejo, mas ainda não temos a resposta do cardeal”, afirmou Santos, nomeado pelo papa para o grupo em fevereiro.
Ainda não há detalhes sobre como será o projeto. No dia 29, Santos esteve com o presidente da CNBB, dom Sérgio da Rocha, para apresentar a proposta. “Expus a ele o projeto que vamos fazer no Brasil e fui muito bem acolhido, até porque o Vaticano já havia encaminhado uma apresentação minha a d. Sérgio. É um projeto capitaneado pelo papa Francisco”, disse.
O Estado procurou d. Sérgio, que em nota confirmou o encontro e se limitou a dizer que está dando “sequência às iniciativas para prevenir qualquer situação de abuso na Igreja”. Segundo o texto, oportunamente serão dadas mais informações. Já o núncio apostólico do Vaticano no Brasil, d. Giovanni D’Aniello, informou que a comissão pontifícia “tem autonomia para realizar seu trabalho, conforme as diretrizes definidas pelo papa Francisco”. “Não interferimos. O que podemos dizer é que nos congratulamos com a escolha dele e desejamos um bom trabalho.”
Santos é o único representante brasileiro na comissão, integrada ainda por especialistas de Grã-Bretanha, Índia, Itália, Austrália, Etiópia, Holanda, Tonga, Filipinas, Colômbia, Alemanha, Polônia, Zâmbia, África do Sul e Estados Unidos. A segunda reunião plenária deste ano deve ser aberta hoje com as boas-vindas do papa e a bênção apostólica aos membros.
A inclusão do brasileiro aconteceu após o término do mandato do colegiado anterior, marcado por polêmicas. Três membros renunciaram voluntariamente: a ex-vítima Marie Collins; a psicóloga francesa Catherine Bonnet, especialista em violências sexuais contra menores; e Peter Saunders, também vítima, que fez críticas aos trabalhos da comissão.
O novo colegiado assumiu sob pressão, que só aumentou nos últimos meses – com a renúncia coletiva dos bispos chilenos, após investigação de acobertamento de abusos, e a divulgação de um relatório americano acusando mais de 300 religiosos. A tentativa de dar voz às vítimas, o que também daria mais transparência a denúncias, é um dos principais pontos em discussão.
A comissão pontifícia deve agora discutir como funcionará o projeto. “A ideia é que se crie um painel consultivo de vítimas que possam ser ouvidas e, com a experiência delas, possamos levar outras a tomarem a coragem de falar e se abrir.” No âmbito civil, esse trabalho de escuta das vítimas é feito por ele na Fazenda da Esperança, em Guaratinguetá (SP), há 35 anos. “Desde que conheci os primeiros jovens na rua que se drogavam, eles contavam o que acontecia na sua infância, com o tio, com o vizinho.
Aquela criança, depois de adulta, se refugiou nas drogas e, ao se abrir conosco, não houve mais necessidade da droga. Queremos usar essa experiência aqui na fazenda para o âmbito eclesial no projeto-piloto que vamos criar.” O objetivo é encorajar as vítimas a denunciarem violadores e acompanhar o processo para evitar o acobertamento dos casos.
Santos vai propor que o projeto comece na própria fazenda, por ser um local de retiro, onde as pessoas poderiam se abrir sem medo. “Se vai ser uma plataforma de contato virtual para garantir o anonimato, ou um lugar para receber as pessoas, ou via telefone, isso, agora, estamos definindo. “Não sei se (o abuso) é como em outros países, mas sabemos que o problema existe aqui também.”
Ele conta que, anos atrás, se deparou com o caso de uma pessoa que foi vítima de abuso por um religioso. “Fizemos o que devíamos fazer. Nossa tarefa é acolher e ajudar (a pessoa) a se libertar daquele peso, daquela ferida.”
À comissão, segundo ele, não cabe investigar os casos, já que essa é competência de órgãos internos da Igreja, como a Congregação para a Doutrina da Fé e a Congregação para o Clero, além das autoridades civis. “Somos chamados a estudar e refletir, cada um a partir de sua própria realidade, profissão e cultura, onde a Igreja errou no passado em enfrentar esse problema sensível e profundo do abuso sexual. Quando isso acontece dentro da Igreja, sai para fora com uma potencialidade muito grande, provocando um estrago muito maior que em outro segmento, pois o padre representa a pessoa de Cristo.”
Santos disse que ainda não tem números do problema no Brasil. “Embora não chegue ao nível que estou escutando em outros lugares, é preciso trabalhar”, afirmou. Considerando apenas os casos divulgados pela imprensa, a reportagem apurou que, desde o início deste ano, ao menos dois padres e um ex-padre foram presos ou condenados por abusos – um deles, no Rio Grande do Sul, chegou a celebrar missas usando tornozeleira eletrônica. Uma investigação, com um enviado papal, foi realizada em uma diocese paulista há duas semanas.
Mesmo sem poder de apuração, a comissão deve orientar as vítimas para que façam a denúncia aos órgãos que podem investigar. “Existe uma resistência de aceitar a realidade dos abusos contra menores que infelizmente acontecem na Igreja. Vamos trabalhar também com os membros do clero para criar um ambiente onde as pessoas se sintam seguras para falar”, diz Santos. O teólogo lembra que, na cultura latina, as pessoas têm mais dificuldade para fazer a denúncia e preferem silenciar.
Muitas vezes, segundo ele, o acobertamento tem a cumplicidade de pessoas de fora da Igreja. “Nós todos estamos sendo convocados pelo Santo Padre para ajudar aqueles que estão na posição de responsabilidade na Igreja a entender que, se nós queremos amar realmente a Igreja, devemos priorizar essa questão do menor e do adulto vulnerável.”
A comissão elaborou uma linha de diretrizes para que todos os ambientes clericais adotem medidas para evitar abusos. “Como o papa diz, insistentemente, é tolerância zero”, disse o brasileiro, citando a Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus, divulgada no dia 20.
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Brasil terá projeto-piloto para vítima de abuso, diz membro de comissão papal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU