04 Julho 2018
A italiana Elena Castiglia lutou por quase 40 anos para encontrar o corpo do filho, Libero Giancarlo Castiglia, um dos militantes mortos na guerrilha do Araguaia, movimento que combateu a ditadura militar no Brasil entre o final da década de 1960 e o início de 1970. Em 2014, aos 95 anos, Elena morreu sem conseguiu realizar o desejo de dar ao filho um sepultamento digno.
A reportagem é de Erika Zidko, publicada por BBC Brasil, 29-06-2018.
Walter Mario Castiglia, irmão do guerrilheiro italiano Libero, segura quadro em memória do irmão | Foto: Arquivo Pessoal
O jovem italiano, cuja família havia migrado para o Brasil, se juntou à guerrilha com pouco mais de 20 anos. No movimento, assumiu o codinome Joca. Alguns anos depois, foi um dos 62 guerrilheiros mortos pelas Forças Armadas. Até agora, apenas dois militantes tiveram restos mortais identificados e sepultados.
A família Castiglia tinha a expectativa de que um dos esqueletos encontrados na região do Araguaia, em 2001, fosse de Libero. Mas testes genéticos conduzidos pelo governo brasileiro não encontraram vínculo de parentesco, afirmou o Ministério dos Direitos Humanos por nota.
A informação, no entanto, não havia sido passada para os Castiglia, que receberam a notícia pela reportagem da BBC News Brasil. Segundo os sobrinhos de Libero, a família se sente abandonada pelo governo brasileiro e não irá desistir de conhecer a verdade sobre a morte do guerrilheiro italiano.
“Garantir aos mortos um sepultamento digno é um dos conceitos basilares da civilização ocidental, desde os tempos de Antígona (tragédia grega)”, diz Alfredo Sprovieri, autor do livro Joca, o Che Dimenticato (Joca, o Che Esquecido), lançado em fevereiro, na Itália.
Retrato do jovem italiano Libero Castiglia, o Joca da guerrilha do Araguaia | Foto: Arquivo Pessoal
Libero nasceu em San Lucido, na Itália, em 1944. Quando tinha 11 anos, sua família migrou para o Rio de Janeiro, fugindo da forte escassez de bens e comida que assolou o sul italiano após a Segunda Guerra Mundial. Sua mãe era filiada ao Partido Comunista Italiano. O pai, Luigi Castiglia, ao Partido Socialista.
Aos 17 anos, o jovem italiano se formou como torneiro mecânico no Senai e começou a trabalhar como metalúrgico. Ainda na adolescência, passou a colaborar com o jornal A Classe Operária, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). O país vivia um momento de forte turbulência, que culminaria no golpe militar de 1964.
“Após o golpe militar, devido a perseguições políticas, Libero disse à mamãe que iria trabalhar em São Paulo e passou a viver na clandestinidade”, conta o irmão Walter Mario Castiglia.
Já na clandestinidade, Libero foi um dos 18 combatentes enviados pelo PcdoB para um período de treinamento militar na China. Em seguida, rumou para o Araguaia. Na guerrilha, tornou-se companheiro de outra militante, Lúcia Maria de Souza, a Sônia, estudante de Medicina.
O objetivo dos militantes era conquistar o apoio da população rural antes de iniciar os combates à ditadura. Também pretendiam iniciar uma revolução socialista, inspirada pela Revolução Cubana.
A partir de 1972, as Forças Armadas começaram a combater o grupo. Em 1974, após duas operações fracassadas, debelaram a guerrilha. Os combatentes acabaram perseguidos, torturados e mortos.
Para o irmão de Libero, o caso Castiglia tem semelhanças com o de Che Guevara, morto na Bolívia em 1967. “Além de ser o único estrangeiro, Libero ocupava uma posição de comando na guerrilha”, diz Walter.
Foto da família Castiglia: a mãe Elena e os quatro filhos; Libero é o menino mais velho, à esquerda | Foto: Arquivo Pessoal
Após o desaparecimento de Libero, ainda no início dos anos 1970, a família Castiglia retornou à Itália. Durante cerca de 30 anos, ficaram sem qualquer informação oficial sobre o filho.
Apenas em 1997 a família recebeu pelo correio um atestado de óbito, relatando que Libero tinha falecido em 25 de dezembro de 1973. O documento não esclarecia o motivo da morte, tampouco onde estariam seus restos mortais.
“Até aquele dia, ainda tínhamos esperança de encontrá-lo vivo. Pode parecer absurdo, mas nessas situações os parentes acabam se apegando a qualquer coisa, mesmo contra qualquer lógica”, conta o irmão Walter. “Em família, continuávamos a festejar datas como Natal e aniversários, mas evitávamos tocar no seu nome para nos proteger da dor. Mamãe não tinha mais lágrimas para chorar.”
Em 2001, durante escavações feitas no cemitério de Xambioá, no Tocantins, um dos corpos exumados era masculino e vestia ceroulas de lã. Desde então, os Castiglia tinham esperanças de que o esqueleto fosse de Libero.
“Com muita probabilidade, o esqueleto encontrado era do meu tio Libero, porque vestia ceroulas de lã, um indumento típico europeu e que não é produzido no Brasil”, diz Wladimir Castiglia, sobrinho de Libero, que participou das escavações.
“Vi o esqueleto com meus próprios olhos e pensei na minha avó, que continuava a desejar que o corpo do filho fosse identificado e enterrado dignamente”, conta Wladimir.
Então ministro Paulo Vannuchi visita família do guerrilheiro Libero, conhecido como Joca, na Itália | Foto: Arquivo Pessoal
Em 2007, Elena recebeu em sua residência italiana o então ministro brasileiro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi. O objetivo da visita era coletar material genético dos Castiglia para compará-lo com o das ossadas encontradas no Araguaia. “Foi o próprio ministro quem recolheu a amostra de saliva da minha avó”, conta Lara Perrotta, sobrinha de Libero.
No mesmo ano, a família foi indenizada pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Porém, passados 11 anos daquela visita, a família nunca mais recebeu nenhuma notícia.
Nesse período, o material genético de Elena foi comparado com os restos mortais encontrados no Tocantins. Mas, segundo o Ministério dos Direitos Humanos, “não foi identificado vínculo de parentesco”.
“As ossadas exumadas em 2001 no Cemitério de Xambioá, que estão no Hospital de Brasília e foram submetidas à análise com obtenção de perfil genético, são excluídas de pertencerem a Libero Giancarlo Castiglio”, afirmou o órgão, por nota.
O resultado dessa análise genética, porém, não foi informado à família Castiglia. Segundo a assessoria do Ministério dos Direitos Humanos, as comunicações são feitas à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil a identificar e punir os responsáveis pelas mortes da guerrilha do Araguaia, em 2010.
“Se e quando recebermos esses resultados, iremos questionar qual o laboratório, quais os peritos e que tipo de análise foram feitas”, afirma Wladimir.
Para a sobrinha Lara Perrotta, o próximo passo da família Castiglia será recorrer judicialmente, na Itália. “Agora que a história de Joca começa a ser conhecida aqui na Itália, devido ao lançamento do livro e graças ao exemplo do Processo Condor em Roma, estamos motivados a recorrer à Justiça italiana para esclarecer a morte de nosso tio”, afirma.
A italiana, que é advogada, refere-se à sentença do Tribunal de Roma, de 2017, que condenou 33 pessoas pelo desaparecimento premeditado de 23 italianos durante as ditaduras da Argentina, Bolívia, Uruguai e Chile. “Nossa família não irá abandonar o caso.”
Segundo o governo brasileiro, as buscas pelos restos mortais dos guerrilheiros continua. “Estão programadas para este ano três expedições ao Araguaia, sendo a primeira em julho”, informou o Ministério dos Direitos Humanos, por nota.
“A posição oficial do governo brasileiro é de continuar enviando esforços para a localização, identificação e restituição de restos às famílias de desaparecidos políticos.”
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A família italiana que busca corpo de filho morto na guerrilha do Araguaia há mais de 40 anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU