26 Julho 2018
O que resta hoje, exatamente a 50 anos da Humanae vitae? O que resta das acaloradas polêmicas que se desenvolveram no dia seguinte ao texto de Paulo VI? Pode-se afirmar que esse aniversário, como já aconteceu com os trabalhos dos dois Sínodos sobre a família e, especialmente, com a publicação da exortação apostólica pós-sinodal, realmente representa o “fim de um conflito”?
A reportagem é de Maria Teresa Pontara Pederiva, publicada por Vatican Insider, 25-07-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há quem responda afirmativamente, como no caso de Martin M. Lintner no seu último texto intitulado Cinquant’anni di Humanae vitae. Fine di un conflitto. Riscoperta di un messaggio [Cinquenta anos da Humanae vitae. Fim de um conflito. Redescoberta de uma mensagem] (Ed. Queriniana), dedicado a uma leitura da encíclica com o sentimento de hoje.
Autor de La riscoperta dell’eros [A redescoberta do eros] (EDB, 2015), no qual examina o tema da sexualidade e das relações humanas na Igreja, o teólogo do sul do Tirol, religioso da Ordem dos Servos de Maria, professor em Bressanone e em Innsbruck, a quem muitos reconhecem a capacidade de escuta das vivências das pessoas, é conhecido por uma teologia nada abstrata nem formulada teoricamente: por um lado, a clara indicação de um caminho a percorrer, mas, ao mesmo tempo, a firme determinação de ir à descoberta daquilo que ele considera o (muito) bem existente no reconhecimento do compromisso de cada um.
Uma sintonia ideal com a Amoris laetitia do Papa Bergoglio, que, para Lintner, é um autêntico “ponto de não retorno”, e é precisamente à luz da exortação apostólica pós-sinodal que ele sugere uma releitura da encíclica Humanae vitae: o único caminho a percorrer para compreender sua mensagem original.
Ele não viveu em primeira pessoa os debates dos tempos da publicação – ele que se define como “mais jovem do que a Humanae vitae”, tendo nascido em 1972 – mas eles não parecem ser o objeto de seu interesse, senão para fins didáticos, para delinear sua genealogia e os eventos alternados que levaram ao documento, que, escreve, “às vezes lembram a trama de um suspense”.
A leitura do texto relata, antes, a tentativa (bem-sucedida) de abordar as questões mais controversas de um modo nada polêmico, mantendo-se, o máximo possível, na objetividade das afirmações e dos fatos. Em particular, a história da recepção da Humanae vitae, desde as primeiras reações e posicionamentos das 38 Conferências Episcopais mundiais e do forte apoio de João Paulo II até a constatação do “sentimento de insatisfação” que a publicação do texto tinha despertado no teólogo Ratzinger, confirmada na total privacidade sobre a doutrina normativa da encíclica que surgiu durante seu mandato à frente da Congregação para a Doutrina da Fé.
Nessa ótica de abordagem “serena” e não preconceituosa, chama a atenção principalmente a vontade de ampliar o horizonte – bem além da mera regulação da natalidade – para recuperar a autêntica mensagem da Humanae vitae em linha com o explícito convite do Papa Francisco (AL 82).
Um estudo histórico-genealógico da encíclica (rico em detalhes decisivos para uma compreensão do debate imediatamente posterior) conclui com a afirmação de que se trata de “um ponto de virada, não só no pontificado de Paulo VI”.
Uma atenção particular é dedicada primeiro ao papel determinante do então arcebispo de Cracóvia, Karol Wojtyla, e ao famoso Memorandum (mas ele demonstra como não procedente a hipótese de que ele tenha sido seu ghostwriter), e, portanto, às consultas sobre o “Esquema XIII” que confluíram na constituição pastoral Gaudium et spes, com o acréscimo do capítulo “A promoção da dignidade do matrimônio e da família” (nn. 47-52).
Embora não entrando na preparação da encíclica Humanae vitae, para Lintner, isso exerceu um efeito decisivo para os propósitos de “uma nova visão do matrimônio e da superação da doutrina tradicional sobre os fins do matrimônio”: matrimônio como comunhão de vida e de amor (além do “contrato” que estava na base do Catecismo da Igreja Católica de 1917), que atribui ao amor conjugal uma dignidade própria que supera o propósito generativo.
Apesar de tudo, ele sublinha que não se pode esquecer que o Concílio manteve aberta a questão crucial da avaliação ética dos novos métodos para a regulação da natalidade, optando por uma suspensão da decisão.
A leitura, quase didática, que segue o texto da encíclica ajuda a ilustrar seus conceitos de destaque: a totalidade do amor humano, a paternidade responsável, o respeito pela regulação da natalidade eticamente ordenada. Nas entrelinhas, Lintner observa a preocupação com o problema demográfico em nível mundial e, em paralelo, com a ansiedade com o risco de um aumento do recurso ao aborto como meio de planeamento familiar e, não por último, com uma diminuição da dignidade da mulher.
Digna de interesse, e de certa forma talvez menos conhecida, é a “breve história da recepção da Humanae vitae”: é inegável que, diante das louváveis tentativas de alguns teólogos e cardeais – Marie Rosaire Gagnebet, Perice Felici, Edouard Hamel – de preparar o terreno para uma recepção positiva, a poeirama de críticas que foi levantada (em particular à condenação dos métodos contraceptivos não naturais) impediu uma leitura consciente das declarações das diversas Conferências Episcopais.
Como exemplo, cita-se a conferência italiana, que convida à misericórdia e à bondade, distinguindo entre situações diferentes e ressaltando para os cônjuges a “dificuldade às vezes muito séria em que se encontram de conciliar as exigências da paternidade responsável com as do seu amor recíproco”.
As Conferências Episcopais alemã e austríaca são mais explícitas em relação ao juízo de consciência, recomendando aos cônjuges um “exame consciencioso” e, aos sacerdotes, que “levem em conta a escolha de consciência responsável dos fiéis” (os bispos da Áustria, assim como os belgas, sublinham explicitamente que “na encíclica não está presente um juízo de fé infalível”, porque “o juízo sobre a possibilidade de transmitir uma nova vida pertence, em última instância, aos próprios esposos, que devem decidir diante de Deus”), mesmo sem se declararem favoráveis a uma licitude geral de todos os meios.
Também se destaca a decepção de inúmeros participantes do Concílio quando, no texto da encíclica, as nove citações de Gaudium et spes (o documento mais citado) são inseridas no contexto de uma tradição ininterrupta sobre o matrimônio e a família, e não como uma evolução muito mais substancial do ensino da Igreja.
“Talvez – comenta Lintner – a recepção unilateral da Gaudium et spes 48-52 na Humanae vitae é uma das razões para as inúmeras controvérsias ainda hoje abertas sobre a encíclica de Paulo VI”: como que dizendo que a dimensão e a profundidade dos enunciados da Gaudium et spes confluíram nela, sim, mas, inexplicavelmente, sem influenciá-la tanto.
É profunda a análise das motivações em apoio à recusa de todas as formas de controle de natalidade adotadas por João Paulo II até o seu discurso aos participantes do Congresso Internacional de Teologia Moral de 1988 (em que o cardeal Caffarra expressou a opinião de que “a intencionalidade subjacente à contracepção artificial seria comparável à atitude de um assassino”).
“Não se trata de uma doutrina inventada pelo homem: ela foi inscrita pela mão criadora de Deus”, dizia naquela ocasião o pontífice, falando, em caso contrário, de vanificação da cruz de Cristo e de uma concepção equivocada de consciência: “O ensinamento da Humanae vitae é elevado aqui expressamente ao plano da ética revelada”, comenta Lintner, que encontra uma confirmação posterior na argumentação da Veritatis splendor e também recorda que, durante seu longo pontificado, o incondicional consenso à Humanae vitae foi um dos critérios decisivos para a nomeação de bispos e a autorização para o ensino.
A abordagem de Ratzinger é diferente, pois nunca dedicou uma especial atenção ao tema específico, senão no capítulo IV da Donum vitae (ao contrário da questão sobre os divorciados em segunda união): “Não é a mesma coisa para uma pessoa se perguntar se seu próprio agir corresponde à categoria daquilo que é natural ou se perguntar se corresponde à responsabilidade diante das pessoas às quais foi unida pelo vínculo do matrimônio, e se corresponde à responsabilidade diante da palavra de Deus”. Por um lado, a coincidência em relação à validade do conteúdo normativo, por outro, uma inegável diferença de linguagem e “a falta, em Bento XVI, do rigor normativo e pastoral”.
Chegando ao hoje, já a partir do questionário preparatório para o Sínodo extraordinário, tudo parece remetido a um percurso mais compreensível em relação aos casais: da fórmula “surpreendentemente aberta” do Relatório final até o convite a se concentrar na mensagem mais do que na doutrina ou na norma, que encontra seu ápice na exortação pós-sinodal.
Hoje, conclui o teólogo, “não se fala mais da ‘avaliação moral dos métodos de regulação da natalidade’, mas sim da ‘beleza e dignidade de se tornar mãe ou pai’, além da ‘ecologia humana do gerar’”. De fato, não sendo mais enfatizada expressamente a distinção entre métodos naturais e artificiais de regulação de natalidade – uma distinção que não só muitos teólogos, mas também os fiéis consideram realmente problemática – estes se tornam os únicos critérios para uma avaliação ética.
A problemática entre norma e consciência encontra argumentações definitivas tanto no Relatório final do Sínodo de 2015, quanto no texto da Amoris laetitia (82 e 222), em que Lintner reconhece que “a concepção da consciência reveste-se de uma importância decisiva”.
Sobre a questão da transmissão da vida e do planejamento familiar, o Papa Francisco escreve: “São os próprios esposos que, em última instância, devem diante de Deus tomar esta decisão” (AL 222). “Uma visão antropologicamente densa e aberta da consciência moral, depois de ela ter retrocedido um pouco para a segunda linha em outros documentos do magistério”, é a citação do colega Antonio Autiero, ex-professor em Münster e diretor do Centro de Ciências Religiosas FBK de Trento.
Paz alcançada depois de 50 anos? Para Lintner, pareceria que sim.
Martin M. Lintner. Cinquant’anni di Humanae vitae. Fine di un conflitto. Riscoperta di un messaggio. Bréscia: Queriniana, 2018, 176 páginas.
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Cinquenta anos da Humanae vitae. O teólogo Lintner: ''O fim de um conflito'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU