18 Abril 2018
As cenas na boate Bahamas reavivam o alerta de Pasolini: em sociedades aprisionadas pela mercantilização da vida, paira sempre o risco de ver a política reduzida a violência. Ele tonou-se mais agudo no Brasil.
O artigo é de João Pedro Moraleida, estudante de geografia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), publicado por Outras Palavras, 16-04-2018.
“[…] A mim me resta disso tudo uma tristeza só Talvez não tenha mais luar pra clarear minha canção O que será do verso sem luar? O que será do mar, da flor, do violão? Tenho pensado tanto, mas nem sei […]” Lunik 9, Gilberto Gil
Pasolini, num texto chamado “Os jovens infelizes”, faz uma série de colocações e questionamentos sobre o que denominava de “novo fascismo” da sociedade italiana na década. de 1970. A origem de tal movimento viria:
1) da sobrevivência do fascismo do passado;
2) uma interferência direta dos setores conservadores da Igreja na política italiana;
3) pela consolidação da sociedade de consumo de massa e
4) pela responsabilidade dos pais e filhos –– históricos — na colaboração continuada com o fascismo, por não o terem eliminado de vez; por ainda afirmarem que a única história possível é a história burguesa; pela descaracterização das histórias e das lutas dos trabalhadores e pobres italianos.
Tudo isso, de acordo com Pasolini, corroborado pelos intelectuais e “cultos” italianos, esses pais que assistiram à condenação de seus filhos e de si mesmos com a emergência do “novo fascismo”. Nesse texto de 1975 [1], alguns trechos podem nos servir como plataforma estratégica, não somente de ação, mas talvez uma estratégia de pensamento e reflexão política.
O sentimento é histórico, lembra-nos Pier Paolo, ele é “aquilo que se experimenta, que é real” e completa: “meu sentimento é, repito, de condenação”. Nas tragédias gregas, os filhos sempre pagam pela culpa de seus pais e, inversamente são punidos também. A partir dessa localização no teatro grego, Pasolini tece seus apontamentos: o que significa na contemporaneidade essa condenação? Voltemos ao aqui e agora. Erra, quem hoje no Brasil não reconhece o avanço do conservadorismo e, mais ainda, nega a existência e crescimento de um pensamento e ação fascistas. Erra porque desconsidera um elemento que para além de histórico é transitório no fascismo, seu caráter de eternidade, que é em si mesmo violento, pois desloca a violência simbólica e da guerra constante que nos estrutura para uma violência efetiva, pura e pragmática.
Lembremos as cenas de 6 de abril, quando Oscar Maroni incitava uma pequena multidão em seu clube de prostituição, com um cenário composto pelas imagens de Sérgio Moro e Cármem Lúcia. Nos vídeos foi possível ver um grupo organizado pelo MBL pedir que Maroni despisse mulheres no palco; que jogasse suas roupas íntimas para eles e que permitisse o “sexo livre” — assim foi dito — com as mulheres do clube de Maroni. Essas cenas foram momentos da comemoração da prisão do ex-presidente Lula, mas não só isso, foram também o instante em que a decadência e a força estética do fascismo apareceu novamente como prática nesse jogo de deslocamento da violência simbólica para a efetiva. Apareceu abertamente como espetáculo o estupro de mulheres seguido dos gritos de uma plateia que aguardava sua “consagração”.
Erra quem crê que esse foi apenas momento reativo de uma direita tosca e sem força. Reativo sim, mas um efeito-demonstração do que são capazes e de seu obscuro entendimento do mundo e da situação atual. “São máscaras de alguma inciação bárbara”, escreveu Pasolini.
Aqueles da esquerda intelectual que negam o avanço da direita, não aprendem ou não querem ver que enquanto não se combate essa eternidade fascista e sua estetização do mal, como no Bahamas Clube, não será possível criar uma nova história fora da estrutura bárbara e colonial que assentamos, nós brasileiros. De que nos adiantam jovens cultos, uma juventude de “falsa tolerância”, mas apartada dos problemas fundamentais da nossa constituição, sem conseguir compreender e se aliar numa luta popular contra o avanço da decadência fascista?
No mesmo texto, o artista perguntava: “Mas o que eles podem fazer com sua sofisticação e cultura?” O que fazemos – e são reflexões para todos nós – para escapar e lutar contra a condenação? Vamos nos propor a agir contra o controle cada vez maior desses grupos, seja na sociedade civil ou nas cadeiras jurídicas, na política, na imprensa e na família? E uma re-memoração daqueles que em nossa história se valeram da luta incessante contra o fascismo brasileiro? É uma juventude a que gritava para Maroni; ou a que aplaudiu a intervenção militar no Rio; ou a que, aposta na teatralização da violência cotidiana, com os linchamentos e criações de bodes expiatórios que canalizam suas pulsões violentas para figuras públicas – sem memória histórica, aliada à imobilidade.
Novamente Pasolini – nesse texto que devemos para o agora recuperar:
Portanto, a culpa dos pais não é somente a violência do poder, o fascismo. Mas é também: primeira, a remoção da consciência, por parte dos não antifascistas, do velho fascismo, e estarmos confortavelmente liberados de nossa profunda intimidade (Panella) com ele (termos considerado os fascistas ‘nossos irmãos cretinos’, como diz uma frase de Sforza recordada por Fortini); segundo, e acima de tudo, a aceitação – tanto mais culpável quando mais inconsciente – da força degradante e dos verdadeiros, imensos genocídios do novo fascismo. Por que tal cumplicidade com o velho fascismo e por que tal aceitação do novo fascismo?[2]
Trata-se de fazer da prática de combate a esse crescimento e avanço fascistas um caminho de entendimento da situação atual. É preciso entender por ação fascista, lembrando outro autor:
[…] não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini — que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas —, mas também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora. […][3]
A afirmação da humanidade passa por um luta conjunta de se liberar da obscuridade de um poder que não só mata, mas que se fascina pela morte, numa atualização constante de um poder soberano medieval: deixar viver, fazer morrer. O resgate da tradição — como Pasolini coloca em sua obra de poesia e crítica — deve significar também a re-memoração dos combatentes apagados de nossa história, sejam assassinados pelo fascismo ou esquecidos pelos “nossos documentos históricos”. Essa juventude que grita e pede a morte e a violência, mas também a intelectualidade que a tolera não podem ser nossos pais e filhos a encaminhar-nos para a condenação de possuir um sentimentos histórico de derrota, pois a prática efetiva se constrói pelas resistências e por sua história.
Notas:
[1] Pasolini, Pier Paolo. Poemas. São Paulo, Cosac Naify, 2015
[2] idem
[3] Foucault, Michel. O anti-édipo: uma introdução à vida não fascista. Prefácio à edição norte- americana de O anti-Édipo – capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari
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