31 Julho 2018
“Quando chegou a notícia de que McCarrick havia renunciado ao posto de cardeal, pudemos ver pela primeira vez em semanas a aurora da graça. Em junho, quando a primeira alegação foi feita, McCarrick afirmou sua inocência. Sua negação ainda estava governando suas ações. Mas, sua decisão de renunciar como cardeal mostra, esperamos, que ele começou a admitir o que realmente fez e a aceitar a responsabilidade por isso”, escreve Michael Sean Winters, jornalista, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 30-07-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Agora que o arcebispo Theodore McCarrick renunciou de seu posto como cardeal, o que acontece? O caso canônico contra ele continuará, mas o que aprendemos nos últimos dois meses? O que resta a ser feito para combater este câncer que está matando a Igreja?
A Negação de São Pedro por Caravaggio na coleção do Museu Metropolitano de Arte, em Nova York
Há três partes na conversão eclesial que o escândalo de McCarrick deixa claro. Primeiro, precisamos de mecanismos e procedimentos institucionais para responsabilizar os bispos. Acreditamos que Deus salva seu povo através de sua Igreja, para que a cura desses pecados de perdição sexual exija mais do que ousadia individual para enfrentá-los. A graça de Deus é mediada pelos sacramentos e pela própria Igreja com todas as suas incrustações culturais. Nós não queremos ser como Roper em “Man for All Seasons” (O homem que não vendeu sua alma, na versão em português), prometendo rasgar todas as leis da Inglaterra e assumir o diabo sozinho, deixando de reconhecer o valor da lei em proteger a humanidade do mal.
O cardeal Sean O'Malley, de Boston, endereçou à instituição uma importante declaração na semana passada. A liderança de O'Malley da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores não surgiu por acaso. Em três dioceses consecutivas - Fall River, Massachusetts, Palm Beach, Flórida e Boston - o comportamento predatório dos padres em relação aos menores levou a Igreja a tomar novas medidas. Na Arquidiocese de Boston, o encobrimento dos crimes pela chancelaria se tornou uma desgraça nacional. Duvido que algum prelado tenha passado mais tempo com as vítimas do que O’Malley. Ele, juntamente com a persistência das vítimas, os esforços do arcebispo Charles Scicluna de Malta e a determinação do próprio Papa, são responsáveis por reverter a situação no Chile. Então, quando ele diz que novas políticas são necessárias para lidar com o abuso sexual pelos bispos, elas são realmente necessárias.
"Embora a Igreja nos Estados Unidos tenha adotado uma política de tolerância zero em relação ao abuso sexual de menores por padres, devemos ter procedimentos mais claros para casos envolvendo bispos. Protocolos transparentes e consistentes são necessários para fornecer justiça às vítimas e responder adequadamente à legítima indignação da comunidade. A Igreja precisa de uma política forte e abrangente para lidar com as violações dos votos de celibatários dos bispos em casos de abuso criminoso de menores e também de adultos”, disse O'Malley.
É importante notar os dois crimes considerados. O abuso sexual de menores é uma coisa, e o abuso de poder - potencialmente com um menor, mas também com um seminarista adulto, Padre ou empregado - é um crime diferente. Onde menores de idade estão relacionados, os bispos devem simplesmente ser incluídos sob as provisões que existem para outros membros do clero sob a Carta de Dallas, cuja peça central é a tolerância zero.
Abuso de escritório já é um delito sob os termos do cânone 1389.
Cânone 1389 § 1. A pessoa que abusa do poder eclesiástico ou de um ofício, deve ser punida segundo a gravidade do ato ou omissão, não excluindo por privação do ofício, a menos que a pena para esse abuso já esteja estabelecida por lei ou preceito.
Os bispos dos EUA devem assumir a liderança na elaboração de protocolos sobre como essa lei genérica deve ser aplicada ao crime específico de abuso sexual de um subordinado e os processos para sua aplicação. Claramente, isso deve existir fora da jurisdição da diocese e haverá alguma variação na prática atual de enviar um visitador apostólico para conduzir uma investigação. As equipes de visitação apostólica devem ser treinadas para fazer as perguntas certas e discernir os padrões de comportamento que apontam para um problema (ou para inocência). Eles devem ser independentes e ter os recursos para conduzir a investigação. Os bispos dos EUA devem consultar a Santa Sé sobre a possibilidade da designação de um escritório em Roma que possa realizar essas visitas ao país.
De fato, é hora de Roma considerar o estabelecimento de um dicastério separado, que lide com todos os assuntos relacionados ao abuso sexual na Igreja. Poderia tratar de casos individuais de abuso atualmente administrados pela Congregação para a Doutrina da Fé, bem como a esses novos casos de abuso de poder, além de supervisionar a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores e seu trabalho, disseminando as melhores práticas e educação nas conferências dos bispos em todo o mundo.
Isso leva à segunda mudança que é necessária, onde mudanças institucionais devem ajudar ela a se concretizar: uma conversão da cultura clerical. Nós já alcançamos isso, principalmente, com relação à proteção de menores. Se, antes de 2002, um Padre ou um Bispo observasse um comportamento preocupante de um outro Padre, eles poderiam fazer “vista grossa”. Agora, a cultura os encoraja a enfrentar a questão, dizer alguma coisa ao próprio padre ou à autoridade diocesana apropriada. De fato, é um crime não denunciar qualquer caso conhecido de abuso sexual de menores em muitas jurisdições.
Devo conviver com minha preocupação anterior de não permitir que os rumores se espalhem com alguma coisa a mais do que relatórios de segunda mão. Em tribunais de justiça, o testemunho pode ser excluído se for considerado boato. Mas, olhando para o caso McCarrick, está claro que alguns bispos, especialmente aqueles em Roma encarregados de avaliar os candidatos para as nomeações episcopais, escolheram desviar o olhar da fumaça que envolvia McCarrick em vez de buscar sua fonte.
A cultura hierárquica deve mudar: a responsabilidade mútua do tipo exigido pela Carta de Dallas e imaginado por Lumen Gentium, deve ser levada a sério. Estou certo de que, quando os arquivos forem abertos com informações dos últimos 50 anos, por exemplo, descobriremos que houve várias visitas apostólicas, iniciadas porque alguém que não “olhou para o outro lado”, e conduziu um processo que levou à aposentadoria antecipada de um bispo. Mas esse procedimento não é mais suficiente. A transparência é uma parte da responsabilidade e exige que o povo de Deus saiba por que seu bispo é removido e é ainda mais importante que outros bispos saibam. É assim que as culturas mudam.
A terceira e última conversão deve ser espiritual. Novamente, podemos comparar a necessidade de hoje com a de 2002. Naquela época, abusar sexualmente de uma criança era visto como um pecado pessoal, algo ruim, pelo qual você deve se confessar e pedir perdão. Isso também é verdade, mas também deixou de fora a questão-chave da justiça que é devido à vítima de abuso sexual infantil. De certa forma, prejudicou nossa compreensão católica da confissão como um sacramento, no qual você não é apenas perdoado individualmente, mas reintegrado como membro pleno da Igreja. O pecado não prejudica só o indivíduo, mas também todo o Corpo de Cristo. É por isso que os bispos devem responder a esse escândalo de maneira sacramental e com compreensão sacramental, não apenas com mudanças processuais e legais.
Historiadores da arte nos dizem que uma das duas últimas pinturas do artista italiano Caravaggio (1571-1610) foi o seu Martírio de Santa Úrsula. Pintado após um ataque em uma taverna da qual ele nunca se recuperou totalmente. As pinceladas são incomumente amplas. A outra pintura foi a Negação de São Pedro. Podemos ficar chocados ao saber que alguns de nossos Bispos, sucessores dos apóstolos, fizeram coisas indizíveis, mas o Senhor Jesus não está surpreso. Podemos achar difícil perdoar, mas ele não. Devemos trabalhar para converter a cultura, refrescar e redirecionar nossa espiritualidade com pinceladas humanas, morais, claras e limpas. Mas Jesus, da cruz, previu tudo o que estamos sofrendo atualmente. Seu martírio é prefigurado pela negação de Pedro no pátio. As feridas da carne mais dolorosas para o Senhor do que a ferida da traição de Pedro? As duas últimas pinturas de Caravaggio apresentam diferentes episódios de um único tema.
Quando chegou a notícia de que McCarrick havia renunciado ao posto de cardeal, pudemos ver pela primeira vez em semanas a aurora da graça. Em junho, quando a primeira alegação foi feita, McCarrick afirmou sua inocência. Sua negação ainda estava governando suas ações. Mas, sua decisão de renunciar como cardeal mostra, esperamos, que ele começou a admitir o que realmente fez e a aceitar a responsabilidade por isso. Devemos rezar por ele, para que ao confrontar seus próprios pecados por tanto tempo negados, o desânimo que inevitavelmente acompanha tais inventários morais, seja ultrapassado a cada dia, pela confiança na promessa de misericórdia de Cristo.
Mas primeiro, tanto na justiça quanto na misericórdia, devemos rezar pelas vítimas, cujas vidas foram tão marcadas, que recebam uma justa compensação pelos crimes perpetrados contra elas e que possam encontrar esperança no Senhor ressuscitado e em sua Igreja. Essa Igreja, nossa Igreja, foi fundada sobre uma rocha, uma rocha que negou Jesus num momento decisivo. É na sombra da cruz, e somente lá, que a fé católica é renovada, pois na sombra da cruz, e todo sofrimento e fraqueza humano que lá reside, existe um túmulo, e o túmulo está vazio.
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Três coisas que devem acontecer agora que McCarrick não é mais um cardeal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU