04 Setembro 2018
"O investimento feito por Francisco, desde o início de seu ministério como bispo de Roma, na figura da sinodalidade representa o modo eclesial e a inteligência teológica para dar forma evangélica e católica à violência germinal que flui dessa exigência de democraticidade – em relação à qual ninguém na Igreja parece estar hoje adequadamente preparado".
O comentário é de Marcello Neri, padre e teólogo italiano, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 31-08-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Manter unido o surrealismo hiperbólico de Dali com o onírico alucinógeno kafkiano é uma empresa que levaria a imaginação aos limites das suas possibilidades, esvaziando toda a força. Pois parece ser justamente essa a atual condição da Igreja católica - embora sem qualquer estética capaz de, pelo menos, compor algum esboço de forma.
O caso Viganò representa a sua evidência exemplar. Sua construção impede de partida entrar no mérito: uma espécie de vazio destinado só a se reproduzir em modulações apenas aparentemente diferentes entre si. Se isso torna árduo um exercício da palavra, contudo não impede aquele do juízo (entendido como a capacidade de discernimento e nomeação).
Portanto, pode-se tentar dar um nome ao magma confuso e convulsionado, por muito tempo cultivado, que é expelido hoje pela Igreja, depois de ter rompido todos os diques de contenção. A incapacidade de reconduzi-lo ao leito que o levou até aqui, contudo, não impede seguir os rastros do percurso que foi feito, nem de identificar as concreções em que foi se solidificando.
É algo inédito, que nem mesmo a imaginação mais ousada poderia ter concebido na lucidez programática com a qual foi realizada. Algo que faria empalidecer até mesmo o radicalismo mais avançado daquela cisão que é a Reforma protestante: ou seja, o esgotamento completo da forma católica da fé e da Igreja programaticamente colocada em cena por seus defensores mais ferrenhos. Últimos paladinos do princípio católico diante do irreparável desvio encarnado pela pessoa do próprio papa.
Porque o gesto de sacrifício que prepara o altar midiático sobre o qual se deveria imolar a saída de cena de Francisco, representa na realidade exatamente a despedida definitiva, sem caminho de volta, do princípio simbólico em que se articula formalmente, e dogmaticamente, a tradição católica. Na piedosa ilusão de poder recuperá-lo, lindo, vital e restaurado em sua potência, tão logo o rito celebrado tenha chegado ao fim.
Esquecendo, assim, que no sagrado, com sua ambiguidade, o sacrifício é tal precisamente porque destrói completamente a matéria. Uma vez realizado não está mais entre as mãos de ninguém, e muito menos pode se pensar em reapropriar-se dela como que por mágica para que funcione ao próprio belo prazer.
Resumindo: uma vez que se deixou sair o gênio sair da garrafa, não há como trazê-lo de volta. Sabedoria popular cotidiana que os simples conhecem muito bem, e é por isso que há séculos imemoriais manuseiam o aparato com extremo cuidado.
O empenho sistêmico subterrâneo com que se tenta suspender a forma católica, na crença de podê-la reativar mais tarde como se nada tivesse acontecido, parece ser, no mínimo, irresponsável em seu projeto e ingênuo diante das consequências que tudo isso produz para aquela catolicidade da qual se gostaria de ser os últimos defensores à altura.
Não só isso, também é acompanhado por duas contradições básicas. De um lado, o recurso à consciência como aquele valor não negociável que se impõe ao dever do sujeito, mesmo que isso interfira na autoridade eclesiástica do papa. Por outro lado, a afirmação de que o crédito de confiabilidade da pessoa vale mais do que a obediência eclesiástica devida ao sucessor de Pedro - e isso justamente por aqueles que compartilham com ele a responsabilidade de salvaguardar a catolicidade da fé na Igreja ou são os colaboradores no governo universal.
No geral, a desconstrução sistêmica da forma católica em nome da sua mais elevada e única salvaguarda possível parece ser um fenômeno impregnado de pós-modernidade, ou seja, daqueles mesmos conteúdos exógenos que estariam conduzindo com Francisco para a negação daqueles fundamentais que tornam a Igreja católica.
Nessa convulsão do corpo da Igreja, graças à paciência sagaz de Francisco, assistimos, porém, a algo inesperado. Desgrenhado, rude, até agressivo além da medida e da decência, espreita algo que poderia ser o germe de um debate público na Igreja. Espaço da legitimidade da palavra de todos que foi aviltado e deliberadamente tornado impraticável durante os dois pontificados que precederam a entrada de Bergoglio no ministério petrino.
O problema é que estamos utilizando-o como crianças birrentas que querem o brinquedo todo só para si, em vez de adultos responsáveis que sabem do dever evangélico da edificação de uma casa comum em que podem coexistir diferentes maneiras de habitá-la. No entanto, esse espaço frequentado por todos (até agora muito mal), que é o debate público na Igreja, é algo sem o qual a mesma desconstrução da forma católica posta em obra pelas classes pós-tradicionalistas não poderia nem mesmo formular a própria pretensão de legitimidade.
Assim são justamente aqueles que introduzem no corpo da Igreja um direito de democracia como única via possível para esgotar a sua forma católica, a fim de recuperá-la em sua imaginada pureza (ou seja, como agrada a eles). O investimento feito por Francisco, desde o início de seu ministério como bispo de Roma, na figura da sinodalidade representa o modo eclesial e a inteligência teológica para dar forma evangélica e católica à violência germinal que flui dessa exigência de democraticidade – em relação à qual ninguém na Igreja parece estar hoje adequadamente preparado.
Mas a responsabilidade por essa condição insuficiente do tecido relacional que mantém estruturada a forma comunitária da fé católica não pode certamente ser imputada a Francisco. Os processos sinodais, ou seja, aqueles em que podem encontrar espaço, legitimidade, reconhecimento e composição modos diferentes do sentir católico chamados ao dever de falar entre si e ouvir uns aos outros, não só foram mortificados, mas também sistematicamente suprimidos tanto sob João Paulo II, como sob Bento XVI. Hoje, todos pagamos as consequências, qualquer que seja a nossa compreensão da forma católica da Igreja.
A junção entre surrealismo hiperbólico e o onírico alucinógeno que marca a condição atual da Igreja é o resultado de longos processos desencadeados há décadas e perseguidos com obstinação até uma noite de cinco anos atrás, quando um bispo argentino apareceu na Praça de São Pedro pedindo a todo o seu povo aquela bênção que o confirmava no ministério para o qual havia sido designado por um grupo de cardeais.
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