15 Mai 2018
Na metade de seu pontificado (embora só Deus e o próprio Papa saibam disso), Francisco se esbarrou com o ‘caso chileno’, adereçado com uma série de ingredientes que o tornam paradigmático não apenas para o Chile, mas também para o próprio Pontífice e para toda a Igreja.
A reportagem é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 14-05-2018. A tradução é do Cepat.
Consciente disso, primeiro pediu perdão pessoalmente (não como Wojtyla ou Ratzinger que pediram perdão pelos pecados da instituição) e, depois, em um gesto histórico e inédito, convocou, de 15 a 17 deste mês, em Roma, todo o episcopado chileno.
Para que os bispos, com o Papa à frente, façam um exame de consciência, arrependam-se, peçam perdão e cumpram a penitência. E também para encontrar, de forma colegiada e democrática, medidas “a curto, médio e longo prazo”, como ele mesmo disse, que corrijam o rumo da Igreja chilena e sirvam de pauta e padrão para as demais Igrejas do mundo. O que o Papa aposta no caso chileno e por quê?
Um prestígio global, mundial, de máxima autoridade moral, de líder autêntico, de defensor dos pobres e das causas justas, que se fortaleceu durante estes cinco anos. Uma aura que se pode ver manchada, pois o próprio Francisco defendeu amarga e abertamente, e em repetidas ocasiões, o bispo Barros, a quem as vítimas do abusador Karadima (uma espécie de Marcial Maciel chileno) acusam de acobertador. De fato, o próprio Papa reconheceu que errou e pediu perdão. Contudo, não basta este gesto incomum em um Papa. A opinião pública e publicada exige mais de Francisco. As palavras já não são suficientes para recuperar seu prestígio intacto. As pessoas esperam dele atos justos, equitativos, mas também sanadores e contundentes.
Neste momento, Francisco é o líder mundial mais e melhor avaliado. Um líder que sempre dá exemplo e que, antes de pregar, faz. Bergoglio precisa mandar um novo sinal de credibilidade à opinião pública e publicada de que seu pulso não treme, de que sabe governar e de que irá deixar claro que com os pobres e as vítimas não se brinca.
Será relativamente fácil convencer a opinião pública que tem ao seu lado. Para ele, custará muito mais lidar com a opinião publicada dos grandes conglomerados midiáticos mundiais, especialmente norte-americanos, que aguardam com o machado levantado para lhe fazer pagar por suas supostas veleidades por bondade, pobreza e ecologia. E por suas abertas condenações ao “capitalismo financeiro que mata” e descarta milhares de pessoas que estão jogadas nas sarjetas do mundo e da história. É a nova e famélica legião dos descartados.
Bento implantou a “tolerância zero” na Igreja e se tornou o “varredor de Deus”, fazendo a instituição passar da dinâmica do acobertamento à da denúncia da pedofilia como um crime civil. Francisco quer levar essa dinâmica mais longe e que passe das meras condenações teóricas aos atos reais e concretos. Para isso, já exemplificou a mudança de atitude eclesial ao receber as três principais vítimas do padre Karadima em sua própria casa, acolhendo-as como um pai e pedindo perdão. Agora, de acordo com as próprias vítimas, deseja ir mais longe: colocar em marcha um novo padrão de conduta (as vítimas primeiro) e pedir contas aos bispos chilenos acobertadores e aos que acusaram as vítimas de infamar e manchar a Igreja com suas denúncias.
Trata-se, fundamentalmente, dos quatro bispos da Pia União fundada por Karadima (Koljatic, Arteaga, Valenzuela e Barros), assim como dos cardeais Medina, Errázuriz e Ezzati. As vítimas querem suas cabeças. Francisco não pode lhes tirar o cardinalato, mas, sim, pode retirar Errázuriz do Conselho de Cardeais (G9 vaticano) e aceitar imediatamente a renúncia como arcebispo de Santiago do cardeal Ezzati, já apresentada. Os quatro bispos de Karadima já deveriam ter apresentado sua renúncia por decência e pelo maior bem da instituição e se retirar a um mosteiro para rezar.
Até agora, Francisco teve gestos de apoio e proximidade pessoais com as vítimas de abusos de todo o mundo, especialmente com as de Karadima, mas estas acreditam que chegou o momento dos fatos. Pedem a Francisco que tome medidas enérgicas não só com os pedófilos, mas também com os acobertadores. Por exemplo, que não prescrevam os crimes de abusos no Direito Canônico e que hierarquia da Igreja mundial se posicione sempre e abertamente com as vítimas e contra os vitimários.
Sendo assim, que a instituição deixe de ser um terreno de caça fácil para depredadores sexuais, para se tornar um refúgio seguro contra eles. E isso exigirá ao Papa impor uma mudança de mentalidade em seus pastores, diante das poderosas inércias do passado, centradas em evitar o escândalo e, sobretudo, em proteger a boa imagem da instituição acima da dignidade das pessoas dos abusados. Também exigirá que a Igreja se coloque à disposição das vítimas, para as ajudar psicologicamente e, sobretudo, economicamente, e ressarci-las a fundo e sem contornos pelos danos sofridos.
Para além do caso chileno e de seu significado universal no âmbito da pedofilia clerical, Francisco está enfrentando o último grande líder da velha guarda vaticana: o cardeal Angelo Sodano. Plenipotenciário Secretário de Estado durante o pontificado do Papa Wojtyla, o cardeal italiano é o chefe reconhecido da cordada (grupo, partido ou lobby) diplomática vaticana. O corpo diplomático vaticano é o coração do poder da Cúria. Sua reforma é um dos assuntos pendentes de Francisco.
A cordada de Sodano se ramificou no Chile através dos cardeais Medina, Errázuriz e Ezzati, que dominaram a cúpula da Igreja chilena e impuseram seus “protegidos” como bispos, com a bênção do núncio Scapolo, um diplomata que também pertence ao partido de Sodano. Se o Papa retirar o núncio Scapolo do Chile, estará demonstrando aberta e claramente que venceu ao menos esta batalha contra o clã diplomático e Sodano terá que se retirar definitivamente de cena da cúria, aos seus 90 anos. Assistiremos o início do fim dos clãs mafiosos no Vaticano? Ninguém pode parar a primavera na primavera.
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O Papa aposta tudo (ou quase) no caso chileno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU