01 Junho 2018
“A greve de caminhoneiros explicitou a inanidade política dos principais atores nacionais. Não apenas porque ele deixou a nu o simples fato de que não existe governo no Brasil”, escreve Vladimir Safatle, filósofo, professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo), em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 01-06-2018.
Segundo ele, “a derrubada do governo por pressão grevista seria um processo civilizatório”.
Poucos foram os acontecimentos que explicitaram de forma tão cabal a realidade brasileira quanto a atual greve dos caminhoneiros.
Primeiro, saiu de cena a narrativa delirante de que, apesar da degradação política, a economia nacional caminharia a passos seguros rumo à recuperação. Os caminhoneiros explicitaram a dinâmica destrutiva que alimenta a dita racionalidade econômica em vigor no governo. Racionalidade esta capaz de estrangular a atividade produtiva, como ficou evidente na exposição da lógica que atualmente comanda a política de preços da Petrobras, com seu modelo de importação de petróleo refinado enquanto deixa em ociosidade refinarias nacionais.
Mas essa greve de caminhoneiros explicitou principalmente a inanidade política dos principais atores nacionais. Não apenas porque ele deixou a nu o simples fato de que não existe governo no Brasil.
Aquilo que alguns chamam de governo demonstrou sua inépcia absoluta em lidar com movimentos sociais e reivindicações populares. O que lhe resta é apelar sistematicamente às Forças Armadas na esperança de criar alguma ilusão de comando.
Vemos nascer um Estado tutelado no qual as Forças Armadas são o verdadeiro gestor e poder moderador a definir os limites de atuação do campo político. Aqueles que temem um golpe de Estado deveriam se dar conta de que um golpe já ocorreu. Nós já habitamos um sistema, no mínimo, híbrido de governo.
Essa greve demonstrou a inanidade política a que estamos submetidos porque ela demonstrou como até mesmo setores hegemônicos da esquerda brasileira têm medo de mobilizações populares, e essa greve esteve longe de ser simplesmente um locaute.
Os caminhoneiros conseguiram literalmente parar o país e deveriam ter sido seguidos por uma mobilização radical de outros setores, tendo em vista a pura e simples derrubada de um governo que não representa ninguém, que não tem legitimidade alguma e cuja única razão de existência é procurar defender uma casta corrupta de políticos que nunca desaparecem.
A derrubada do governo por pressão grevista seria um processo civilizatório na política brasileira, pois mostraria que nenhum governo indiferente à vontade popular absolutamente majoritária tem direito de existência. A democracia representativa precisa caminhar para a incorporação do poder destituinte efetivo da pressão popular.
No entanto, vários entenderam que estávamos diante de um movimento claramente autoritário devido à presença de pedidos por golpe militar vindos de setores dos grevistas.
Mais correto seria lembrar que as classes populares entraram, e não apenas no Brasil, em uma clara dinâmica anti-institucional. Elas sabem que a estrutura institucional da democracia liberal é incapaz de garantir condições mínimas de justiça social.
Esta dinâmica anti-institucional pode tanto ir em direção às fantasias paranoicas de um regime forte e ditatorial quanto a um fortalecimento de movimentos de transferência do poder decisório a instâncias imanentes à vontade popular. A história nos mostra que as classes populares, quando assumem uma dinâmica anti-institucional, podem ir tanto para um extremo quanto para o outro.
Neste sentido, o erro é deixar o campo livre para a paranoia autoritária e não procurar construir hegemonia por meio de processos de proliferação de greves e movimentos de ocupação das ruas.
Um erro similar já aconteceu em junho de 2013. Pois há de se entender que uma das polaridades decisivas da política contemporânea passa pelo confronto entre saídas institucionais e saídas anti-institucionais.
Essas últimas não são mera expressão de regressão social. Algumas delas são a expressão de um desejo efetivo de construir uma democracia ainda por vir, distinta do modelo tecnocrata e oligárquico que conhecemos hoje. Ignorar essa dimensão é o caminho mais curto para a derrota contínua.
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